Pagar mil reais por hectare de floresta por ano? Mil reais sem fazer mais nada que nada fazer com a mata? Essa é uma das 40 propostas para melhorar o futuro do Brasil que a revista Veja obteve de 500 personalidades da Política, da Economia e da Cultura, quando da celebração de seus 40 anos de existência. O que significa realmente esta proposta? É realista ou utópica? Em que elementos de juízo ela se fundamenta? Saber mais sobre a proposta é importante, pois a ela se soma à oferta do governo da Noruega de oferecer um bilhão de dólares ao Brasil para preservar a floresta amazônica.
A proposta mencionada na edição 2077/10 de setembro de 2008 daquela revista tem por título “tornar mais vantajoso manter uma árvore de pé que cortá-la” e menciona um estudo mostrando que, no estado de Mato Grosso, dar mil reais ao ano por hectare preservado seria estímulo suficiente para conter a devastação. Também agrega ser “quase de graça”.
É óbvio que a primeira reação para quem lê o comentário é acreditar que “é quase de graça” parece fora de lugar. Se o pagamento for só para preservar as florestas contidas nos 110 milhões de hectares das terras indígenas, aonde ainda deve haver uns 80% da área com mata, se estaria falando de pagamentos anuais de uns 88 bilhões de reais. Não é pouco! Mas devem se descartar as terras indígenas e, também, as contidas nas unidades de conservação federais e estaduais, pois, na teoria, já estão sendo preservadas. Portanto, a priori, essa iniciativa só faria sentido se fosse aplicada apenas na porção das propriedades particulares e assentamentos rurais que ainda têm mata nativa, mas que poderia ser legalmente desmatada.
Supondo que isso represente ao redor de 30 milhões de hectares, implicaria um pagamento anual de uns 30 bilhões de reais. Ainda é muito dinheiro, em especial considerando que o gasto anual de todas as atividades ambientais públicas do Brasil, incluindo o do Ministério do Meio Ambiente e de todas as Secretarias Estaduais do meio ambiente e das suas autarquias, não deve somar nem sequer dois bilhões de reais por ano.
Existe apenas uma justificativa para se fazer semelhante pagamento. Os benefícios ecológicos, sociais e conseqüentemente econômicos, para a sociedade nacional, devem superar o custo a ser pago aos donos da terra em ressarcimento pelo não uso convencional das suas terras (uso agropecuário), que implica na eliminação da floresta. Dito de outra forma, a renda anual que essa floresta intacta produz deve ser maior que o que se vai pagar por ela. E, quanto a isso, o público pode ficar bem tranqüilo. O negócio será muito bom.
Está muito bem demonstrado que o valor dos benefícios para a sociedade da mata preservada supera facilmente esse custo anual. Os cálculos incluem o valor de seu efeito sobre: a estabilização do clima; recarga da água subterrânea; regulação de fluxos hídricos; seqüestro de carbono; habitats para espécies; manutenção da integridade genética; entre outros. Também incluem seu valor de uso, ou não uso futuro, a especulação em torno do conceito de raridade e o potencial de geração de informação. Muitos, ou a maioria destes usos, não têm valor direto para o proprietário da terra, mas sim para a sociedade local, regional e nacional. No final das contas são esses os mesmos argumentos que são usados para se estabelecer unidades de conservação.
Estudiosos, tanto economistas como ecólogos, têm demonstrado especificamente para as condições amazônicas que, apenas em termos de seqüestro de carbono, cada hectare de floresta nativa fixa carbono por um valor que varia de 198 a 803 dólares, nas estimativas mais baixas, até 1.819 dólares, em estimativas médias. Os diversos autores revelam que a valorização de bosques, dependendo do preço a pagar pelo carbono fixado, pode alcançar até 28.300 dólares por hectare. Dependendo dos critérios usados para os cálculos econômicos, várias estimativas dos diversos benefícios de bosques amazônicos sustentam que sua preservação justifica pagar mais de 4.000 dólares por ano por hectare. Reitera-se que esses cálculos não são feitos por ecologistas fanáticos, mas por economistas bem realistas.
No Peru, outro estudo revelou que o sistema nacional de unidades de conservação daquele país gera anualmente um beneficio neto de 1.1 bilhões de dólares, ou seja, muito mais que mil reais por hectare por ano. Assim, pagar 1.000 reais por hectare não é maluquice. A sociedade que pague essa soma para preservar melhor seu futuro e receberá de volta cada centavo investido, com muito lucro.
A proposta dos mil reais por hectare é também interessante para muitos agricultores que, carentes de financiamento para fazer agricultura intensiva, dificilmente obtêm essa renda por ano derrubando a mata para plantar capim e criar gado extensivamente, ou cultivar precariamente. Por exemplo, com 12 hectares de floresta preservados, mais seus cultivos e outras atividades econômicas, eles teriam um padrão de vida bem melhor que o que poderiam obter apenas derrubando e queimando a floresta e abandonando a terra anualmente, em rotações longas e improdutivas.
É óbvio que a idéia por trás da proposta é, na verdade, muito complexa e que de qualquer modo deveria ser implantada com muito cuidado e progressivamente. Requereria um regimento enorme e uma assessoria técnica intensa. Felizmente, o controle do respeito ao compromisso de não desmatar é hoje mais fácil com os meios de sensoriamento remoto disponíveis.
A proposta mencionada na Veja, na verdade, não é nenhuma novidade. Fala-se disso há mais de duas décadas e, em grande medida, está incluída nas negociações do Protocolo de Kyoto sob o nome de “desmatamento evitado” e em muitas outras tribunas internacionais. Começar por pagar agricultores para que eles não desmatem pode não ser a melhor estratégia, quando se sabe que as unidades de conservação e as terras indígenas não estão sendo realmente protegidas contra o desmatamento. Os primeiros pagamentos por desmatamento evitado devem ser para assegurar a proteção das áreas que são protegidas no papel, mas não na prática. No Brasil, essas áreas contêm mais de 200 milhões de hectares de floresta e, claro, não é preciso 1.000 reais por hectare para se cuidar delas. Bastaria muito menos, quiçá apenas uma décima parte. Na atualidade o governo gasta menos de 20 reais por hectare. E, a metade dessa soma modesta se usa nas capitais e não no terreno. Esperemos que o recurso generosamente oferecido pela Noruega seja utilizado para esse fim.
Outra consideração é que, na teoria, antes de financiar agricultores para que não desmatem as florestas que legalmente podem derrubar, seria bom evitar o desmatamento das florestas protegidas pelo só efeito da lei. Já que fazer cumprir a lei é tão difícil nos trópicos, seria aceitável que se brinde um prêmio aos que respeitam a lei. No entanto, apenas nesse caso o prêmio deveria ser menor que 1.000 reais por hectare. Uma medida como essa apenas deveria incluir os pequenos agricultores.
Os benefícios ambientais e econômicos da floresta em pé não são diminuídos significativamente se nelas se pratica uma exploração florestal bem feita e cuidadosa, com uma rotação longa, o chamado manejo florestal “sustentável”. Este tipo de manejo, que na atualidade é uma raridade, devido à competição desleal dos maus empresários que produzem 90% da madeira usada no país, também deveria receber um estímulo do governo na forma de um pagamento por hectare por ano.
Assim sendo, o país se beneficiaria enormemente da aplicação de uma proposta como a mencionada no citado artigo. É improvável até se imaginar que o governo atual leve a sério essa proposta que finamente colocaria o cuidado para com o meio ambiente no mesmo nível que a Educação ou a Saúde, mas assim deveria ser. É seguro que vai preferir continuar fazendo discursos, perseguindo gado nos parques e enviando tropas de elite a perseguir caminhões com toras na Amazônia. Cosméticos que não resolvem nada e agravam tudo. Mas, sonhar sempre é bom.
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