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Democracia da água acontece com a participação da sociedade civil, diz autor da Epopeia do Saneamento

Pesquisador da água, Márcio Santa Rosa comenta desafios para a universalização do saneamento. Livro recém publicado percorre história do saneamento no Brasil e no mundo

Michael Esquer ·
16 de dezembro de 2022 · 1 anos atrás

Invisibilizado e relegado na visão de muitos, o saneamento básico e sua universalização tem se tornado cada vez mais uma pauta emergencial diante da busca pela garantia da saúde humana e ambiental. Por conta desse objetivo ainda não alcançado – sobretudo no Brasil, onde quase metade da população ainda não dispõe de acesso a rede de esgoto – e seus impactos persistentes, que o livro “A Epopeia do Saneamento: da revolução sanitária às tecnologias do futuro” reúne história, engenharia sanitária, política, urbanismo e economia para apresentar caminhos deste desafio que enfrenta grande parte da humanidade.  

Recém publicada, a obra apresenta 20 capítulos que percorrem a trajetória do saneamento desde o seu começo, séculos antes de Cristo, até sua história mais recente. “A ideia do livro é finalizar como um bem comum. O livro está dividido em cinco partes. A parte final são as novas tecnologias, tanto que o subtítulo do livro é ‘da antiguidade até chegarmos nas novas tecnologias”, disse durante entrevista a ((o))eco o engenheiro civil Márcio Santa Rosa, que junto com Aspásia Camargo – doutora em Sociologia pela Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais da Universidade de Paris –, é um dos autores do livro. 

Ao mesmo tempo, o livro analisa decisões acertadas e equivocadas de gestores ao longo da trajetória do saneamento, assim como aponta caminhos possíveis para a superação desse problema que é testemunhado Brasil afora: a poluição da água e a falta de visibilidade quanto à importância do sistema de tratamento de esgoto. “Tem que sempre fazer um arranjo em que União, estado e município se entendam no sentido que essas políticas públicas possam fluir com recursos financeiros e capacidade de gestão para poder você fazer essa expansão do saneamento”, acrescenta Rosa, que também é técnico e pesquisador da água. 

Estação do Guandu – Foto: TRT RJ/Flickr.

Para Márcio, que traz na bagagem a experiência de atuação em comitês de bacias hidrográficas, além da participação nos programas de Despoluição da Baía de Guanabara (PDBG), de Saneamento dos Municípios do Entorno da Baía de Guanabara (Psam) e na coordenação do Plano de Gestão Ambiental e Sustentabilidade da candidatura do Rio para os Jogos Olímpicos de 2016, a participação civil é peça fundamental na busca pela implementação de um saneamento básico universalizado. “Quando você consegue absorver a participação da sociedade civil, através de comitês e de outras formas de associação para decidir o que é melhor para as bacias e sub-bacias, é que realmente a democracia da água se processa”, acrescenta Rosa. 

O livro ainda homenageia mais de 100 personalidades pela atuação relevante no setor. Entre eles, a obra mostra Dom Pedro II, a quem descreve como responsável por trazer ao Brasil uma maneira de tratar esgoto e água potável que, na época, tinha acabado de surgir em Londres. Ainda de acordo com os autores, o Rio de Janeiro foi a terceira cidade do mundo a viver a revolução sanitária, na época recém surgida na Inglaterra.

((o))eco: O livro se chama “Epopeia do Saneamento” porque ele, de fato, faz uma viagem pela história do saneamento no mundo e no Brasil? Ou tem algum outro motivo? 

Márcio Santa Rosa: O livro parte da antiguidade, inclusive como eram as questões lá em séculos antes de Cristo. A gente queria dar essa abordagem de como essa trajetória da água e dos recursos avançaram no tempo. [Sobre o título] é muito curioso porque a gente chama o livro de “Epopeia do Saneamento”. E a gente foi buscar essa questão da “epopeia” por conta de que são sempre as grandes conquistas da mitologia. E na mitologia da Babilônia, por incrível que pareça, havia o caos, e a criação do homem, de todos os seres, vem de dois seres da água, da água doce e da água salgada. É um mito genial, maravilhoso, que a gente se apaixonou por essa história da epopeia e acabou virando “Epopeia do Saneamento”. 

Como você descreveria a situação do saneamento básico no Brasil? Quais são os desafios e avanços para a universalização desse serviço dentro do Brasil?

A gente tem uma questão bastante preocupante, não só brasileira, nem tão pouco só regional, que é a escassez hídrica. A gente tem questões que implicam mudanças climáticas, a gente tem secas muito graves em lugares que tem pouca água, em outros lugares a gente tem água demais. Tem uma disfunção de equilíbrio da questão hidrica. A gente sabe que na região Amazônica tem água doce que não acaba mais, a proporção é incrível. Ao mesmo tempo, é também a população brasileira que mais sofre com escassez, ao passo que no Sudeste e no Sul tem muita gente e uma água que é disputadissima porque é uma água que tem muita pressão antrópica, muito uso, que polui, que contamina e tudo mais. 

E os efeitos que existem de outros processos ambientais como a questão climática, que implica na escassez da água, os deslizamentos, as inundações, que são problemas basicamente urbanos e que recorrentemente são vidas que se perdem e pessoas que perdem seus pertences, suas casas. A gente tem todo um desequilíbrio tanto do ponto de vista hidrico da oferta e da demanda quanto da gestão humana dos recursos hídricos.

O próprio ordenamento urbano, a localização das casas, tem regiões que você não tem nem água, quando chega são dois dias, três dias. Pelo saneamento você vê a questão da exclusão social claramente. Tem lugares no Rio de Janeiro, que você tem regiões muito bem servidas de água e outras regiões da zona norte, na zona oeste e na região metropolitana no Rio, que você tem lugares que até tá perto às vezes das áreas de captação da água, como o caso da Baixada Fluminense, Seropédica, Nova Iguaçu, mas é a população que menos recebe uma água boa, bem tratada. Isso sempre foi um problema porque as políticas nunca conseguiram criar um fio histórico, uma cronologia de produção política da água e do saneamento que pudesse sempre acompanhar a curva da população crescente. 

Em um capítulo, que é o dois, a gente para e pensa a questão do Fórum Mundial da Água, que a gente conseguiu realizar aqui em 2018. Foi uma reunião maravilhosa em Brasília, com a participação da sociedade civil. Ali tem vários documentos de orientação tanto para os Estados, quanto para a questão Federativa, para os entes que participam dessa gestão, para dizer quais seriam as metas e como se conseguir o que é o mais importante do saneamento básico: a universalização. Ou seja, água boa bem tratada e saneamento coletado nas estações e devolvido para a natureza livre. 

Na viagem que o livro faz por essa trajetória do saneamento, ele apresenta 120 homenageados, sendo o primeiro deles Dom Pedro II, que a obra conta ter trazido para o Brasil uma nova maneira de tratar o esgoto e a água potável recém tinha surgido em Londres. O livro até diz que o Rio de Janeiro se tornou com isso a terceira cidade do mundo a viver uma revolução sanitária surgida pouco tempo antes na Inglaterra. O que mudou de lá pra cá nesse protagonismo?

Nós tivemos esse privilégio, mas quando a gente chega no século XX, a gente vai perdendo a capacidade de acompanhar o crescimento urbano do Rio de Janeiro, até como capital. Na estrutura de organização seria importante sempre a capacidade de você ir estendendo a malha de encanamentos para cidade, na medida que ela ia crescendo. Mas tem sempre o problema econômico dos Estados às vezes estarem com mais dinheiro, menos dinheiro. O Governo Federal tem problemas políticos, às vezes privilegia mais uma região que outra. [Com isso], o Nordeste foi ficando com menos condições de receber recursos, e a região foi ficando mais prejudicada com essa falta de recurso e aí esses planos não conseguiram dar um equilíbrio do atendimento da população crescente. 

Nesse cenário, então, qual seria o papel de um gestor para conseguir acompanhar a busca pela universalização do saneamento, de uma forma que contemple todos de forma democrática?

Uma coisa é certa: em termos de sistema, de políticas públicas de água, nós estamos muito bem servidos, não é esse o problema. Você tem políticas nacionais de saneamento e áreas até chegar no município, que é o mandatário da decisão sobre a questão da água. Isso sempre foi um problema porque o município não decide sobre os recursos hídricos, o Estado e a União decidem. O município decide sobre as políticas de urbanização, do uso solo, da questão climática, da questão da saúde e do meio ambiente como um todo. [Por isso] você tem que sempre fazer um arranjo em que União, Estado e município se entendam no sentido que essas políticas possam fluir com recursos financeiros e capacidade de gestão para poder você fazer essa expansão do saneamento. 

Com o livro recém publicado, qual a expectativa em torno da obra? Espera que ela possa contribuir com soluções para o problema da não implementação da universalização do saneamento no País?

A ideia do livro é finalizar como um bem comum. O livro está dividido em cinco partes. A parte final são as novas tecnologias, tanto que o subtítulo do livro é “da antiguidade até chegarmos nas novas tecnologias”. Assim como está acontecendo em todas as áreas econômicas, em todas as áreas da vida em sociedade hoje, a tecnologia mudou completamente a vida das pessoas. Você tem hoje uma capacidade tecnológica de produzir dados com velocidade, eficiência, eficácia para resolver qualquer tipo de problema. Isso naturalmente iria também favorecer que as companhias de saneamento pudessem usufruir dessa capacidade de produzir informação e gestão a partir da Inteligência Artificial e de todos esses dispositivos, instrumentos que hoje a gente tem com essa revolução. 

Foto: Divulgação

Tudo isso hoje você reproduz digitalmente e você consegue antecipar problemas. A questão da tecnologia é uma coisa que a gente debateu no livro, mas a gente apostou também muito nas soluções que não são necessariamente aquelas que são mais caras como essas tecnologias. [Por exemplo, em algumas situações] você consegue fazer um tratamento de esgotamento por meio de planta, de filtração através da própria natureza e consegue produzir uma água, lá no final, que tá limpa, inclusive aproveitando esses recursos. 

Hoje a tecnologia traz a possibilidade de você pegar o que é resíduo do esgotamento sanitário e transformar em energia. A gente tem soluções como o reuso de água, que é um negócio que traz uma economia, um ciclo de economia no saneamento fantástico de recursos financeiros e aproveitamento de restos para vários usos. 

A gente dedicou um capítulo a como é que o saneamento deixa de ser só saneamento básico e passa a ser saneamento ambiental. Isso significa que você está olhando não só a questão das canalizações da rede física material do serviço de abastecimento e de tratamento, mas você vê a água dentro do contexto verde azul da cidade que a gente chama de economia azul e verde. Isso significa que você está se preocupando com a preservação de mananciais em torno da água que nasce. Ou seja, você tem toda uma visão da economia verde do sistema e que a água faz parte dele, dentro do ciclo biológico com a natureza. 

  • Michael Esquer

    Jornalista pela Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), com passagem pela Universidade Distrital Francisco José de Caldas, na Colômbia, tem interesse na temática socioambiental e direitos humanos

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Comentários 1

  1. Fábio Carvalho diz:

    O texto tem alguns equívocos,(importante verificar as fontes).

    Pois o número de ações de Resex Chico Mendes não diminuiu nos últimos anos (pelo contrário o recorde histórico é recente).

    E também, o desmatamento esta em queda (dados Podes e Deter).