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O mercado também pode ser justo

Experiências mostram que o respeito ao meio ambiente passa pela maneira como o consumidor gasta seu dinheiro. Mercado justo é contradição, mas oportunidade.

23 de dezembro de 2004 · 20 anos atrás
  • Carla Rodrigues

    Jornalista, é doutora e mestre em Filosofia (PUC-Rio), onde estuda questões éticas e políticas. Coordenadora do Centro Técnic...

Holanda, 1996: A convite do Ibase, fui conhecer algumas organizações não-governamentais que tinham relações de cooperação internacional com o Brasil. Funciona na capital, Haia, a Novib, primeira financiadora da instituição fundada pelo Betinho nos anos 80. Entre os diversos projetos visitados, o que mais me chamou atenção foi o Solidaridad, charmosamente instalado num sobrado na simpática cidade universitária de Utrecht, onde mais do que em qualquer outra cidade holandesa, a bicicleta é o transporte básico de toda a população de jovens estudantes. Naquele momento, o Solidaridad começava a sua primeira experiência de atuação no chamado “mercado justo”, tradução literal de fair trade: a certificação de café produzido conforme normas de respeito ao meio ambiente, às leis trabalhistas, e a critérios como raça, cor e gênero. Depois de três anos trabalhando na elaboração dos indicadores, em apenas um ano de atuação o Solidaridad já tinha tomado uma fatia de 3% do mercado de café na Holanda.

Todo o país começava a ser tomado por pequenas lojas de uma cadeia chamada fair trade, em cujas prateleiras se misturavam artesanato africano, camisetas de algodão produzidas em respeito ao meio ambiente, papel reciclado e pequenos objetos que seguiam alguma linha politicamente correta. Hoje, economia sustentável e comércio justo é uma das quatro áreas de atuação do Solidaridad, que além do mercado de café já atua também na certificação de frutas orgânicas e na produção de tecidos. Além disso, a instituição tornou-se uma instituição de referência em relação ao tema, e seu manual sobre fair trade já tem tradução em cinco idiomas.

Brasil, 2004: Pesquisa realizada pelo instituto Akatu pelo Consumo Consciente identificou duas categorias de consumidores interessados em fazer do ato de compra uma atitude engajada: “conscientes” e “comprometidos”. Os “conscientes” representam 6% da população brasileira e consideraram, em 42% dos casos, os cuidados ambientais por parte das empresas como primeiro critério de compra. E em 28% dos casos, as ações sociais das empresas foram o primeiro critério na escolha de quem comprar. Para os “comprometidos”, que representam 37% dos brasileiros, estes percentuais são, em ambos os casos, de 17%. O mais interessante aspecto do trabalho do Akatu é o fato de que o instituto aposta na transformação de pequenos hábitos, como fechar a torneira ao escovar os dentes, apagar a luz ao sair de um ambiente, ler um rótulo atentamente antes da compra e separar o lixo para reciclagem. Os 6% dos brasileiros classificados pela pesquisa como consumidores conscientes são aqueles que adotam de onze a treze desses comportamentos. Em segundo lugar estão os 37% de comprometidos, que fazem entre 8 e 10 dos comportamentos da pesquisa.

A lista do Akatu acaba apontando para um comportamento, digamos, econômico, de redução do desperdício. Por isso, o Akatu encontrou um alto percentual de consumidores conscientes nas classes C e D (52%). Talvez esteja exatamente aí uma das grandes diferenças com a Holanda, um país rico onde os produtos de comércio justo são oferecidos a preços bem mais altos do que seus similares politicamente incorretos. Os papéis artesanais da Yú são um ótimo exemplo: confeccionados de casca de cebola, alho, folha de bananeira, flor de macela ou capim carneiro, custam em média R$ 2 por folha A4, dessas de uso na impressora doméstica. As fibras naturais dão um charme especial ao papel que, no entanto, ainda é de uso restrito.

É na invasão de alimentos orgânicos nas prateleiras dos supermercados que está um dos exemplos brasileiros que melhor combina a onda do mercado justo com o que há de mais atualizado em preocupação com a saúde e lucratividade. Até 30% mais caros do que os alimentos comuns, os orgânicos reúnem que interessam ao consumidor – menos contaminação, por exemplo –, fazem bem ao meio ambiente – menos agrotóxico despejado no solo – e ao mercado, que agrega valor aos produtos e aumenta a margem de lucro, uma preocupação da indústria alimentícia nos últimos 25 anos. A carne boi orgânica, por exemplo, pode custar até três vezes mais, principalmente no mercado externo, e o Brasil é um grande exportador de carne bovina. As exigências são muitas – os ingleses que aderiram à carne orgânica, por exemplo, não consomem o produto se o boi for castrado – , mas o preço compensa. O que mais anima o mercado de alimentos orgânicos no Brasil são os números internacionais: nos EUA, cresce a taxas de 20% ao ano, percentual mais modesto do que os 25% de crescimento nos países da Europa.

O que o Solidaridad na Holanda descobriu muito rapidamente é que para que haja mercado justo, é preciso haver seriedade nos critérios e na certificação dos produtos. Os produtores brasileiros, por exemplo, se interessam em mostrar não apenas os efeitos benéficos para o meio ambiente ou para a saúde, mas também querem valorizar o lado da responsabilidade social. Tudo isso conta pontos a favor numa cesta de componentes que devem ser primeiro certificados e depois conhecidos pelo consumidor na hora da compra. O Akatu e o Instituto Ethos estão menos voltados para produtos específicos e mais direcionados para convencer o consumidor que quando ele põe a mão no bolso, tem poder de compra suficiente para impor tendências, exigir critérios e promover isso que parece, à primeira vista, uma contradição em termos: um mercado justo.

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