A rua Cannery Row em Monterey, na Califórnia, é famosa pelo romance homônimo de John Steinbeck, inspirado na boemia local, e pela dramática história do debacle da sua indústria de sardinha.
A fantástica abundância da espécie nas águas próximas criou uma próspera atividade pesqueira e uma rua inteira de enlatadoras. Durante a Segunda Guerra Mundial, a demanda por sardinhas foi enorme e a produção chegou a 250 mil toneladas por temporada. Não durou. Em poucos anos os cardumes estavam exauridos e a pesca caiu a quase zero. Em meados dos anos 50, só restavam em Cannery Row os galpões abandonados das enlatadoras falidas.
Infelizmente, a história se repete. Por todo o mundo, o excesso de pesca ameaça a sobrevivência das principais espécies comerciais.
No artigo “Tragedy of the Commons” (algo como “A tragédia da propriedade comum”), publicado em 1968 na revista Science, o biólogo Garrett Hardin alertou que recursos naturais abertos à exploração serão fatalmente esgotados. Eis a sua história: imagine um pasto comunal onde vários pequenos fazendeiros soltam suas vacas para pastar. Individualmente cada um deles tem controle sobre seus animais, mas nenhuma voz sobre a administração sustentável do pasto, que é de todos. Conter as próprias vacas não impede que as dos outros pastem à vontade. Nessa situação, a propensão é que todos rivalizem pelo uso do pasto até a sua exaustão.
Existem duas saídas para a “tragédia”. A primeira é a regulação: reunir o grupo e criar regras para a administração sustentável dos recursos comuns. Essa solução costuma funcionar bem para comunidades pequenas. A segunda é transformar a propriedade comunal em propriedade privada, descentralizando o problema. No exemplo do pasto, significa dividi-lo em lotes particulares. Dessa forma, cada proprietário será incentivado a conservar o seu. Quando o número de envolvidos é grande, e concordar com regras comuns é difícil, essa pode ser a solução factível.
O insight de Hardin aplica-se muito bem aos atuais problemas da indústria pesqueira. Quando o acesso aos cardumes comercialmente valiosos é livre, há uma corrida desenfreada pela sua captura até o esgotamento. A tecnologia moderna é um agravante. Hoje, os navios pesqueiros são verdadeiras fábricas flutuantes, com enorme capacidade de estocagem e sonares que monitoram os cardumes. Os peixes não têm a menor chance.
Quando a pressão sobre uma espécie torna-se preocupante, os governos partem para a regulação. Define-se uma temporada de pesca, estipula-se quotas máximas de extração, limita-se os equipamentos, tais como o tamanho e o tipo de redes usadas. Isso resolve em parte o problema.
No Alasca, o halibut é uma espécie comercial importante. Para evitar a pesca excessiva foram impostas quotas anuais. Em 1975, os pescadores locais levavam 125 dias para alcançá-la. Em 1980, a quota anual era atingida em 25 dias e, em 1994, isso ocorria em incríveis 3 dias. O fenômeno ocorreu porque a imposição de uma quota anual não acabou com a corrida pelo halibut. Os pescadores da frota continuaram competindo uns com os outros para apanhar o máximo de peixe até atingir o limite legal. Para manterem-se no jogo, superinvestiram em barcos e equipamentos. A cada ano, os custos da indústria de halibut subiam, enquanto a qualidade do produto e a renda dos pescadores caíam. A regulação via quotas anuais não foi suficiente. Melhorou a conservação dos cardumes, mas tornou a indústria ineficiente.
A solução foi copiar os islandeses. A Islândia é um pequeno país localizado em cima do Círculo Ártico. São 300 mil pessoas vivendo em ilhas vulcânicas cobertas de geleiras (Islândia, ou Iceland, quer dizer terra do gelo). Apesar dessas condições inóspitas, o país alcançou um dos padrões de vida mais altos do mundo. É o sétimo na classificação do Índice de Desenvolvimento Humano, à frente dos Estados Unidos. Chegaram lá, em parte, tornando-se pescadores high-tech.
A indústria pesqueira islandesa responde por cerca de 70% das exportações e 40% do PIB, considerando todas as atividades ligadas ao setor. Entre as espécies locais comercialmente importantes estão o bacalhau, o haddock e o arenque, além de camarões e lagostas. Pela sua importância, a boa regulação da indústria pesqueira é fundamental. Talvez por isso, em 1979, foi o primeiro país a implantar o sistema de quotas individuais e transferíveis, as chamadas ITQs (Individual Transferable Quotas).
As ITQs são uma mistura de regulação e mercado. A cada ano, os biólogos responsáveis pela conservação dos cardumes estipulam um total máximo de pesca, expresso em toneladas, para cada espécie. Esse total é estimado visando à manutenção de estoques sustentáveis. Para evitar briga, quando o sistema foi implantado, cada pescador recebeu uma quota equivalente à média histórica da sua produção. Essa quota é expressa como um percentual da tonelagem máxima daquele ano. Exemplo: um certo Johanson tem 3% do total de 100 mil toneladas de arenque permitidas para 2004, ou 3 toneladas. Se em 2005, o total subir para 120 mil toneladas, seus 3% passarão a representar 3,6 toneladas, e assim por diante.
A combinação do total anual com as quotas individuais transforma os pescadores em fazendeiros. Ninguém mais precisa se apressar, já que é dono de uma parte do pescado. Cada um pode “colher” a sua quota anual no ritmo que quiser, eliminando a necessidade de superinvestimento em equipamentos. Outra vantagem é criar um mercado de quotas que premia a eficiência. Como os fazendeiros, os pescadores mais produtivos podem expandir suas atividades comprando mais quotas, e aqueles que não têm sucesso, ou querem abandonar a indústria, podem vender as suas.
O sistema tem seus críticos ferozes. É acusado de concentrar a indústria na mão de grandes empresas e de expulsar os pescadores familiares, que usam métodos artesanais, naturalmente menos agressivos. Parece ser possível acomodar essas reclamações. O excesso de concentração pode ser impedido com medidas antitruste, como em outras indústrias. E a sobrevivência dos pequenos garantida, por exemplo, designando áreas costeiras para a pesca artesanal.
O fato é que o sistema está sendo adotado em diversos países. Na Islândia, o pioneiro, seu uso abrange quase todos os grandes pesqueiros comerciais. É aplicado em diversos pesqueiros na Nova Zelândia, Austrália, Estados Unidos, Itália, África do Sul, Holanda e Chile. No caso do halibut do Alasca, a adoção de ITQs em 1995 aumentou o tamanho e o valor da safra, ao mesmo tempo em que reduziu o número de barcos envolvidos na pesca. E o número de dias da temporada subiu de 3 para 245.
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