Invasões biológicas podem ser definidas como dispersões que rompem as barreiras físicas que separam domínios ecológicos diferentes, através de mecanismos naturais ou pela ação do homem. Até antes da Era dos Descobrimentos, eram raras as invasões de espécies marinhas tropicais e temperadas de um continente para outro, isso devido às distâncias e às barreiras biogeográficas ambientais. Mas elas foram pouco a pouco sendo rompidas pelas longas viagens intercontinentais. Quando os espanhóis e portugueses (ou os Vikings? Ou os Fenícios? Não importa nesse contexto) chegaram do lado de cá, há mais de 500 anos, trouxeram um presente de grego para o ecossistema costeiro do continente americano: espécies exóticas.
Invertebrados marinhos do continente europeu, que habitavam substratos rochosos, viajavam clandestinamente através do Oceano Atlântico, fixos no casco das caravelas e dos galeões. Eles resistiam à travessia das águas mais salgadas do oceano azul e profundo até “perceberem” que estavam novamente em águas estuarinas com baixa salinidade, só que do outro lado do Oceano Atlântico. Os navios aportavam em águas típicas das baías lagunares da costa leste americana, usadas como portos naturais. Eram cracas, anêmonas, corais, caracóis, mariscos etc., que aí lançavam suas larvas aos milhares após todo o estresse da viagem. As larvas se dispersavam com as marés e correntes costeiras, colonizando hábitats ainda não ocupados pelas espécies locais, crescendo e passando a competir como exilados na nova teia alimentar. Muitas venceram essa batalha pela sobrevivência e hoje fazem parte do cenário submarino das Américas do Norte, Central e do Sul.
Antes de meados do século XIX, as únicas barreiras físicas naturais que dificultavam essas migrações de pequenos organismos eram os continentes e a temperatura na superfície. Espécies do Oceano Pacífico equatorial jamais poderiam invadir o Caribe, no Atlântico, pois eram impedidas pelas baixas temperaturas no sul da América do Sul que são em torno dos 10 graus célsius lá pelas bandas da Terra do Fogo. Com a expansão do comércio marítimo internacional, novas rotas de navegação e mais navios, as invasões passaram a acontecer em todos os continentes, de lá para cá e daqui para lá, numa velocidade incontrolável e com muito mais abrangência geográfica.
Como se não bastasse, vencidas as barreiras térmicas pelo intenso tráfego marítimo, as barreiras físicas representadas pelos próprios continentes, separando mares e oceanos, também foram rompidas pela ação do homem. A abertura do Canal de Suez provocou uma “tropicalização” da fauna marinha do setor oriental do Mar Mediterrâneo, devido à invasão de espécies exóticas do Mar Vermelho e do Oceano Índico. Algumas décadas mais tarde (1914), uma pequena faixa de terra de 81 quilômetros foi finalmente rasgada no istmo do Panamá, abrindo uma porta de comunicação genética, fechada há milhões de anos durante a formação dos continentes. Imediatamente começou a homogeneização da biodiversidade tropical com invasões de espécies do Pacífico para o Caribe e vice-versa.
Mas o pior veio depois. Os navios dos antigos navegadores não podiam enfrentar a fúria do “Rio Grande”, durante as longas travessias, sem muito peso. Às vezes, a carga transportada não era suficientemente pesada para baixar o centro de gravidade do navio e aumentar a sua estabilidade durante a navegação. O problema era resolvido com pedras no fundo do casco. Eram lastros sólidos e permanentes, que podiam ser aproveitados em construções civis nas Colônias.
Entretanto, a versão moderna para o lastro é a água. Atualmente, para completar o peso necessário para a estabilidade do navio, usa-se a água do próprio local de embarque da carga para encher os tanques de lastro das grandes embarcações. A água de lastro, dividida em compartimentos que se comunicam, é o maior reservatório de contaminação biológica entre os portos marítimos. São milhares de espécies marinhas transportadas diariamente nos porões dos navios. No porto de origem, a água do mar ou do estuário é bombeada para dentro dos tanques e, com ela, toda a sorte de organismos microscópicos, larvas e juvenis que por acaso passam diante da entrada das bombas de sucção são conduzidos diretamente aos porões escuros do navio. Uma pequena parte do ecossistema local é mantida no tanque, no qual sobrevivem as espécies mais resistentes até chegarem ao porto de destino. Justamente aquelas que subjugam os mais fracos da teia alimentar local são bombeadas para fora do navio, sem direito a repatriação. Não importa se estão no Rio de Janeiro, Nova York, Roterdam, Cidade do Cabo ou Tóquio. Se a salinidade e a temperatura forem tolerantes, os mais resistentes saem à procura de alimento e espaço, buscando seus direitos de participar da nova teia alimentar e disputar recursos com as espécies locais. E elas que se cuidem!
A expansão e a globalização do comércio marítimo, após a Segunda Grande Guerra, agravaram ainda mais o problema ecológico causado pela bioinvasão marinha. O nível de contaminação atual é, no mínimo, centenas de vezes maior com a substituição do lastro de pedras das caravelas, galeões, corvetas britânicas e vapores americanos por lastreamento com água nos porões dos navios petroleiros e graneleiros.
A competição, a troca de informações genéticas e variações da biodiversidade são comuns em todos os ecossistemas. A natureza é dinâmica. E no mar mais ainda, pois esses processos são potencializados pela circulação. Entretanto, a socioeconomia costeira usa o mar de diversas formas. Atividades portuárias, industriais e de pesca são tradicionais e, mais recentemente, o turismo e a maricultura que crescem vertiginosamente. Por trás dessas atividades vêm a construção civil, a derrubada da vegetação costeira, as obras de dragagem, os aterros, os enrocamentos e a poluição doméstica e industrial. O impacto conjunto dessas atividades sobre o ecossistema costeiro altera as condições de circulação, introduz substâncias químicas orgânicas e inorgânicas que não estavam presentes há centenas de anos ou mesmo há algumas décadas. Diante dessa nova realidade ambiental, as espécies locais se enfraquecem e as invasoras resistem, ganhando cada vez mais espaço no cenário submarino dos países costeiros.
No Brasil, temos vários exemplos preocupantes de biopoluição. O livro “Água de lastro e bioinvasão” (Silva & Souza, Editora Interciência, 2004) resume os principais eventos desse problema em nossas águas e seus riscos potenciais para a saúde e socioeconomia da zona costeira. As espécies indígenas, menos competitivas, são substituídas, alterando o equilíbrio do ecossistema marinho, uma vez que as invasoras exóticas, com menos exigências ambientais e altas taxas de crescimento, ganham espaços antes ocupados pelas espécies nativas.
Microalgas marinhas são as grandes vilãs dessa invasão. Em condições ambientais favoráveis, normalmente potencializadas por poluição orgânica, muitas espécies de microalgas produzem toxinas que provocam mortandade massiva de peixes, danos ao turismo e estragos nos cultivos de moluscos. Mariscos e ostras cultivados em ambientes com altas concentrações dessas microalgas acumulam em seus tecidos concentrações letais de toxinas. Quando ingeridos, podem causar no homem vários problemas médicos, desde intoxicações com forte diarreia até paralisia muscular e asfixia, podendo levar até a morte.
Hoje em dia, a presença de animais e algas marinhas exóticas em nossa costa é uma questão cada vez mais preocupante. São organismos introduzidos propositalmente pela maricultura, aquariofilia, ou acidentalmente por águas de lastro nos portos brasileiros. Os órgãos ambientais e sanitários já se mobilizam para lutar essa batalha. Mas, infelizmente, já como derrotados, pois as invasões são irreversíveis. Agora, o maior desafio é como conviver com elas e mitigar seus efeitos nocivos ao equilíbrio ecológico e à saúde dos ecossistemas marinhos brasileiros.
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