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Identidade secreta

Quem me conhece “executiva” se surpreende ao descobrir minha identidade secreta de “escaladora”, e vice-versa. Mas esporte radical não é sinônimo de loucura.

13 de maio de 2005 · 20 anos atrás

O ser humano é um animal engraçado. Vive em função de uma ilusão de normalidade, atendo-se ao processo definido pela maioria como o padrão mais adequado para ser seguido se você quiser, ao longo de sua vida, desfrutar de uma outra ilusão – a da felicidade garantida, segura e absoluta. Vivendo sob essa aura padronizada, ele não consegue se acostumar com a visão de outros seres da mesma espécie realizando atividades não-convencionais, arriscadas, imprevisíveis e, o pior, que trazem muita alegria aos seus executores, como os esportes de aventura. Filosófico isso, não? Mas esse não é o ponto em que quero chegar, afinal eu gosto mais de criticar do que de filosofar. A questão é que está na moda observar os loucos, diferentes e/ou desocupados, adjetivos que já ouvi e li inúmeras vezes, seja pela boca do povo, pela televisão ou pelos periódicos impressos (essa semana saiu uma revista analisando como os “loucos” são mais felizes). Divertida mesma é a inconformidade que surge quando é descoberta a identidade secreta desses seres alienados. São administradores, engenheiros, jornalistas, médicos, dentre outros profissionais, na maioria dos casos bem sucedidos, apaixonados pelo que fazem e realizados nessa dualidade de perfis tão absurda para o senso comum.

“Você só pode estar brincando!” – é a mesma afirmação que escuto em duas situações semelhantes. Em uma posso estar vestindo um terninho, óculos no rosto, tomando um café e discutindo algumas premissas abordadas na reunião que acabou há 10 minutos, com parceiros de negócios. Sempre aparece alguém para dizer “vocês sabiam que ela escala?” (aliás, é impressionante como esse tema aparece nos momentos mais non-sense neste tipo de encontro. Seria mais fácil assumir que não está mais afim de falar de trabalho e que quer mudar de assunto). Dou aquele sorriso amarelo e sem jeito de quem já sabe como será a conversa daí em diante e, depois de ter que mostrar a minha mão para provar a veracidade do fato, passo algum tempo explicando que é apenas uma atividade e que não há nada demais nisso. Já na outra situação ocorre o mesmo, porém de maneira menos intensa. Estou no final daquela via, com uma bermuda velha e uma camiseta desbotada, com o rosto vermelho porque esqueci de passar o protetor solar, sem óculos, pois ali eu utilizo muito mais do que apenas o sentido da visão para enxergar as coisas, com as mãos imundas, mas mesmo assim comendo aquele biscoito que no momento é o banquete tão desejado. Olho para o meu parceiro de escalada e comento como seria bom se eu pudesse ter mais um dia por semana para viver naquela outra realidade, um dia a mais em que eu não precisasse usar o meu modelito executiva e… – “Peraí! Você usa terno?” E lá vamos nós novamente…

Entretanto, é no meio dos seres humanos “normais” que as reações são mais latentes, afinal, entre os montanhistas, mal ou bem, é natural que todos imaginem que eu desenvolva alguma atividade profissional. Já no meio convencional eu tenho a personalidade assaltada no instante em que sou descoberta. Não sou mais a Ana Araujo, sou a Ana-que-escala. Lembro de um antigo diretor que, dependendo do público presente nas reuniões, me apresentava como Ana, a “escalatriz” (porque ele achava a palavra escaladora muito feia). Dá para imaginar o quão contente eu ficava, pois além de ser jovem e ser mulher, ainda tinha o estigma de “não-convencional” para superar durante o meu posicionamento profissional.

Antes de ser acusada de azeda, quero deixar claro que eu entendo perfeitamente a curiosidade inerente ao fato de conhecer uma pessoa que exerça uma atividade diferente. Eu mesma possuo uma curiosidade felina e sempre que tenho a oportunidade de conhecer alguém que pratique esportes como mergulho, pára-quedismo, kite surf ou o próprio surf, metralho a pessoa com os meus questionamentos, peço para contar histórias de grandes experiências e dos maiores “perrengues”, além de levantar todas as informações sobre os equipamentos necessários. Com um pouco de esforço, também entendo que, devido a uma questão cultural, os praticantes de atividades outdoor sempre foram vistos como um segmento de pessoas com perfil oposto ao dos profissionais do mercado. Difícil é compreender o por quê da distância que é imposta entre esses “mundos”. Creio que grande parte desse problema vem do termo “radical” – fulano é radical, beltrano pratica um esporte radical. Segundo o dicionário, radical pode significar um indivíduo defensor de reformas profundas e revoluções; arrojado, inovador, destemido; ou não convencional.

Analisando sob esse aspecto, admito que esses esportes podem ser caracterizados desta maneira. Mas convenhamos, também é radical trabalhar oito (rs…doze) horas por dia, correr atrás de auto-realização profissional, social e emocional (cada vez mais satisfeitas por falácias expositivas do que resultados efetivos), ser um bom pai/mãe/filho/esposa, pagar as contas, blindar o carro e consumir todas as inutilidades que encontrar pela frente para satisfazer a frustração dessa eterna busca do ideal. Destemido também é o indivíduo que faz tudo isso e não usufrui de uma realidade paralela, não pratica uma atividade que traga tranqüilidade, paz, ao mesmo tempo em que libera do stress e traz uma felicidade plena e simples, porém real e tangível. Mais arrojado ainda é acreditar que bicho-grilo consegue bancar uma atividade outdoor. A iniciação, a prática e a manutenção exigem investimentos financeiros relevantes. Além dos respectivos equipamentos serem caros, alguns esportes dependem do desembolso de mais dinheiro para praticá-los, como o pára-quedismo, onde o praticante precisa pagar o “frete” do avião para chegar no alto. Isso sem mencionar os casos de patrocínio, obviamente. Mas o percentual de patrocinados frente ao total de praticantes é pífio. O que quero dizer é, o abismo entre os mundos não é tão profundo quanto se imagina. É só uma questão de ponto de vista.

O número de praticantes de atividades outdoor aumenta exponencialmente. As pessoas estão ficando mais estressadas e vêm buscando e descobrindo os benefícios de extravasar a tensão usando a adrenalina e a endorfina como aliadas. De bônus, ainda tomam o gosto pelo auto-conhecimento, experimentam momentos de verdadeira paz, degustam os prazeres de voltar a ter contato com a natureza e curtem visuais indescritíveis. A tendência é cada vez mais encontrarmos profissionais bem sucedidos neste meio que, segundo os menos esclarecidos, é destinado para os loucos e irreverentes, e que não combina com pessoas mais centradas e objetivas. Podemos todos ser felizes, mas cada um na sua. Será?

Definitivamente, o ser humano está se tornando cada vez mais um animal muito engraçado.

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