A notícia dos jornais da última semana, que anunciaram o relançamento da Bolsa de Valores do Rio de Janeiro, é de certo modo animadora. Isso porque se pretende criar um mercado futuro de energia. O primeiro leilão negociou energia elétrica do mercado livre. Foram fechados 263 contratos de curto prazo, de um mês, que movimentaram 3,7 milhões de reais. O próximo passo, no dia 15 de setembro, é lançar as negociações dos projetos de energia limpa. Este é o pontapé inicial da negociação de créditos de carbono na Bolsa de Valores do Rio, seis meses depois da entrada em vigor do Protocolo de Kyoto.
O Protocolo de Kyoto abre, portanto, perspectivas reais para que recursos externos sejam direcionados a projetos no Brasil que atinjam o desenvolvimento sustentável e contribuam para reduzir o efeito estufa através do Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL). É importante resgatar a idéia inicial desta história toda. Através do MDL, projetos com reduções certificadas de emissões de gases de efeito estufa (GEE) poderão gerar créditos de carbono, negociáveis com os países desenvolvidos. Mas, conforme o Artigo 12 do Protocolo de Kyoto, esses projetos têm que atingir a sustentabilidade, o que significa atender a critérios econômicos, ambientais e sociais. Certamente o critério social tem sido pouco explorado. Será que é realmente possível combinar projetos economicamente viáveis, ambientalmente sustentáveis e socialmente justos?
Existe pouca pesquisa até agora para responder essa questão. Muitas atenções estão focadas incansavelmente (e com sentido) na questão ambiental de várias ações, mas esquecem que, no meio de tudo isso, a questão social deve estar no mínimo resolvida para que alguns projetos comecem a “andar”. Um dos exemplos é o projeto de aproveitamento de biogás em aterros sanitários. Eles são apontados como destaque para o MDL porque reduzem as emissões de GEE liberados na decomposição do lixo, capturando o metano do aterro, que é o biogás, para a geração de energia. Como o metano possui um poder de aquecimento global muito menor depois que é queimado e transformado em dióxido de carbono, o benefício do biogás é duplo: reduz o consumo de combustíveis fósseis e diminui a capacidade de aquecimento do carbono que seria emitido pelo lixo. Espera-se que um número considerável desses projetos se espalhe pelo Brasil nos próximos anos, contribuindo para o gerenciamento de resíduos sólidos, que é um dos grandes problemas urbanos, independente do tamanho dos municípios. A maior parte está nos famosos “lixões”, ou seja, depósitos não manejados e que estão no limite de armazenamento. Segundo censo de 2000 do IBGE, os lixões são o destino final dos resíduos sólidos em 64% dos municípios brasileiros.
Isso traz uma série de problemas ambientais e sociais, e encontrar uma destinação adequada, como o aproveitamento energético do lixo, provoca um impacto positivo devido aos benefícios de emissões evitadas, tanto pela transformação do metano em dióxido de carbono, de menor poder de aquecimento global, quanto por evitar a queima de combustíveis fósseis para o mesmo fim. Um trabalho publicado por Luciano Oliveira e Luís Pingueli Rosa estima em 50 TWh (tera watt horas) o potencial energético dos resíduos sólidos no Brasil. Isso corresponde a 17% do consumo brasileiro de eletricidade. Mas esses projetos também podem provocar impactos negativos. Se a queima de resíduos sólidos for mal controlada, não tiver um rígido sistema de certificação, pode gerar poluentes atmosféricos que afetam a saúde das populações no entorno dos locais onde ocorre a queima. Pode parecer absurdo para os olhos de alguns, mas existe um contingente de pessoas que encontra no lixo sua subsistência. Esse elemento também deve ser considerado na avaliação.
Outra área que tem recebido bastante atenção da mídia, e tem aberto os olhos do mercado estrangeiro, é o uso da biomassa para substituir combustíveis fósseis. Como o Brasil foi pioneiro na substituição da gasolina pelo álcool produzido a partir da cana de açúcar, agora existe uma grande expectativa em torno da substituição de parte do óleo diesel por óleos vegetais (biodiesel) a partir de diversas culturas, sendo as sementes de mamona e de dendê as mais citadas. Programas que incentivam a agricultura familiar, a agricultura orgânica tem efeitos sociais positivos, principalmente por mitigar o grande desemprego no campo observado no Brasil nas últimas décadas. Assim, o incentivo à pequena produção rural, possível tanto pelo biodiesel, quanto pelo plantio florestal, pode gerar os impactos sociais, que aliás, como escrevemos no começo da coluna, é requisito para que um projeto seja considerado sustentável, além, é claro, de contribuir para a redução do aquecimento global.
Mas a mesma veemência usada para ressaltar os aspectos positivos de projetos de energia limpa, a partir da produção em massa de um biocombustível, não é usada para dizer que tais projetos podem trazer também sérios transtornos sociais e ambientais. A história pode ser reprisada. Existe um grande risco de o biodiesel repetir os erros do Proálcool e se tornar um multiplicador da concentração fundiária, da mecanização e do monocultivo. Esses elementos só acentuam a exclusão social no campo. Também não se diz que a expansão do principal cultivo de óleo vegetal produzido no país aconteceu em grande parte às custas de áreas nativas do Cerrado e mesmo da Floresta Amazônica, como mostra o estudo feito pelo Grupo de Trabalho sobre Florestas do Fórum Brasileiro de ONGs e Movimentos Sociais para Meio Ambiente e Desenvolvimento. Embora existam polêmicas sobre o assunto, restam poucas dúvidas de que a expansão desordenada de uma oleaginosa por monocultivo poderá trazer, certamente, graves pressões para a conservação das mata nativas, trazendo danos para a biodiversidade e mesmo para o aquecimento global.
Uma terceira questão, menos divulgada, mas não menos importante, é o aproveitamento para projetos de reflorestamento de terras degradadas, abandonadas ou de baixa produtividade agrícola. Nesse caso, as reduções certificadas de emissões acontecem pela captura do carbono na recomposição florestal. Como o Brasil tem uma enorme vocação florestal, também tem grandes vantagens comparativas nesse setor, embora o volume de créditos de carbono gerados desta maneira tenham limites máximos estabelecidos pela regulamentação do Protocolo de Kyoto. Uma questão: é possível dizer que a expansão do reflorestamento com base no monocultivo de espécies exóticas é desenvolvimento sustentável? Pouca atenção se dá a seus efeitos indiretos. Um desses efeitos pode ser o aumento da concentração fundiária por causa das economias de escala das grandes plantações. Além disso, há riscos de perda de biodiversidade, dado o menor ciclo de rotação de espécies exóticas (como Pinus e eucalipto).
É preciso aprofundar as questões para poder negociar economicamente. A visão tecnocrática tende a concentrar esforços sobre a viabilidade técnica e financeira dos projetos, mas não se pode assumir que os demais problemas encontrarão soluções “naturais”. Por isso, é preciso avançar também nos aspectos sociais, junto com a análise dos aspectos técnicos e econômicos dos projetos considerados.
É preciso ressaltar o caráter comparativo entre as opções de mecanismos. Diversos estudos setoriais têm sido feitos, analisando isoladamente cada uma dessas opções, e a bibliografia é extensa. Mas o MDL busca introduzir componentes de mercado na busca de soluções mais eficientes e poucos trabalhos têm analisado de maneira comparativa, as diferentes possibilidades que os investidores terão. O que falta é dar um passo adiante e comparar os retornos esperados de cada projeto, não ficando restrito apenas aos aspectos “tradicionais” – quantidade de emissões evitadas e necessidade de financiamento – considerando também a sua capacidade de inclusão social. A negociação de créditos de carbono na Bolsa de Valores é um grande passo. O segundo é buscar projetos que concretamente tenham resultados sustentáveis.
*Carlos Eduardo Young é economista, professor de Economia do Meio Ambiente da UFRJ e Doutor em Economia pela University College London.
*Priscila Geha Steffen é paranaense, jornalista ambiental e também colunista de música brasileira do Jornal do Estado, no Paraná.
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