O que acontece com a água da descarga da sua casa? Eu conheço pouco ou nada do sistema de esgoto brasileiro, mas sei que muita coisa é jogada sem tratamento nenhum no mar, nosso lixão quase inesgotável que reclama em silêncio dos maus tratos de anos a fio. Nem tão em silêncio assim ao menos para mim. Desde que fiquei grávida, meu médico me avisou que eu não devia comer peixes de mar aberto, como atum, pela alta concentração de mercúrio, causada pela poluição – mas esta é apenas uma das inúmeras provas de que os oceanos, apesar de parecem infinitos, são finitos e dão mostras de que estão se esgotando.
Certa vez, conheci Bonnybrook, uma das estações de tratamento de esgoto de Calgary, na província de Alberta, uma cidade que há seis meses atingiu a marca de um milhão de habitantes e já é a quarta maior do Canadá. Toda sua água vem de glaciares das Montanhas Rochosas Canadenses que, ao derreterem, se transformam em rios, como o Bow e o Elbow, ambos cortando a cidade. O aquecimento global já dá mostras de seus efeitos por aqui, diminuindo o tamanho desses glaciares e, conseqüentemente, a fonte de água da população.
A água, apesar de bastante clorada, é potável e podemos beber direto da torneira. Infelizmente, ainda se usa a mesma água potável para as privadas, mas até a prefeitura incentiva a troca da descarga ou de toda a privada para uma mais econômica, dando 50 dólares canadenses na troca. Essa descarga, chamada de ‘dual flush’, possibilita o uso com duas quantidades diferentes de água, uma para sólidos e outra para líquidos.
No verão, apesar de estarmos em uma região extremamente seca, chove o suficiente para ser possível usar apenas a água da chuva para regar os jardins, mas nem todos sabem ou fazem isso. A Clean Calgary Association, ONG onde eu trabalho, tem um extensivo programa de recuperação e venda de barris industriais de plástico que, adaptados, servem para a captação da água da chuva através de calhas nos telhados das casas. A razão maior para isso é o absurdo aumento no consumo de água durante o verão só por causa dos jardins.
A prefeitura opera dois centros de tratamentos de água do esgoto da cidade, sendo que Bonnybrook é o maior deles e existe desde 1932, tendo passado por quatro reformas, a última em 1994. É ali que estive, seguindo o curso da água das casas pelo tratamento até ser despejada de novo no rio Bow, tão limpa quanto quando entrou em nossas casas. O sistema é tão eficiente que recebeu a nota A+, a melhor – e única! – de todo o país.
Em 2002, Bonnybrook serviu uma população de 750 mil habitantes e tratou 370 mil m3/d de esgoto por dia. O curso do esgoto começa pela separação do lixo jogado no sistema, como latas, papéis, absorventes, camisinhas e tudo o mais que se possa imaginar. Seis máquinas fazem a separação, direcionando o esgoto para quatro câmaras aeradas onde é injetado ar comprimido, produzindo um movimento em espiral que faz com que os sólidos ainda presentes no esgoto fiquem suspensos e os inorgânicos mais pesados como areia, pedras etc., fiquem no fundo. O resultado sólido desses dois primeiros processos é enviado para o aterro sanitário – é lixo da mais pura qualidade — que, aliás, nem deveria estar ali, se cidadãos conscientes jogassem o lixo no lixo.
O líquido segue, então, para os primeiros limpadores – 14 tanques a céu aberto onde, após apenas duas horas, os sólidos que ainda não foram eliminados descerão para o fundo por gravidade. Esses sólidos são enviados automaticamente para três ‘engrossadores’. Os óleos, espumas e tudo o que ainda flutua são enviados para 12 digestores anaeróbicos. O esgoto que sobrou será direcionado para os bioreatores do segundo e terceiro tratamentos. Dez bioreatores, separados por zonas aeróbica, anaeróbica e anóxica (anoxic – sem oxigênio mas com nitrito/nitrato – nitrite/nitrate), irão remover o nitrogênio e o fósforo, misturando a água com microorganismos como bactérias, amebas, ‘ciliates’, ‘rotifers’, ‘flagellates’ etc que usam nitrogênio, fósforo, matéria orgânica e outros poluentes como comida e energia para crescer e se reproduzir e, ao mesmo tempo, purificam a água. O resultado é chamado de ‘licor misturado’.
Esse ‘licor’ é enviado, então, aos 30 clareadores secundários, onde permanecerão por cerca de sete horas. O lodo desce ao fundo pela gravidade e a água que sai dos clareadores será então enviada às luzes ultravioletas para desinfetar – a luz ultravioleta quebra o material genético dos microorganismos e os impossibilita de se reproduzir, não sendo mais capazes de gerar doenças. A maior parte deste lodo será enviada novamente aos bioreatores para repopulação pelos microorganismos. O excesso é enviado a cinco tanques flutuantes, para engrossar. Novamente, a espuma e o óleo são retirados da superfície e enviados aos digestores anaeróbicos, que irão digerir tudo em 25 dias por uma bactéria anaeróbica (que vive apenas sem a presença do oxigênio e em um ambiente mantido controlado a 35oC).
Essas bactérias naturais irão transformar esses materiais orgânicos complexos em substâncias simples e estáveis como água, metano e dióxido de carbono. O lodo resultante deste processo não tem tanto cheiro e muitos organismos causadores de doenças são destruídos. Esses digestores produzem cerca de 40 mil metros cúbicos por dia de gás digestores, compostos aproximadamente de 65% de metano e 35% de dióxido de carbono. O metano produzido nos digestores é queimado como combustível em um dos quatro geradores de eletricidade e aquecimento, produzindo 50 mil kw/h por dia de energia elétrica, o que equivale a 50% da necessidade de Bonnybrook, e cerca de 65 mil kw/h por dia é produzido em calor, que será usado nos digestores anaeróbicos e em Bonnybrook (escritórios etc).
O lodo final é, então, reaproveitado em um programa chamado CALGRO e que consiste em injetar este material orgânico (biosolids) a poucos centímetros do solo, para fertilizar fazendas e plantações de alfafa, canola, trigo, aveia e cevada nos arredores de Calgary. Este material é um excelente fertilizador orgânico e um ótimo condicionador do solo, além de ser uma forma perfeita de reciclar um valioso produto para o meio ambiente. Calgary produz cerca de 20 milhões de quilos ou 9.500 caminhões de material orgânico por ano, resultando em 140 bilhões de litros de água tratadas e jogadas de volta ao rio Bow! A água que sai do sistema de tratamento de luzes UV é jogada de volta no rio Bow, alcançando o padrão exigido por Alberta Environment, ou seja, é uma água clara, sem cor, com muito oxigênio dissolvido e poucos orgânicos sólidos, fósforo, nitrogênio (ammonia nitrogen) e sem microorganismos patogênicos. Para confirmar essas afirmações, o laboratório de Bonnybrook trabalha sem parar, todos os dias do ano, recolhendo amostras cerca de quatro vezes por dia de todas as fases do tratamento. Mas não pense que é assim em todo o Canadá! No começo desta coluna, eu alerto para o fato de Calgary ter um excelente sistema de tratamento de esgoto e se sobressair neste imenso país. É triste constatar, mas algumas cidades, como Victoria, a capital da Colúmbia Britânica, ainda joga seu esgoto no mar, sem tratamento algum – quem sabe na esperança de que, algum dia, um peixe sem escrúpulos irá digerir toda esta nossa sujeira milagrosamente.
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Muito bom!
Sinceramente ainda não consigo entender o porque de o ser humano não aproveitar melhor a água da chuva.
Mesmo em países desenvolvidos não se tem a atenção suficiente com o sistema de esgoto. Mesmo assim achei incrível que a prefeitura incentiva a troca da descarga por uma mais econômica, inclusive pagando em dinheiro. Já é um grande passo.
eu nvo le issu nem por nutella ._.