Quando fui convidado a publicar uma coluna aqui no Eco, em meados de 2008, o objetivo foi o de escrever sobre temas que eu considerasse interessantes, envolvendo principalmente a nossa fauna, no que tange o estudo de diferentes espécies, geralmente com implicações para o seu manejo e sua conservação.
Tendo eu, durante os meus 32 anos de carreira, me envolvido quase que exclusivamente com felinos, meus artigos têm, até agora, com poucas exceções, refletido minhas tendências.
Para a presente matéria, no entanto, resolvi escrever sobre um grupo de animais com os quais tive muito pouco contato diretamente, mas que, indiretamente, formam a base da pirâmide alimentar, da qual dependem praticamente todos os outros grupos que vêm acima deles, considerando os mamíferos carnívoros (além também de algumas aves e répteis). Tecnicamente, esse grupo é chamado de pequenos mamíferos, incluindo os roedores e marsupiais, geralmente com peso inferior a 1 quilo.
Para escrever sobre esse tema, pedi a colaboração de uma colega e amiga, Pâmela Castro Antunes, que defendeu, recentemente, sua tese pelo Departamento de Ecologia da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul. Atualmente, ela está vinculada ao Laboratório de Ecologia e Conservação de Populações, do Departamento de Ecologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Nossa intenção é chamar a atenção para a importância desse grupo tão pouco conhecido do público em geral e, até, estigmatizado pela relação que se faz dele com o rato comum (Rattus rattus), com a ratazana (Rattus norvergicus), e com o camundongo doméstico (Mus musculus), que tem acompanhado o homem em todas as suas viagens para colonização dos diferentes continentes, desde os primórdios dos tempos.
Atualmente são conhecidas no Brasil cerca de 200 espécies de pequenos roedores e 55 marsupiais, havendo espécies dos mais diversificados hábitos. Elas podem ser arborícolas (quando vivem somente nas árvores), cursoriais (se vivem estritamente no chão), escansoriais (as que vivem tanto no estrato arbóreo quanto no chão), fossoriais (quando vivem em tocas) e semi-aquáticos (se passam boa parte do seu tempo dentro d’água). Como tamanho não é documento, apesar de pequenas, essas espécies são peças-chaves na manutenção dos processos ecológicos em ambientes naturais, constituindo a base da alimentação de predadores de pequeno e médio porte, como gatos silvestres, cachorros-do-mato, iraras. Por outro lado, eles próprios são também predadores de muitos grupos de invertebrados, além de consumirem folhas, frutos e sementes. Para algumas espécies vegetais desempenham, inclusive, o papel de dispersores de suas sementes.
Grandes nomes da ecologia no Brasil têm se dedicado a estudar esse grupo, desde aspectos de sua história natural, questões ecológicas, até abordagens ligadas à conservação da biodiversidade. Durante muitas décadas, pesquisadores têm se dedicado a elucidar detalhes da ecologia básica de diversas espécies de pequenos mamíferos, como a composição da dieta, o tamanho da área de vida, aspectos reprodutivos e populacionais. Mais recentemente, o uso dos estratos verticais das florestas, a seleção de habitats e os períodos de atividade também têm sido foco de algumas pesquisas.
Por outro lado, pequenos roedores e marsupiais são ótimas ferramentas para se testar questões centrais da ecologia, como relações intra e interespecíficas, e até aspectos de genética e hereditariedade. No geral, são espécies fáceis de ser capturadas e manipuladas, o que permite que, em alguns meses ou poucos anos de amostragem, dependendo do foco da pesquisa, sejam gerados resultados claros e consistentes. Além disso, eles têm ciclo de vida curto, quando comparados a outros mamíferos, o que resulta em respostas mais rápidas a alterações ambientais, tornando possível a sua utilização como indicadores da qualidade dos habitats. Por utilizar áreas de vida pequenas, eles mostram uma capacidade de discriminar entre variações pequenas nos habitats e na paisagem. E o fato de grande número de espécies ocuparem nichos diferentes, possibilita aos pesquisadores avaliar vários parâmetros no ecossistema.
Recentemente, um estudo realizado no Pantanal do Mato Grosso do Sul (executado por Pâmela Antunes sob-orientação do Dr. WalfridoTomas, da Embrapa-Pantanal) teve como foco entender como três espécies de pequenos mamíferos se distribuem na paisagem e como elas se relacionam com os habitats que ocupam. Foram estudados dois roedores (o rato de espinho, Clyomys laticeps, com peso de 100 a 257g, e o rabudo ou punaré, Thrichomys pachyurus, de 170 a 450g), e um marsupial (a catita, Monodelphis domestica, de 80 a 150g).
Descobriu-se que essas espécies ocorrem em maior abundância nos ambientes mais florestados e possuem afinidades com características distintas do habitat. O rato de espinho, por exemplo, está relacionado com a presença da palmeira acuri, que fornece sua principal fonte de alimento, o fruto e a semente do acuri. Esse ratinho come tanto a polpa do fruto quanto sua castanha (semente). Os punarés ocorreram principalmente associados a grandes aglomerados da bromélia caraguatá. Essa planta tem espinhos afiados e pode formar grandes aglomerações dentro dos capões de mata e na borda das cordilheiras (que são áreas pouco mais altas, onde se desenvolve uma mata que normalmente não é inundada durante as enchentes). O caraguatá proporciona alimento e principalmente proteção para a espécie, contra seus predadores. Essas estruturas do habitat funcionam como peças-chaves para a ocorrência desses pequenos mamíferos, e é de se esperar que alterações no ambiente que modifiquem essas estruturas afetem também as espécies de pequenos mamíferos.
Em outro enfoque da pesquisa, foi possível observar isso claramente na prática. Além de estudar áreas com o ambiente intacto, expandiram-se as capturas dos pequenos mamíferos para ambientes onde a vegetação natural foi suprimida e substituída por campos de capim Brachiaria (originário da África), destinados à criação bovina. Nessas áreas alteradas, os ratos de espinho ocorreram em abundância bem menor que nas áreas nativas e os punarés desapareceram completamente. Quando considerada toda a fauna de pequenos mamíferos nessas áreas, outras espécies também foram perdidas, como o marsupial arborícola Thylamys macrurus e duas outras espécies de roedores, do gênero Oecomys.
A prática da pecuária tem sido a principal fonte econômica do Pantanal há mais de 200 anos. No entanto, até recentemente, o manejo era feito de modo tradicional pelos pantaneiros, mantendo intacta a paisagem e utilizando os campos nativos para a criação do gado. Nos últimos anos, algumas propriedades vêm deixando de lado o manejo tradicional e adotando técnicas mais intensivas de criação, substituindo a vegetação natural por monoculturas de gramíneas exóticas como as braquiárias. Essas técnicas têm efeito prejudicial sobre a diversidade da paisagem e sobre a fauna, como se pôde observar com os pequenos mamíferos nesse estudo, acarretando na perda das espécies mais exigentes. Isso se aplica também a espécies de mamíferos maiores que dependem de habitats florestais, como o queixada, o veado mateiro, o cachorro-vinagre, entre outros.
Pelas vantagens já mencionadas, os pequenos mamíferos podem, ainda, ser chave para investigar a efetividade de práticas ditas sustentáveis, como sistemas agro-florestais, e de algumas estratégias conservacionistas, como a implantação de corredores ecológicos, o que já vem sendo feito por alguns grupos de pesquisa.
Nas últimas décadas, o aumento do desmatamento e a conseqüente perda de habitat e fragmentação em todos os biomas brasileiros, principalmente na Mata Atlântica, tem sido a principal ameaça à conservação das espécies, inclusive para os pequenos mamíferos. Com isso, temas como a perda de espécies e a conservação da biodiversidade têm ganhado destaque e atraído a atenção dos ecólogos e de pessoas mais conscientes. Alguns de nossos melhores pesquisadores vêm, há alguns anos, utilizando diversas espécies de pequenos mamíferos para responder a questões ligadas a estes temas.
O pesquisador Fernando Fernandez (também colunista de O Eco) e seu grupo, por exemplo, desenvolveram, ao longo de onze anos, diversos projetos de pesquisa na Reserva Ecológica Poço das Antas, onde se localizam oito remanescentes florestais de Mata Atlântica. Nesses onze anos, questões cruciais para a conservação em áreas fragmentadas foram estudadas, tendo como foco principal entender como as espécies utilizam a paisagem fragmentada e como isso influencia a habilidade delas em persistir nesses ambientes alterados. A investigação de aspectos como a vulnerabilidade das populações à extinção, a capacidade dos indivíduos de diferentes espécies de se locomoverem através da matriz (o ambiente predominante), ou ainda a capacidade deles utilizarem a matriz como habitat, mesmo que alterado antropicamente, ajudaram nesse entendimento. Outro grupo que dedica esforços a questões diretamente ligadas à conservação é o coordenado pela pesquisadora Renata Pardini. Suas pesquisas têm também avaliado o efeito da perda de habitat e da fragmentação na abundância, riqueza e diversidade de espécies, além de investigar a capacidade das comunidades de pequenos mamíferos se manterem em ambientes fragmentados e antropizados. Desta forma, o enfoque do grupo do Fernandez é mais populacional e o da Pardini é mais comunitário.
Vários outros pesquisadores têm dedicado boa parte de suas vidas ao estudo dos pequenos mamíferos. Luiz Flamarion B. de Oliveira e João Alves de Oliveira, do Museu Nacional do Rio de Janeiro, aliam questões taxonômicas e ecológicas, estudando a composição de espécies, modelagem de distribuição potencial de espécies e relações espécie-habitat. Na Fundação Instituto Oswaldo Cruz (FIOCRUZ), Cibele Rodrigues Bonvicino e Paulo Sergio D’Andrea trabalham também em associação com o Museu Nacional, mas estão mais centrados em questões relacionadas a pequenos mamíferos e a dinâmica de zoonoses na interface entre áreas naturais e áreas ocupadas por populações humanas. Thales Renato de Freitas e Margarete Sune Mattevi, do Depto. de Genética da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, trabalham há décadas na genética e filogeografia de pequenos mamíferos no Brasil. Da mesma forma, Rui Cerqueira, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, e Alfredo Langguth, da Universidade Federal da Paraíba, já formaram muitos pesquisadores atuantes, o primeiro estudando a ecologia e o segundo, a taxonomia desses grupos.
Para os biólogos, todos esses serviços ecológicos e essa aplicabilidade nas pesquisas parecem bastante óbvios, e a importância da conservação deste grupo é inquestionável. Mas para as outras pessoas, os milhões de não-biólogos, o que representam os “ratos”, de uma forma geral? Infelizmente, para a grande maioria das pessoas, inclusive para alguns biólogos, a única fama dos ratos é de serem animais sujos, que se espalham e vivem na sujeira. Os gambás, que são os nossos marsupiais mais conhecidos, carregam a fama de serem animais fedidos. No entanto, isso se dá por serem confundidos com o cangambá, que é o nosso zorrilho ou jaritataca (primo do skunk norte-americano, popularizado como Pierre Le Gambá, no desenho infantil), que se defende disparando um jato de urina nos seus inimigos. Além, é claro, do perigo propalado que ambos os grupos representam um risco para as pessoas, por transmitirem doenças.
Como diz meu genro, José Luis Cordeiro, ele mesmo pesquisador da Fiocruz, todos esses pesquisadores, certamente já ouviram comentários como: “porque perder tempo com esses bichos pequenos que ninguém vê e quando vê, corre ou mata o mais rápido possível” ou “rato é tudo igual”. Segundo ele, “já dei respostas complexas, sintéticas, mas atualmente, quando perguntado respondo simplesmente – é porque gosto”.
Com todo esse preconceito, como então pensar em estratégias para a conservação dos pequenos mamíferos? Infelizmente, as idéias conservacionistas difundidas para a população humana não evoluíram o suficiente para chegarmos a esse ponto. Com certeza, investir na conservação dessas espécies não teria o mesmo apelo emocional e muito menos o mesmo impacto de marketing do que defender a conservação dos grandes predadores, como a onça-pintada, por exemplo. Mas com certeza contribuiria para a manutenção de muitos processos ecológicos. Vale a pena também mencionar que, assim como os pequenos mamíferos, outros grupos como morcegos, anfíbios e répteis, para mencionar apenas os vertebrados, têm sido negligenciados e considerados como sendo de pouca importância (ver matérias por Germano Woehl, no Eco, sobre as pererecas).
Enquanto esperamos pela expansão e aplicação das idéias e das práticas conservacionistas específicas para esses grupos menos compreendidos, ficamos torcendo para que seja verdadeiro o conceito largamente usado em Biologia da Conservação atualmente, o das espécies guarda-chuvas. Essas espécies são aquelas consideradas mais exigentes ecologicamente, como os grandes predadores ou grandes herbívoros, que são mais especialistas nos tipos de habitats que ocupam e que precisam de áreas enormes para suprir as suas necessidades de alimentação, proteção e reprodução. Segundo esse conceito, a conservação de áreas grandes o suficiente para manter populações viáveis dessas espécies, automaticamente garantiria a proteção de todas as espécies que vem abaixo delas, na cadeia alimentar. Por esse motivo, esperamos que as centenas de espécies de ratos, gambás e cuícas sejam realmente protegidas no guarda-chuva de espécies maiores e mais famosas, como onças, harpias, antas e tamanduás.
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