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Bruna, filha do Brasil

Um acidente em Rondônia. Uma fatalidade? Sim, mas assim morrem as sementes, jovens que abraçam desafios, que entram no Brasil profundo. Assim morreu Bruna Gonçalves D´Almeida, 25.

21 de julho de 2008 · 16 anos atrás
  • Eduardo Pegurier

    Mestre em Economia, é professor da PUC-Rio e conselheiro de ((o))eco. Faz fé que podemos ser prósperos, justos e proteger a biodiversidade.

Os sinos dobraram, diz o poema ao fim desse texto.

Na última sexta-feira, 11 de julho, um trágico acidente vitimou pelo menos 15 pessoas a bordo de um ônibus que chegava a Ouro Preto do Oeste, em Rondônia. Os passageiros eram professores voluntários ligados a ONG Educação Solidária, que fretou o ônibus. Dirigiam-se ao Centro de Treinamento da Emater, em Ouro Preto, para alfabetizar carentes da região.

Entre as vítimas, estava Bruna Gonçalves D’Almeida, 25 anos, uma moça com um percurso notável. Bruna saiu de Rezende para estudar direito na PUC-Rio. De uma família de boa condição, chegando ao Rio de Janeiro, foi morar com uma tia em Copacabana. Mas, em seguida, preferiu mudar-se para a favela da Rocinha e, mais tarde, morou também na favela Parque da Cidade.

Muito cedo no curso de direito, engajou-se no NIMA (Núcleo Interdisciplinar de Meio Ambiente) da PUC-Rio. E logo declarou seu objetivo: aprender o máximo de direito ambiental e mudar-se para a Amazônia. Dito e feito. Depois de se graduar com louvor em 2005, seguiu para Manaus para cursar o mestrado de direito ambiental na Universidade do Amazonas. Terminou o curso há dois meses. Seu currículo acadêmico acumulado nesses poucos anos é de fazer inveja.

Não a conheci e desconfio que, se a gente sentasse para conversar, discordaria de muita coisa. Mas isso só me faz lamentar mais nunca a ter encontrado. Tomei conhecimento da sua morte pela comoção que provocou no Yahoo-groups do NIMA. Fui, então, recolhendo fragmentos das suas façanhas na internet e através dos depoimentos de amigos e professores.

Era bonita e expressiva. Suas fotos mostram um rosto brasileiro, esse rosto que vemos nas ruas, soma de todas as raças, principalmente, índio, negro e português. Podia ter ficado no Rio e seguido uma carreira confortável. Mas queria se misturar ainda mais. Consta que seu último namorado morava em uma comunidade a dois dias de barco de Manaus.

Eis um pouco de Bruna, num email enviado aos amigos em 2005.

“Como estão todos? Mandem notícias……. O que acham de construirmos uma rede mundial de sonhos e projetos para melhorarmos o mundo? O que vocês têm feito de bom? Como estão cuidando dos seus sonhos, da sua vida? Como têm vivido? Estão regando a sementinha que temos dentro de nós ? Têm participado de algum projeto ou iniciativa  no lugar aonde estão vivendo? Por que sonhamos e fazemos tão pouco? Por que assumimos tão poucas responsabilidades com a vida, com o próximo? Que mundo queremos deixar para os nossos filhos? Que mundo é esse que estamos construindo ou deixando de construir a cada dia? Me entristece muito ver tanta coisa pra fazer, tanta pobreza mundo a fora e tão poucas pessoas que assumem responsabilidades. O que queremos lembrar quando ficarmos bem velhinhos, do monte de COISAS que acumulamos ao longo da nossa existência ou das experiências que vivemos, das PESSOAS que conhecemos, das relações que traçamos, do ser que somos? Não que as coisas não sejam importantes, mas até que ponto não damos mais atenção a elas do que as pessoas realmente?”

Bruna, queria ter te conhecido. Queria que os seus olhos tivessem câmeras para me contar tudo o que você viu e viveu nesses últimos anos. Uma vida de filme…

Gostaria de pensar que o acidente foi um mero infortúnio. Parece que o motorista do ônibus dormiu, atravessou a pista e bateu de frente com um caminhão-tanque. A explosão carbonizou os mortos e mutilou os sobreviventes.

Mas ao imaginar esse acidente, só consigo pensar nas mazelas brasileiras. Numa estrada estreita, esburacada e mal sinalizada. Veia aberta por bem ou por mal na floresta. Num motorista simples, tresnoitado, que também morreu, junto com a própria esposa. Penso que o Brasil é um país de renda média que tem um governo de resultados pífios. Nos projetos fúteis e nos homens piores ainda por trás deles. Homens que sobrevoam as estradas esburacadas e nunca correm riscos. Penso na cacofonia de leis, que facilitam a inoperância da justiça e a impunidade geral. Lembro do corpo inerte e diminuto da freira Dorothy Stang, assassinada friamente, e da absolvição do mandante do crime. Não consigo parar a invasão da mente por todas essas imagens de doenças brasileiras.

Ainda bem que o povo brasileiro é melhor que os seus governantes, que chegam ao poder usando escadas arcaicas, construídas no Brasil-colônia e marcadas pelo elitismo e o corporativismo.

Dizer tudo isso pode ser forçação de barra. Foi um acidente, azar. Mas esse país dá chance demais ao azar. E assim morrem as sementes, os jovens que se enfiam nos buracos, no Brasil profundo; que abraçam desafios, querendo aprender e desbravar um caminho de mudanças.

Segue parte de um poema de John Donne (1572-1631), poeta e padre anglicano, que abre o livro “Por quem os sinos dobram”, de Ernest Hemingway. Em homenagem a Bruna, me dou a liberdade de adaptá-lo e trocar a palavra “homem” por “mulher” nas três vezes que aparece no texto. Acho que se Donne estivesse por aqui, concordaria.

“Nenhuma mulher é uma ilha isolada;
cada mulher é uma partícula do continente, uma parte da Terra.
Se um torrão é arrastado para o mar, a Europa fica diminuída,
como se fosse um promontório,
como se fosse o solar de teus amigos
ou o teu próprio;
a morte de qualquer mulher me diminui
porque sou parte do gênero humano.
E por isso não perguntes por quem os sinos dobram;
eles dobram por ti.” (JOHN DONNE)

A morte de Bruna nos diminuiu; que o seu idealismo frutifique.

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