O melhor negócio imobiliário do Brasil é bater na porta da Fundação Palmares. Que o digam as 17 famílias de moradores do rio Jaú, prestes a receber as chaves de 719 mil hectares de floresta amazônica. São 422 quilômetros quadrados por família, num país onde o MST chama 3 quilômetros quadrados de latifúndio. Com eles, privatiza-se um terço do Parque Nacional do Jaú, transferido-o a “quilombolas” que ainda nem tiveram tempo de aprender a não se autodefinir como “carambolas”.
“Essas terras vão servir para meus filhos e netos”, diz Sebastião Ferreira de Almeida, presidente da Associação de Moradores Remanescentes de Quilombo do Tambor. Assim ele explicou a lógica da demarcação à repórter Andreia Fanzeres, que tirou essa história da sombra que a escondia, sob as árvores na selva e no escurinho dos gabinetes em Brasília. O tamanho do quilombo não se baseia na história da escravidão nem nas tradições ribeirinhas, mas intuição de que a hora é esta. Os 719 mil hectares, segundo Almeida, mostram “que temos cuidado com o futuro das gerações”.
Quilombo contemporâneo
Dito assim, parece besteira. Mas não diverge, no fundo, dos argumentos da antropóloga Maria Bernadete Lopes da Silva, diretora do Departamento de Proteção do Patrimônio Afro-Brasileiro, que a repórter também entrevistou. “Quem entendia que quilombo era um conjunto de escravos fugidos eram os senhores de engenho”, esclareceu a diretora, como se ensinasse a semântica da politicagem. “Hoje, adotamos o conceito de quilombo contemporâneo, um espaço que as comunidades têm para se multiplicar cultural e economicamente”.
Em outras palavras, ao contrário do que proclama o jogo do bicho, aí vale o que não está escrito. Aliás, a titulação de quilombos no Brasil é, em si, um laboratório de informalidade jurídica. O processo de baseia num decreto do presidente da República que, de maneira inconstitucional, regulamentou um artigo da Constituição. A Fundação Palmares é um braço do Ministério da Cultura, para “promover a preservação dos valores culturais, sociais e econômicos decorrentes da influência negra na formação da sociedade brasileira”. Mas comanda, em parceria com o Incra, uma revolução fundiária, para distribuir terras públicas que, somadas, transferem a propriedade de um território equivalente ao do estado de São Paulo.
Tudo isso lastreado no princípio de que todo brasileiro herda, ao nascer, a dívida dos escravocratas, mesmo que nenhum de seus ancestrais tenha um pé na casa-grande, que ele descenda de imigrantes que chegaram aqui depois da abolição ou mesmo que seja negro, mas não quilombola, com o selo da Palmares. Sem essa carta de crédito social, todo mundo deve ser desapropriado, porque as unidades federais de conservação são patrimônio inalienável de 187,4 milhões de brasileiros, e seis delas já estão na lista de desejos dos quilombolas.
Os moradores do Jaú, como noticiou Andreia Fanzeres, provêm de uma família que migrou de Sergipe para a Amazônia em 1907. Portanto, 19 anos depois da Lei Áurea. Eles vivem aa extração de recursos naturais e, eventualmente, segundo o Ibama, de fornecer peixes ornamentais e tartarugas ameaçadas de extinção ao tráfico de animais silvestres. Seu isolamento, naqueles cafundós da Amazônia, não impediu que eles se miscigenassem, a ponto de só quatro famílias, das 15 que moram hoje no Tambor, serem reconhecidas como negras pelos funcionários do Instituto Chico Mendes. Mas isso não quer dizer nada. Como explicou o líder comunitário Sebastião Almeida, que mora na cidade de Novo Airão e se desdobra entre compromissos políticos em “Brasília, Fortaleza, Bahia, Belém, São Luiz e Santarém”, todo mundo ali tem “descendência da África e Sergipe”. Ah, bom!
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