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A globalização da espiritualidade cabocla

Vitória do movimento religioso União do Vegetal contra o governo americano provoca reflexão sobre o lugar da cultura mestiça brasileira na globalização.

29 de abril de 2005 · 20 anos atrás

Alguns jornais brasileiros noticiaram nos últimos dias, de maneira bastante displicente e truncada, uma informação que deveríamos considerar altamente relevante para pensar o lugar da cultura brasileira, especialmente através de sua expressão amazônica, no universo da globalização. É significativo o fato de agências internacionais, para não falar de importantes jornais estrangeiros, terem trabalhado o tema com mais cuidado e sagacidade do que os meios de comunicação nacionais, que deveriam ser os principais interessados em estimular uma reflexão aprofundada sobre o tema.

O acontecimento relatado diz respeito à decisão da Suprema Corte dos Estados Unidos de avaliar em profundidade, a partir do segundo semestre de 2005, o mérito de uma batalha legal que já dura mais de cinco anos entre o governo dos Estados Unidos e a União do Vegetal (UDV), movimento espiritual fundado em seringais da Amazônia Ocidental no ano de 1961. O aspecto mais impressionante desse episodio é o fato de a UDV, contra todas as previsões pessimistas, em uma verdadeira luta de Davi contra Golias, ter ganhado até agora todas as etapas desse confronto, agindo com notável competência, seriedade e confiança nos seus direitos e na honestidade dos seus propósitos. Desde dezembro do ano passado, com base em sucessivas vitórias nos tribunais de apelação, ela reiniciou por tempo indeterminado suas atividades nos Estados Unidos, interrompidas em 1999 por razões que serão mencionadas adiante.

Quem costuma trabalhar em projetos ecológicos na região amazônica, ou mesmo em outras regiões do país, provavelmente conheceu algum associado do Centro Espírita Beneficente União do Vegetal, o nome completo da UDV, pois muitos dos seus seguidores trabalham nas áreas de saúde, ecologia e educação. Se a árvore se conhece pelos frutos, o contato com os associados da UDV costuma produzir uma avaliação positiva sobre a natureza do movimento, ou mesmo uma vontade de conhecê-lo. De uma maneira geral, pois generalizações são sempre imperfeitas, os frutos humanos da UDV são pessoas que combinam seriedade e honradez com bom humor e serenidade. São pessoas que promovem o fortalecimento dos laços de família e os valores do trabalho e da ajuda mútua. Sua espiritualidade passa longe de fanatismos, fundamentalismos ou comportamentos extravagantes, calcando-se na simplicidade e na espontaneidade de quem vê o desenvolvimento espiritual como uma peleja diária onde se procura cultivar uma consciência crescentemente clara e amorosa em meio aos afazeres e dificuldades do mundo. Uma espiritualidade abertamente mestiça, que se vale com naturalidade de palavras e motivos de origem ameríndia, africana ou européia (particularmente da tradição cristã). Para os leitores de O Eco, além disso, é especialmente interessante ressaltar a relação íntima dessa forma de espiritualidade, nascida no coração da floresta, com o que chamamos de natureza. Nas sessões da UDV examina-se e vivencia-se de forma recorrente o significado essencial da água, do ar, do fogo, do reino vegetal e de outros elementos primordiais da existência. Seus ensinos e cantos sagrados, construídos a partir de uma arte poética simples, bela e profunda, falam muitas vezes de pássaros, árvores, matas, rios e mares.

Em suma, uma espiritualidade profundamente ligada a sentimentos e conteúdos do que poderíamos chamar de “vivências culturais” brasileiras, tais como a mestiçagem, a cordialidade e a proximidade com o mundo natural. Ao visitar um dos seus templos, especialmente na região amazônica onde ela se originou, é possível sentir aquele clima fraterno, generoso e calorosamente humano dos arraiais juninos do interior. Uma sensação que se intensifica na medida em que, em plena vigência do seu ritual, os mestres da União se valem de forrós, repentes, reisados, modas de viola, sambas e outras canções da MPB cuja poesia fornece toques e ensinamentos filosóficos, existenciais e espirituais. Para compreender um pouco melhor a singularidade dessa tradição, no entanto, é necessário superar as interpretações fáceis e superficiais, buscando perceber toda a sofisticação conceitual que fundamenta a linguagem do movimento, calcada no imaginário popular. O nome “centro espírita”, por exemplo, pode ser enganoso para muitos, pois não se refere a qualquer tipo de prática mediúnica e sim, segundo os adeptos da UDV, ao esforço de centramento, de aproximar-se do centro espiritual do ser humano e da própria vida.

É verdade que os templos da UDV não apresentam os excessos barrocos que se pode observar em alguns espaços da religiosidade popular brasileira. São ambientes simples e singelos, com uma espécie de estética zen-cabocla que dispensa o uso de velas, imagens ou coisas do gênero, concentrando-se em buscar, na medida do possível, a proximidade das árvores, das flores e dos cursos de água. Ou seja, recantos onde se pode vivenciar o lado bom – ou pelo menos um dos possíveis lados bons – de um Brasil que em grande parte se está perdendo no ambiente de violência das grandes cidades ou dos projetos de expansão da fronteira capitalista no mundo rural.

O conhecimento dessa corrente espiritual, porém, não é muito fácil, pois a tradição da UDV é essencialmente oral e bastante discreta nas suas relações com a sociedade, ciosa que é da preservação de sua intimidade. Por esse motivo, o número de publicações sobre o movimento é pequeno. Recentemente, porém, foi editado um livro de crônicas que apresenta uma visão interna do universo poético e espiritual da UDV. O livro chama-se “Estrela da Minha Vida: Histórias do Sertão Caboclo” (Edições Entre Folhas, Brasília, 2004) e foi escrito pelo jornalista brasiliense Edson Lodi, sócio da União desde 1976. Não haveria espaço aqui para comentar a riqueza desse livro, que descreve a trajetória de alguns dos fundadores do movimento, especialmente de José Gabriel da Costa, o Mestre Gabriel, um seringueiro nascido na Bahia cujos ensinos são a sua grande fonte inspiradora. Mas um ponto merece ser ressaltado desde já. Lendo o livro fica difícil manter a visão preconceituosa de que a aventura espiritual, em toda a sua profundidade, é privilégio dos mais ricos e dos mais educados na escola convencional. Nas páginas do livro podemos encontrar pessoas simples – seringueiros, caminhoneiros, pequenos colonos – mestres formados na escola da vida, vivenciando intensos e complexos processos existenciais e filosóficos. Sendo capazes de grandes sacrifícios pessoais para procurar, ao longo dos caminhos do Brasil, um sentido maior para a vida.

Para o analista da cultura brasileira e amazônica contemporâneas, de toda forma, a trajetória da UDV representa um fenômeno notável. A partir de sua origem modesta nos seringais, passando depois por sua primeira formalização institucional na cidade de Porto Velho, Rondônia, em 1967, o movimento expandiu-se pelas diversas regiões do Brasil e por alguns países estrangeiros, contando hoje com dezenas de núcleos e mais de 10.000 sócios. Não é de surpreender o fato de o conjunto de fatores culturais e espirituais mencionados acima ser bastante atraente para os habitantes das capitais brasileiras, onde muitos núcleos da UDV estão sendo criados. E talvez o seja mais ainda para os estrangeiros, que ficam embevecidos ao encontrar uma espiritualidade ao mesmo tempo tão ecológica e tão humana. Mas a UDV, em sua história, não teve pressa de chegar nestes espaços. Por exemplo, entre os primeiros norte-americanos que dela se aproximaram, em geral pessoas atraídas pela imagem carismática da floresta amazônica, e a autorização para abrir uma representação naquele país, passaram-se quase dez anos. Um fato que manifesta outro aspecto notável da UDV como experimento social, cultural e espiritual: a seriedade e a perseverança em manter o padrão espiritual e ético estabelecido por seus fundadores. Como se diz na linguagem dos caboclos, a UDV vem usando uma peneira fina para formar sócios norte-americanos realmente comprometidos com esse padrão. O mesmo procedimento que vem sendo adotado na expansão para outros países, revelando o potencial de universalização desse caminho tão brasileiro.

Se o padrão ético dos seus dirigentes e o comportamento social dos seus seguidores, de maneira geral, costuma ser tão positivo, não se caracterizando por escândalos ou conflitos, muito pelo contrário, por que então a necessidade de uma batalha legal tão longa e difícil nos Estados Unidos? O x do problema está no fato de os seguidores da UDV, em seus rituais, fazerem uso do chá Hoasca, também conhecido como Daime, que constitui um dos aspectos mais famosos e fascinantes da biodiversidade amazônica (apesar da tradição da UDV ter se desenvolvido de maneira totalmente independente das tradições do Santo Daime). O uso desse chá, como se sabe, preparado através da união de um cipó e de uma folha, representa uma tradição imemorial dos povos da região, que quase sempre o utilizaram no contexto de práticas espirituais e curativas. A sua simples existência, na verdade, já apresenta um desafio ao conhecimento humano, como costuma lembrar o farmacologista Frederico Arruda, da Universidade Federal do Amazonas. Dentre os inumeráveis cipós e folhas existentes naquela floresta, como foi possível aos povos indígenas descobrir uma combinação tão sinergicamente perfeita para produzir a expansão da capacidade perceptiva e da consciência?

Qualquer que seja a resposta para essa pergunta, o fato é que o chá Hoasca já é parte integrante do patrimônio cultural brasileiro. Mais ainda, é uma das imagens mais recorrentes da cultura do país na mídia mundial. É impressionante a quantidade de referências ao uso ritualístico do chá em publicações estrangeiras. Penso que seria um erro reduzir esse interesse ao uso do chá por si mesmo. O contexto cultural é também fundamental. Os seringueiros e outros trabalhadores, principalmente de origem nordestina, que conheceram o chá na Amazônia, foram capazes de criar organizações espirituais de grande complexidade e originalidade, valendo-se para isso da herança riquíssima da cultura mestiça brasileira. Em suma, o Brasil não pode ignorar o fato de que, na projeção global de uma organização como a UDV, o que está sendo projetado se relaciona diretamente com alguns dos traços marcantes que constituem a beleza e o fascínio do caldeirão cultural brasileiro.

É significativo observar, nesse sentido, a maneira tranqüila, aberta e saudável com que as autoridades brasileiras vêm lidando com o tema ao longo dos últimos governos, por mais diferentes que eles tenham sido entre si. Esse comportamento reflete, em grande parte, a matriz cultural mais ampla que mencionei acima. A trajetória da UDV, entre outras coisas, revela que é possível utilizar de maneira benéfica, saudável e coletiva uma substância que abre as “portas da percepção”, como dizia Aldous Huxley, citando o poeta William Blake. Para isso ela vem construindo um padrão de comportamento perfeitamente integrador, baseado no ideal do auto-conhecimento e na educação para uma vida pacifica, honesta e produtiva. Um padrão diametralmente oposto a tudo o que se relaciona com o mundo das drogas e da criminalidade. Aceitar a possibilidade de existir um experimento dessa natureza requer uma considerável abertura cultural. E a sociedade brasileira, fundada na diversidade e na mestiçagem, está demonstrando exatamente essa virtude, através do comportamento de seus governantes. Após sucessivos exames e debates sobre o tema, que tiveram início em 1986, envolvendo especialistas de diferentes áreas do saber, o Conselho Nacional Antidrogas, em novembro de 2004, autorizou de uma vez por todas o uso ritualístico do chá Hoasca no país. Ou seja, as autoridades brasileiras vêm sendo capazes de compreender todas as nuances culturais de um assunto que não pode ser tratado de forma simplista e maniqueísta.

Esperar uma abertura cultural equivalente nos Estados Unidos da Era Bush, por certo, não seria muito realista. O avanço do nacionalismo conservador e do fundamentalismo religioso criou um clima pouco propício para a aceitação institucional de uma religião de origem brasileira, amazônica, que se vale do uso ritualístico de um chá, por mais que nada exista de concreto contra ela. Para uma visão preconceituosa e estereotipada, tudo isso não deve passar de uma conspiração perversa de traficantes travestidos em mestres espirituais. Com base nesse tipo de desconfiança, começou em 1999 uma pressão do poder executivo contra os sócios da UDV nos Estados Unidos. É importante observar o fato de que a própria UDV, zelosa da sua dignidade, não aceitou continuar seus trabalhos em um ambiente repressivo, e menos ainda atuar na clandestinidade. Ao contrário, voluntariamente interrompeu a distribuição do chá Hoasca nos Estados Unidos até que as instituições daquele país aceitassem plenamente que seus propósitos eram honestos e benéficos.

Seu grande desafio, desde então, passou a ser o de provar nos tribunais, de maneira transparente, que as suposições preconceituosas eram infundadas. E que o direito à liberdade de consciência nos Estados Unidos requeria a aceitação da existência de um caminho espiritual que pode parecer exótico aos olhos das autoridades locais, desde que nada de maléfico ou desonesto tenha sido provado contra ele. De lá para cá, contrariando o ceticismo de vários analistas, os tribunais norte-americanos, demonstrando abertura e independência, mesmo sob forte pressão da procuradoria federal, vêm referendando essa posição. Após um julgamento que durou vários dias, ouvindo os argumentos das duas partes, a decisão de primeira instância, em agosto de 2003, foi francamente favorável ao funcionamento legal da UDV. Essa decisão foi avaliada por três instâncias de apelação, sempre confirmando por maioria a decisão inicial. No final de 2004, por fim, a Suprema Corte determinou a reabertura dos trabalhos da União até que uma decisão definitiva seja tomada.

É claro que a seqüência de pronunciamentos favoráveis dos tribunais norte-americanos sobre o tema está embasada em um poderoso fator cultural que ajudou a moldar a herança profunda da América – a idéia da liberdade de consciência e de religião. Um legado histórico que permanece vivo, apesar do difícil contexto pós-11 de setembro. Não se sabe, porém, qual será o veredicto final desse embate jurídico. Mas os resultados obtidos até agora parecem indicar uma significativa vitória moral e legal da espiritualidade mestiça e cabocla brasileira contra fundamentalismos, preconceitos e xenofobias.

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