Invasões, incêndios, vândalos, batalhas campais, membros decepados, sacerdotes, mortes. A reforma agrária brasileira tem cenas e personagens que lembram filmes protagonizados por bárbaros como o Conan protagonizado pelo hoje governador Arnold Schwarzenegger.
Ela também é um desastre, como mostram as estatísticas de permanência dos assentados em seus lotes, evolução de sua renda e emancipação em relação aos “bolsa-esmola” do governo federal. Parte deste fracasso se deve ao fato de que, como outras políticas públicas brasileiras, a reforma agrária se baseia em premissas falsas. O ex-presidente do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), Xico Graziano, que entende do assunto, já escreveu sobre uma destas, a suposta abundância de latifúndios improdutivos no Brasil. Quando os tais latifúndios foram procurados para serem desapropriados, simplesmente não estavam lá e o governo federal teve que apelar para outras estratégias.
A outra premissa falsa é a existência de multidões de agricultores sem-terra que necessitam apenas receber propriedades agrícolas para se tornarem produtores rurais. Coisa curiosa em um país onde quase 80% da população é urbana.
Como também mostrado por Graziano, o que o Brasil tem, de fato, são multidões de sem-emprego que carecem de qualificação profissional e têm espaço nulo em um mercado de trabalho cada vez mais exigente. Esta multidão de sem-educação, de origem majoritariamente urbana, também carece de familiaridade com a agricultura. Para a maioria dos sem-emprego a inscrição em um programa de reforma agrária representa acesso a uma complementação de renda (vinda dos auxílios do governo) e uma possibilidade de negócios futuros, quando puderem vender seus lotes. Afinal, a lei de Gérson é o mote do Brasil.
Agravando a situação, a vasta maioria do campesinato brasileiro — entre os que já plantaram alguma coisa na vida — domina apenas técnicas neolíticas de corte-e-queima e roça de toco, ignorando técnicas mais sustentáveis e produtivas conhecidas e praticadas desde milhares de anos. É deprimente comparar o camponês brasileiro médio com culturas indígenas pré-colombianas que transformaram desertos e altiplanos em terras produtivas que assim se mantém até hoje. Este vergonhoso primitivismo técnico, filho de crônica falta de educação, cultura e qualificação, atributo maior da massa de trabalhadores brasileiros, impede que a maioria dos assentados vá além da agricultura de subsistência.
É claro que esta situação interessa a muitos no controle do processo de reforma agrária. No Brasil, que não se livra de messianismos e sebastianismos, populações que dependem de “auxílios” dados por um magnânimo “pai dos pobres” (pai também no sentido de gerador) são um prato cheio para políticos que vivem do assistencialismo. Também são o mercado para religiosos messiânicos e seus duplos ideológicos dos “movimentos sociais” que pregam um arcaico socialismo maoísta que segue a máxima de seu ideólogo-mor de que as massas são gado a ser tangido para cumprir os propósitos dos cabeças do movimento. O cientista político Marcos Aguinis sintetizou o que já foi observado por muitos ao escrever que “os líderes populistas querem que haja pobres para suborná-los com suas regalias”.
Rondônia, falso eldorado
Além de ser um desastre em termos de custo-benefício e resolução dos problemas sociais para os quais se apresenta como solução, o processo que no Brasil é chamado de reforma agrária é um desastre ambiental. Desastre que é pago pelo contribuinte e executado através de uma agência governamental, o Incra. Tenho trabalhado em várias partes do Brasil lidando com questões ambientais e meu caminho cruzou com os malfeitos do Incra em mais oportunidades do que seria razoável se o órgão responsável pela reforma agrária pisasse na bola apenas ocasionalmente. Minha crença é que a política de destruição ambiental do Incra, além de ampla, geral e irrestrita, é deliberada.
A primeira vez que tive um contato mais direto com os malfeitos do Incra foi em Rondônia. Para quem não se lembra, Rondônia um dia foi uma parte pouco ocupada do Brasil que, nas décadas de 1970-80, o governo militar resolveu “ocupar para não entregar”, na ótica de que a Amazônia despovoada poderia ser ocupada por potências estrangeiras. Na realidade, havia preocupação com os números crescentes de ex-agricultores nos estados sulinos que estavam deixando suas terras devido à pressão demográfica e pela aquisição de terras pelo então nascente agronegócio. Este excedente populacional cada vez maior em números e em inquietação, um campo fértil para os “movimentos sociais” de esquerda que preocupavam os militares, precisava ser varrido para baixo de algum tapete. Rondônia foi o capacho escolhido.
Esta estratégia não é nova no Brasil. Desde o século XIX, toda vez que uma seca no nordeste lançava uma massa de camponeses reivindicativos em direção às cidades, a solução foi transportar este excedente populacional para zonas de fronteira como a Amazônia, onde poderiam ser empregados como bucha de canhão na conquista do território e mão-de-obra barata para os que controlavam a economia. Daí resultou a substituição das populações indígenas por nordestinos empregados na extração da borracha (a origem das atuais “populações tradicionais” de seringueiros e ribeirinhos) e, mais recentemente, a colonização de áreas ao longo de estradas recém-abertas como a BR-222, no oeste do Maranhão, e a infame Transamazônica, onde grandes proprietários associados à pecuária ocuparam o território após os migrantes o terem preparado. Já em 2005, a Amazônia, com menos de 15% da população brasileira, recebeu 53% das famílias assentadas pela patuscada chamada de Programa Nacional de Reforma Agrária. E a tendência é que a porcentagem aumente.
De volta a Rondônia, o estado foi vendido como um novo eldorado e migrantes incentivados a se mudar para a nova fronteira, na esperança de enricar na nova terra. O problema é que a ecologia não perdoa e a fertilidade natural dos solos do estado não é grande coisa. Apesar disso as sumidades do Incra delimitaram os lotes dos futuros assentados sem considerar esta variável, assim como a topografia, cursos d’água, etc. Foi imposto um desenho de “tabuleiro de xadrez” à geografia, e os colonos que se virassem. Lembro de visitar a área do “projeto integrado de colonização” Sydney Girão, iniciado em 1971, e ficar admirado com o pessoal vivendo sobre areia branca –boa para fazer vidro, mas não tanto para plantar.
Além da incapacidade governamental em dar-lhes suporte, havia a questão do nível técnico dos agricultores. Com verdadeiro ódio às árvores traduzido em um padrão cultural que considera vagabundo quem deixa floresta em pé (ouvi isso várias vezes), os sulistas transplantados para a Amazônia rapidamente queimaram, no sentido literal, as etapas do miniciclo econômico padrão-Incra: retirada da madeira com algum valor, roça de toco, pastagem, pastagem degradada, venda da terra a um latifúndio.
Hoje, pelo menos 50% da área do estado que não está no interior de unidades de conservação ou terras indígenas foi desmatado e é dominado por pastagens degradadas. Repetindo um padrão recorrente na história brasileira, muita natureza foi destruída para gerar riqueza que ficou nas mãos de poucos. Rondônia é hoje o estado com maior taxa de emigração na região Norte.
Zoneamento ignorado
Quando me mudei para Rondônia, a ocupação promovida pelo Incra estava consolidada e estávamos trabalhando em um projeto que visava, entre outras coisas, salvar alguma coisa. Unidades de conservação em potencial haviam sido identificadas durante o zoneamento sócio-econômico-ecológico do estado e deveriam ser implementadas. O tal zoneamento, que virou lei estadual, havia sido feito em duas etapas e minha atenção foi chamada para algumas unidades de conservação decretadas durante a primeira, mas sobre as quais ninguém estava falando. Estas eram o Parque Estadual Serra dos Parecis (decretado em 1990) e o Parque Estadual do Candeias (também de 1990). Ninguém falava porque, na prática, eles não mais existiam. Especialmente ao longo de 1991, os dirigentes do Incra local haviam concedido “contratos de promessa de compra e venda” (CPCVs) para grandes e médias propriedades ocuparem o que já eram unidades de conservação decretadas.
Depois descobri que, no Parque Estadual Corumbiara — uma área fantástica de savanas alagadas, pantanais e florestas às margens do rio Guaporé que permanece muito pouco conhecida —, o Incra continuou concedendo CPCVs até 1992, dois anos após o parque ter sido decretado. Os beneficiados, como sempre, foram grandes proprietários e políticos locais. O governo do estado optou por não comprar brigas e fingir que os parques não mais existiam, ou mudar suas demarcações com o aval da Assembléia Legislativa. No caso de Corumbiara foram excluídos mais de 160 mil hectares de terras que eram públicas. O mesmo aconteceu com boa parte das unidades de conservação estaduais.
Embora houvesse um zoneamento estadual aprovado por lei definindo que várias regiões do estado tinham restrições quanto à sua ocupação, o Incra solenemente ignorou isso e prosseguiu em assentar colonos e distribuir títulos conforme a agenda política de seus dirigentes achasse conveniente. Por exemplo, em Buritis, um dos municípios que mais cresceu no Brasil nos últimos anos graças à dobradinha madeireiros-agronegócio, o Incra manteve a política de assentar colonos em uma área que o zoneamento considerou como apta apenas ao extrativismo.
Ou seja, em termos práticos o zoneamento estadual de Rondônia, elaborado com dinheiro pago pelo contribuinte (não apenas de Rondônia !!) e destinado a dar alguma racionalidade a um processo de colonização eminentemente irracional, nunca existiu para o Incra. Zero de transversalidade e 10 em oportunismo, pois muitos dirigentes e ex-funcionários do Incra de Rondônia acabaram se tornando políticos, subindo em direção ao topo da cadeia alimentar do parasitismo institucional (você, se for um dos poucos que paga imposto de renda neste país, está na base).
O mais incrível foi a total impunidade dos responsáveis por esta grilagem institucionalizada, pelo menos até agora. Em 7 de dezembro de 2005 abri o jornal e fiquei surpreso ao ler sobre a Operação Terras Limpas, conduzida pela Polícia Federal em Rondônia, que desmantelou (ou assim dizem) uma quadrilha que atua no Incra local há pelo menos 20 anos e transferiu a bagatela de 1 milhão de hectares para madeireiros, pecuaristas, juízes, desembargadores…. Será interessante saber se os parques recuperarão a área perdida.
Em Tocantins, a Amazônia sumiu
Meu trabalho me fez cruzar novamente com os malfeitos do Incra durante outro trabalho no célebre Bico do Papagaio. Extremo-norte do estado do Tocantins, o Bico se tornou famoso pelos intensos conflitos pela posse da terra entre pecuaristas e posseiros que se mudaram para lá em resposta ao estímulo à ocupação da região após o surgimento do foco guerrilheiro do Araguaia e no rastro da abertura da Belém-Brasília, a partir dos anos 60.
Como Rondônia, o jovem estado do Tocantins elaborou um zoneamento econômico-ecológico (o popular ZEE) que, em 1996, indicou várias unidades de conservação em potencial, além dos usos adequados para as diferentes regiões de acordo com o tipo de solo, clima, etc. O atlas do Tocantins, com resultados destes estudos, foi publicado em 1999 e deveria ser utilizado pelo que chamamos de governo para nortear a ocupação do estado.
Da mesma forma que em Rondônia, o Incra ignorou os resultados dos estudos. O Programa de Gestão Integrada do Bico do Papagaio, no qual trabalhei, teve como um de seus objetivos avaliar se as áreas indicadas para unidades de conservação pelo ZEE eram importantes do ponto de vista biológico, o que foi feito através de uma série de avaliações ecológicas rápidas.
Uma das áreas, a mais extensa, era a chamada Barreira Branca, e encostava no rio Araguaia junto à ilha do mesmo nome. Toda a nossa equipe estava curiosíssima para ver o que existiria naquela área. Última área de floresta ombrófila densa de todo o Tocantins, segundo o ZEE nunca explorada por biólogos.
Chegamos tarde. A grande mancha que víramos nas imagens de satélite, com mais de 80 mil hectares de floresta amazônica, havia sido retalhada por dezenas de projetos de assentamento do Incra. Quando adentramos a área, em junho de 2003, vimos as indefectíveis placas instaladas como monumento à grande obra social que eram os assentamentos, destinados a trazer paz na terra aos homens com vontade de trabalhá-la. Não sei se trouxeram paz, mas duvido que trouxeram qualidade de vida.
Cruzamos algumas agrovilas construídas pelo Incra e ficamos procurando uma boa área de floresta para trabalhar. Não havia área alguma. Tudo havia sido transformado em um mosaico de trapos de floresta onde as árvores valiosas haviam sido vendidas como madeira fazia tempo, e o que sobrou era queimado com regularidade. Nos lotes “produtivos” havia plantações de capim e roças de mandioca implantadas sobre um solo que era uma mistura de areia com cascalho. Tenho vívida lembrança de um mandiocal crescendo sobre uma cascalheira que daria boa brita.
Pressionados a transformar florestas “improdutivas” em áreas produtivas para não serem desapropriados, fazendeiros que haviam deixado mais do que os 50% de reserva legal de suas terras com florestas queimaram vastas áreas e semearam capim entre os troncos ainda em pé. A “reforma agrária” e seus reflexos haviam destruído, antes que fosse estudada, uma área cuja importância ambiental era visível nas imagens de satélite. Uma biblioteca foi queimada sem que algo fosse lido. A última área de floresta ombrófila densa do estado virou cinza para adubar mandioca e braquiária.
Desistimos, indicamos a área como de “desastre ambiental” em nosso relatório, e passamos para outras áreas em outras partes do Bico.
O problema é que todas elas tinham um assentamento do Incra roendo-as ou um acampamento de sem-terras do lado. Coincidência, a associação entre as poucas áreas de floresta que sobravam e os assentamentos e acampamentos? Claro que não! Afinal, algo com biomassa significativa tem que ser queimado para adubar as lavouras low-tech do tradicional camponês brasileiro e o Incra reconhece e apóia esta necessidade. Afinal, florestas são terras improdutivas!
No Caiapó, outra “incrada”
Meu contato mais recente com uma “incrada” (me permito criar o neologismo, afim de “lulada” e outras adas) também foi em Tocantins. A Área de Proteção Ambiental (APA) Bananal-Cantão foi decretada em maio de 1997. Seu objetivo era regulamentar a ocupação e proteger uma região única onde o cerrado se encontra com a floresta amazônica do vale do rio Araguaia. Ali um mosaico de savanas e florestas alagadas se mescla a lagoas, vastas praias e várzeas em uma região de rara beleza e com rica fauna que rivaliza com o Pantanal. O grande potencial da região já atrai turistas às praias e também ao Parque Estadual do Cantão, com seus 833 lagos e florestas de igapó.
O rio Caiapó é um dos principais afluentes do Araguaia, cortando a área da APA. Seu encontro com o grande rio forma um grande delta interno ao norte do Cantão, também rico em lagos e meandros em meio a florestas alagadas onde cansamos de ver ariranhas, jacarés-açus, botos, jacus-vermelhos e bandos de patos-corredores. Foi uma das mais proveitosas e divertidas viagens dentre as muitas que já fiz a Tocantins.
O médio rio Caiapó está acima da planície de inundação do Araguaia e corta uma área de floresta que, vista com os olhos do satélite, se mostra como grandes quadrados irregulares dispostos ao longo do rio, clássica assinatura de áreas de reserva legal pertencentes a grandes propriedades. Este conjunto de florestas foi considerado como “zona de conservação” quando do zoneamento da APA.
Cabe aqui um aparte. As florestas sobre terra firme na chamada Amazônia Legal, na transição com o Cerrado, são fonte de grande polêmica devido a interpretações nada florestais do Código Florestal. Os produtores agrícolas dizem que são “cerrado” e, assim, podem desmatar até 65% das mesmas, de acordo com a lei. Nisso são acatados por alguns órgãos licenciadores e isto, por exemplo, legalizou a brutal perda recente de florestas em Mato Grosso. Estas florestas constituem uma eco-região própria, chamada “florestas tropicais secas de Mato Grosso”. Segundo Leandro Ferreira, pesquisador do Museu Paraense Emílio Goeldi, elas já haviam perdido 25% de sua área até 2002. Com os recordes seguidos de área desmatada em 2003 e 2004, obra maior do governo Lula, a situação desta eco-região está muito pior.
Esta discussão bizantina não faz sentido para o biólogo. Qualquer um que entrar em uma área desta formação encontrará uma floresta com árvores com mais de 20 metros, copa fechada e palmeiras amazônicas como a bacaba-de-leque. E ouvirá o canto de aves reconhecidamente florestais, como os estridentes assobios do cricrió, peito-de-aço ou seringueiro (Lipaugus vociferans para os ornitólogos). Da mesma forma que uma ave que anda como um pato, nada como um pato e faz quac é um pato, uma vegetação com estrutura de floresta e espécies amazônicas é floresta amazônica, e deveria ser respeitada a lei que diz que 80% de sua área deve ser conservada.
De volta ao rio Caiapó, procuramos um acesso a uma boa área destas florestas para fazer nossos estudos. Descobrimos que as grandes manchas estavam retalhadas por (adivinhem) assentamentos do Incra. Restou-nos trabalhar em um deles, o assentamento Califórnia (foto), resultante da antiga fazenda de mesmo nome. A floresta foi cortada pelo clássico sistema de estradas em tabuleiro de xadrez (danem-se os cursos d’água) e em cada lote os assentados ganharam uma casa com eletricidade.
Seguindo a tradição agrícola brasileira e o padrão Incra de uso dos recursos naturais, os assentados estavam ocupados derrubando e queimando a floresta para plantar mandioca (foto abaixo), milho e arroz em meio aos troncos queimados. Nos lotes mais antigos a plantação era de capim. Nestes, as casas vazias chamavam a atenção.
Em outro assentamento, junto à vila de Senhor de Bonfim, também na APA, passamos por várias árvores de madeira de lei cortadas e então ouvimos um tiro em meio à mata. Curiosos em saber se o atirador havia abatido um jacu (queríamos confirmar a identidade da espécie local) chegamos ao local do disparo e encontramos uma clareira calcinada onde mandioca e capim haviam sido plantados. Conversando com o assentado (não havia jacu algum) ele resumiu sua estratégia: plantar mandioca porque “senão não comia” e capim para depois “colocar uma vaquinha”.
Repete-se ali a história de inúmeros assentamentos. As árvores valiosas viram madeira, a fauna vai para a panela e se inicia um ciclo que transforma florestas em pastagens (foto) e acaba com os assentados vendendo seus lotes para serem anexados a propriedades maiores. Isso quando o lote não vira chácara de fim-de-semana porque o ex sem-terra na realidade é um ser urbano que aproveitou a chance para ganhar uma chácara de lazer. Se isso é solução da “questão agrária” e da “pobreza no campo”, eu sou a Madre Teresa.
Toda esta desgraça econômica e ecológica (econômica porque é conhecida a miséria da maior parte dos assentados locais) se dá exatamente na “zona de conservação” da APA, o que não apenas mostra (de novo) o solene desprezo do Incra por instrumentos de conservação e normatização do uso do solo, mas também a bem conhecida fragilidade das APAs como instrumento de conservação. O observado no Tocantins apenas apóia a definição das APAs como “áreas de p… alguma”, nas antológicas palavras de um antigo chefe meu, ex-diretor do Instituto Florestal de São Paulo.
A transformação das florestas do rio Caiapó em mandiocais e capinzais é trágica porque estas florestas de transição constituem uma das menos conhecidas, e mais destruídas, parcelas do grande bioma amazônico. Mais uma biblioteca queimada.
Capivara na mira
As histórias dos zoneamentos estaduais em Rondônia e Tocantins mostram, para mim, a prática e uso do Incra de funcionar ao arrepio da lei. Me lembram também que a palavra de ordem quando se trata de discutir a ocupação da Amazônia ou outras regiões sensíveis é “vamos fazer um zoneamento”. Mas qual o valor de se gastar os tubos em um zoneamento, “planejamento participativo”, mapas bonitos e muito papel se uma agência governamental é a primeira a ignorá-lo, mesmo quando se torna lei? Qual o valor da lei se os bandidos estão dentro do governo?
É possível desfiar uma lista interminável de atrocidades ambientais e imbecilidades cometidas nos últimos anos pelo Incra. Coisas como assentamentos encostados nos limites de unidades de conservação como a Reserva Biológica Poço das Antas (RJ) e a Estação Ecológica de Murici (AL). A primeira já sofreu incêndios devastadores causados pelos assentados, e a caça é um problema sério (apesar das décadas de projetos de “educação ambiental” atrelados ao projeto de conservação dos micos-leões). Na segunda, maior concentração de espécies ameaçadas do Brasil, há mais de 6 mil pessoas no seu entorno imediato que vêem suas florestas como fonte de lenha, madeira de construção e carne para a panela.
No rol dos absurdos merece destaque a proposta de implantar assentamentos como parte de um “corredor ecológico” entre os parques nacionais Serra das Confusões e Serra da Capivara (PI). Todos que visitam a Serra da Capivara, onde trabalhei, a consideram um modelo de como unidades de conservação deveriam ser gerenciadas no Brasil, pelo menos se o indicador de desempenho reflete conservação da biodiversidade, do patrimônio cultural e geração de empregos. Ao invés de fortalecer a gestão da área e duplicar a experiência no abandonado Serra das Confusões, o que o governo federal tem feito é sabotá-la da forma possível. O sucesso da Capivara, gerenciado por uma ong que tem demonstrado competência e seriedade, faz um gritante contraste com as áreas gerenciadas apenas pelo governo. As conclusões sobre a competência e probidade governamentais resultantes deste contraste certamente angariam a inimizade de setores do governo quanto ao modelo Serra da Capivara.
E recentemente surgiu esta idéia de implantar vários assentamentos junto ao parque, embora a experiência mostre que colocar um assentamento do Incra junto a uma área protegida é equivalente a ter um pedófilo cuidando de um jardim de infância. Só um fator excepcional impedirá um malfeito de acontecer.
Na região a coisa é piorada por fatores culturais, especialmente da parcela masculina, adepta do “se mexer mate, se crescer corte”. Este fator é simbolizado pelo assassinato, poucos anos atrás, de uma vigia do parque pelo seu próprio irmão, caçador notório a quem ela havia recusado a entrada no parque. O sujeito matou a irmã a golpes de facão e a mãe dos dois deu razão a ele devido ao comportamento “absurdo” da moça… Não preciso dizer que o assassino recebeu apoio de parte expressiva da população. Que é quem o Incra quer colocar morando ao lado do parque.
O inacreditável é que este projeto tem o aval do Ministério do Meio Ambiente e recebe recursos do GEF (Global Environment Facility), apesar de sua imbecilidade inerente. Quem resolveu financiar a coisa deveria ver o que os assentados em potencial (boa parte dos quais mora nas cidades) fizeram nas frágeis áreas de caatinga arbórea e florestas secas da região. O que foi feito no antigo vale florestado do Boqueirão Grande, hoje calcinado. É deprimente ter fomentadores de destruição dentro do próprio MMA que se associam a interesses duvidosos de setores do Incra.
Pois o representante do Incra nesta história é um padre católico que será candidato a um cargo e certamente se beneficiará na mesma medida em que mais eleitores forem assentados. Esta figura justifica a idéia com frases como “Temos experiências deste tipo em outras áreas do Brasil, onde existem parques ambientais. O homem vive em harmonia com a natureza” e seus planos para os assentados em uma área de caatinga sem infra-estrutura é que aqueles “serão capacitados para produzir cactos e flores próprias dos cerrados (sic) para a venda direta aos turistas”. Só mesmo um profissional do sobrenatural para ter tal dissociação da realidade e ter essas idéias. Afinal, fé é acreditar mesmo na ausência de evidências, e apesar das evidências.
Por que o Incra ainda existe?
Posso também lembrar dos assentamentos feitos nos poucos remanescentes de Mata Atlântica do nordeste da Bahia, de Alagoas, Pernambuco ou da turística “Costa do Descobrimento”. Ou em florestas maduras que já foram as reservas legais de grandes propriedades no Pará. Poucos meses atrás foi divulgado que mais de 30 mil hectares de Mata Atlântica foram destruídos no interior do Paraná para criar novos assentamentos em áreas invadidas sob beneplácito de um governo que prima por ignorar a lei.
De fato, o Incra deve ser o maior responsável individual pela destruição recente da Mata Atlântica no Brasil.
Até há pouco, 95% dos assentamentos rurais não dispunham de licenciamento ambiental. Ou seja, estes assentamentos são ilegais e nunca deveriam ter sido estabelecidos. O presidente do Incra diz que isto “está sendo providenciado”, o que é inócuo, pois nenhum assentamento implantado será removido mesmo que o órgão licenciador, ou mesmo os índices de produção, mostre que a idéia foi idiota e é melhor pedir desculpas e ir trabalhar em outro lugar.
Este exemplo se junta ao da hidrelétrica de Barra Grande e outros que mostram que o licenciamento ambiental no Brasil se tornou mera etapa burocrática para o processo ganhar mais um carimbo, e não uma instância decisória.
A tranqüilidade com que o Incra destrói a natureza para gerar mais pobreza nos faz questionar por que o órgão ainda existe depois de décadas de não resolução de problemas. Afinal, não é apenas uma questão do órgão ser ineficiente. O Incra é um poço de corrupção, o que é uma notícia antiga. Nos últimos meses, operações da Polícia Federal descobriram enormes esquemas de fraude executados por dirigentes do órgão no Pará, Mato Grosso, Rondônia, Amapá… É curioso que o mesmo órgão que alegremente distribui terras públicas não tenha a mesma desenvoltura em, por exemplo, ajudar a resolver a questão fundiária das unidades de conservação.
Ajudaria se não apenas o Incra, mas todo o governo, se profissionalizasse e indicadores de desempenho tecnicamente embasados fossem adotados. Que as reais questões sociais tivessem um tratamento técnico e não político. E as suas causas de fundo fossem enfrentadas.
A questão de fundo é que a agricultura familiar tradicional tem uma dinâmica que a torna por princípio insustentável. Onde há uso de mão-de-obra familiar e técnicas primitivas é vantagem gerar famílias grandes, pois os filhos constituem mão-de-obra barata que trabalha a troco de comida.
O problema é que uma propriedade pode ser dividida até um limite entre os herdeiros, e rapidamente é gerado um excedente populacional que demanda novas terras. Sendo as terras um recurso com limite natural, está criado um problema que pode chegar à barbárie. Como descrito de forma sagaz por Jared Diamond em “Colapso”, a superpopulação foi um dos fatores geradores do genocídio de Ruanda, país de base agrária com uma sociedade multicultural que não deu muito certo.
Vários países europeus resolveram o problema dos excedentes camponeses através da emigração, que foi associada ao crescente nível educacional e urbanização seguidas por uma transição demográfica que estabilizou suas populações. No campo, houve uma tecnificação crescente da agricultura, com menor demanda de mão-de-obra e maior renda para quem ficou no negócio. Isto resultou no acesso ao Primeiro Mundo. Por aqui ainda estamos gerando excedentes que não sabemos como aproveitar, e que são despachados para a Amazônia.
A grande questão é como equilibrar população e recursos. Em outras palavras, evitar excedentes populacionais. Viver segundo a definição da sustentabilidade, ou seja, dentro de limites.
O Brasil é um país urbano, e esta tendência se torna cada vez mais marcante mesmo na Amazônia. As cidades, e não o campo, concentram os problemas sociais e o desemprego. É ali que as ações deveriam se concentrar. O foco insistente nisto que chamam de reforma agrária é mais saudosismo dos revolucionários fracassados de décadas passadas do que uma leitura realista das questões sociais.
Voltar atrás é impossível. Mas podemos decidir o que faremos daqui para a frente.
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