Recentemente, quando eu estava trabalhando em um texto enviado pela bióloga paulista Cláudia Bueno de Campos, sobre uma população de onças-pintadas descoberta no árido sertão baiano, recebi uma notícia sobre a captura e aparelhamento com transmissor por satélite de uma onça-pintada no extremo norte da distribuição da espécie, no também árido estado do Arizona, nos Estados Unidos.
Lendo comentários feitos por leitores do jornal Arizona Star, achei interessante traçar um paralelo sobre a situação da espécie nos dois locais. Primeiro, reproduzo abaixo o texto da Cláudia, complementado pelo veterinário Ronaldo Gonçalves Morato, chefe do Centro Nacional de Pesquisa para a Conservação dos Predadores Naturais (Cenap/ICMBio), e depois comento sobre o artigo no jornal norte-americano.
“Quando falamos em “chapadas”, geralmente nos lembramos das mais famosas como a Chapada dos Guimarães, no MT, Chapada dos Veadeiros, em GO, e Chapada Diamantina, na BA. No entanto, existe um lugar com chapadas não tão famosas quanto as citadas, mas tão bonitas quanto, e que abriga uma população de onças-pintadas (Panthera onca), descoberta em 2006 no bioma Caatinga (foto 1).
O Boqueirão da Onça, como é chamada essa região, localiza-se no município de Sento Sé, no norte do estado da Bahia. Um lugar que tem, nas paredes rochosas de seus diversos vales, registros de seus moradores mais antigos, na forma de arte rupestre (foto 2). Tais registros, entretanto, não são tão famosos quanto aqueles encontrados no Parque Nacional de Serra da Capivara, no sul do PI, que vem sendo estudados há décadas pela arqueóloga Niéde Guidon e pesquisadores associados.
Os vales, chamados localmente de boqueirões, variam de tamanho e forma e podem esconder buracos profundos, labirintos formados por paredões enormes de pedras e cavernas, tudo isso em meio à vegetação predominante, a mata branca ou caatinga (foto 3).
Nas partes mais altas, são encontradas também manchas de Cerrado, protegidas até agora pelo difícil acesso criado pelas serras. A primeira impressão da mata cheia de espinhos e urtigas é de um imenso vazio, porém, com o olhar atento, pode-se observar uma intensa beleza e uma variada biodiversidade. A exploração das suas riquezas minerais, iniciada há quase 100 anos por garimpeiros locais, teve seu auge em meados de 1930, quando, conforme testemunharam vários moradores, os “Americanos” retiraram toneladas de pedras preciosas e semi-preciosas, principalmente.
Diamantes, ouro, esmeralda, cristal branco, ametistas, rutilo, citrino e outras, talvez, enriqueceram muitos daqueles exploradores e encheram os olhos e os bolsos de muitos estrangeiros. Hoje, as pedras preciosas já não são mais encontradas, mas as semi-preciosas, retiradas pelo garimpo manual, ainda fazem indianos e chineses viajarem milhares de quilômetros para comprá-las dos atravessadores desta região. O Boqueirão abriga também outras preciosidades, como a fauna de mamíferos da Caatinga que ainda resiste nesse lugar, apesar da caça ser uma atividade ainda ativa e estar culturalmente arraigada na população local. Os vales recônditos ainda escondem espécies já extintas na maior parte desse bioma, como o tatu-bola, o porco-do-mato queixada, o tamanduá-bandeira e a onça-pintada. Esta última espécie só havia sido registrada na área em entrevistas realizadas em 2006, durante o levantamento dos mamíferos da Bacia do Rio São Francisco, quando os pesquisadores Rogério de Paula Cunha, Claudia B. de Campos e Ronaldo G. Morato, do Centro Nacional de Pesquisas para a Conservação dos Predadores Naturais (Cenap/ICMBio), com alguns colaboradores, identificaram vestígios concretos da presença de onças-pintadas no Boqueirão da Onça (fotos 4 e 5).
Com base nesses registros, o Centro encaminhou propostas para o Ministério do Meio Ambiente e o Fundo Nacional do Meio Ambiente e conseguiu recursos para iniciar um estudo intensivo sobre a ecologia desta espécie no bioma Caatinga. O projeto prevê a coleta de informações sobre a morfologia, comportamento reprodutivo, área de vida, e dieta da espécie nesse bioma, incluindo também dados sobre a relação entre os moradores locais e os predadores silvestres, incluindo a onça-pintada (foto 6).
O estudo tem demonstrado que o sertanejo há muito convive com o maior predador do país. Desde os moradores mais antigos da região até os mais novos, é possível ouvir histórias de encontros e enfrentamentos com onças-pintadas. Até mesmo livros que contam a história do cangaço registram a perda de animais domésticos para a onça-pintada, em meados de 1930. Segundo eles, as onças eram mortas tanto por causar prejuízo econômico, como por ter sua pele muito valorizada.
Para isso, os caçadores usavam (e ainda usam) armadilhas como aratacas (armadilha de ferro que desarma quando o animal pisa no centro da armação, que fecha e o prende fortemente com seus “dentes” pela pata), cravinotes (espingarda armada com uma linha numa trilha por onde a onça passa e seu tiro pode ser direcionado tanto para a altura dos órgãos vitais, quanto da cabeça da onça), e até mesmo tocaias. E não faltam histórias de encontros que resultaram na morte da onça com uma pedrada na cabeça, ou até mesmo de duas onças mortas com um facão! Infelizmente, a caça não coloca em risco apenas a onça-pintada.
Fotos 4 e 5: Pintada no Boqueirão da Onça. Foto: Cenap/ICMbio |
Outras espécies de felinos silvestres também são mortas, incluindo a suçuarana (ou onça-parda), a jaguatirica, o gato-mourisco. Além da caça direta desses predadores, os caçadores competem ainda com eles, matando as mesmas espécies que servem como alimento para eles, como inambus, veados, caititus, cutias e tatus, freqüentemente para a venda ilegal de suas carnes. A região serve também de fonte para espécies que são destinadas ao tráfico de animais silvestres, desde o município de Irecê até Feira de Santana e Salvador.
Quanto às onças-pintadas, a equipe do Cenap trabalha entre boqueirões, cactos, urtigas, espinhos e sob o sol escaldante do sertão baiano, na busca das informações necessárias para saber qual o número de onças nessa região, e se existe contato com outras populações como, por exemplo, as do sul do Piauí, de forma a permitir a troca genética entre seus indivíduos.
Tal estudo tem por objetivo a criação de uma unidade de planejamento para a conservação, formando um corredor ecológico, que “são porções de ecossistemas naturais ou semi-naturais, ligando unidades de conservação, que possibilitam entre elas o fluxo de genes e o movimento da biota, facilitando a dispersão de espécies e a re-colonização de áreas degradadas, bem como a manutenção de populações que demandam para sua sobrevivência áreas com extensão maior do que aquela das unidades individuais (Lei n. 9.985/2000), denominado Corredor Caatinga-Onças.
Essa área, ainda em estudo, compreende 51 municípios localizados nos estados do Piauí e Bahia, estendendo-se desde o Parque Nacional da Serra da Capivara, no PI, até a Floresta Nacional Contendas do Sincorá, na BA. Estimativas correntes indicam que a densidade de onças pode variar de um indivíduo por 100 Km2, como determinado pela equipe do Cenap-ICMBio na região do Boqueirão da Onça, até 3 indivíduos por 100 km2, na região do Parque Nacional Serra da Capivara, estimativa feita pela equipe do Instituto Onça Pintada, de Mineiros, GO.
Esforços estão concentrados, nesse momento, na captura de indivíduos para que sejam equipados com colares transmissores utilizando sistema GPS. Desta forma, será possível determinar como estes animais usam a paisagem e, com base nessas informações, estabelecer estratégias de conservação da espécie e, conseqüentemente, do bioma Caatinga”.
Estrangeiro ilegal – Conforme a notícia citada acima, um exemplar macho de onça-pintada ou jaguar (também chamado de tigre, nos países de língua espanhola) foi capturado “acidentalmente” em um laço armado para capturar onças-pardas ou pumas (aqui também chamados de suçuaranas) e ursos-pretos. Infelizmente, desde que eu recebi a primeira notícia sobre essa captura, as coisas não andaram muito bem para esse animal. Ele foi apelidado Macho B depois que se descobriu que ele era o mesmo animal fotografado mais de 60 vezes por armadilhas fotográficas empregadas em um projeto para estudar a presença de onças-pintadas no sul dos Estados Unidos, na fronteira com o México. Seu colar passou a enviar localizações via satélite para o computador de Jack Childs, responsável pelo projeto, e repassadas para os técnicos da Game and Fish Commission do estado do Arizona (órgão estadual responsável pelo manejo e conservação de fauna).
Jack Childs foi a segunda pessoa, no ano de 1996, a registrar a presença da onça-pintada nos Estados Unidos. Antes desse encontro, em outubro do mesmo ano, Warner Glenn, também guia de caça licenciado para levar caçadores para a caça do puma-americano (espécie considerada como cinegética em alguns estados do país), havia fotografado um outro macho, no mesmo estado do Arizona, escrevendo a história em um livrinho extremamente interessante chamado Eyes of Fire (Olhos de Fogo). Esses encontros fortuitos acabaram aproximando pessoas, principalmente fazendeiros e conservacionistas locais e instituições, que formaram o Grupo Malpai de Conservação do Jaguar. Mais tarde , em maio de 1998, o próprio Jack Childs veio para o Brasil fazer um treinamento conosco em alguns locais no Pantanal, para aprender mais sobre a espécie e, principalmente, poder identificar sinais deixados em casos de predação, que a diferenciassem do puma. A intenção era indenizar prejuízos causados por jaguares, se predassem animais domésticos, para evitar a retaliação por parte dos fazendeiros, mas isso não seria feito para prejuízos causados pelo puma, cuja caça é permitida. Os resultados da visita deles foram publicados em um livro-guia, extremamente didático, e que tem sido muito utilizado na região. Desde então, Childs tem estado envolvido no monitoramento intensivo daquela zona de fronteira, para registrar os movimentos de indivíduos da espécie, e sido uma voz forte na tentativa de restabelecer uma população em solo americano. |
Essas localizações mostraram que, depois da captura, os movimentos do animal foram se reduzindo. Para investigar os motivos para isso, o animal foi recapturado e levado para o Zoológico de Phoenix para exames detalhados. Os exames mostraram que ele estava com uma falência no funcionamento dos rins, possivelmente relacionada à anestesia e stress por ocasião da captura e pela idade avançada. Optou-se, então, pela eutanásia, tendo ele sido sacrificado com uma injeção letal, por veterinários do próprio zôo.
Toda essa história desencadeada pela captura originou uma avalanche de comentários escritos por leitores do jornal, pelo fato de o animal ser um dos poucos indivíduos que aparentemente cruzavam a fronteira com o México, desde a primeira vez que foi encontrado por Jack Childs, em 1996 (ver quadro ao lado). Juntamente com pelo menos três outros animais (aparentemente todos machos) também fotografados pelas câmeras, ele formava uma população “incompleta” a ocupar o extremo norte da distribuição da espécie. Incompleta porque, até o momento, não se pôde constatar a presença de nenhuma fêmea, com a possibilidade de haver ocorrido reprodução e nascimento de filhotes em território estadunidense.
E essa situação da espécie se faz ainda mais complicada pela construção da cerca que deverá impedir a entrada de estrangeiros indesejados. Alguns dos comentários se referem também ao jaguar como incluído no mesmo rol de indesejados. Outras pessoas deixam claro sua posição de que é uma pena que os conservacionistas, a favor da re-colonização da onça-pintada, não sejam também uma espécie em extinção. Com o simbolismo negativo da morte do Macho B, com as dificuldades ecológicas naturais e antrópicas que aparentemente têm evitado o restabelecimento de uma população residente, com a construção iminente da polêmica cerca, e com a divisão da opinião pública local em relação à conservação da espécie, é bem provável que as nossas onças da Caatinga, no Boqueirão da Onça, tenham melhores chances de conservação.
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Ta faltando essa realocaçao de individuos. Antes de liberar a caça pra os animais nativos.
Fodam-se os americanos, quero nossas onças bem distante deles!