Durante boa parte do século XIX acreditava-se que doenças eram causadas por miasmas pestilentos transportados pelo ar. Esta crença foi eventualmente deixada para trás quando Robert Koch provou que a tuberculose, em 1882, e a cólera, em 1883, são causadas por bactérias.
Apesar das provas oferecidas, a teoria de que doenças são causadas por germes tinha críticos que argumentavam que Koch, Pasteur e outros cientistas haviam provado que germes existiam, mas não que estes causavam doenças, ou pelo menos que eram a causa única da doença.
Um destes críticos era Max von Pettenkofer, um cientista que fez contribuições significativas na sua área, mas advogava apaixonadamente que o consenso científico estava errado. Para provar isso, von Pettenkofer preparou diversos tubos de ensaio com culturas de bactérias da cólera e os bebeu juntamente com seus alunos. Embora dois destes tenham desenvolvido casos leves de cólera, todos sobreviveram e von Pettenkofer clamou vitória.
Em 1892, bactérias da cólera contaminaram o suprimento de água de Hamburgo e da cidade vizinha de Altona. As autoridades de Altona seguiram o consenso científico e filtraram a água, e seus habitantes escaparam de uma epidemia. Hamburgo acreditou na opinião oposta e não filtrou sua água.
O resultado foram 8.606 mortos. Von Pettenkofer se tornou uma figura ridicularizada e odiada. Suicidou-se.
Seria fácil traçar um paralelo entre esta história e a disputa que vemos hoje entre cientistas que alertam para as mudanças climáticas causadas por nós ao queimarmos combustíveis fósseis e florestas, e aqueles que negam a realidade ou importância disto. Os fatos mostrarão quem está correto.
Acho mais interessante pensar nas diferenças entre os governos de Altona e de Hamburgo. Imagino os governantes das duas cidades tendo que decidir entre agir ou deixar as coisas acontecerem. As pressões feitas por quem teria que bancar o custo de filtrar a água e por quem executaria o serviço. Certamente houve quem dissesse que o custo seria proibitivo, resultaria em perda de empregos, que o dinheiro seria mais bem aplicado em outros projetos, etc., etc. Hoje sabemos quem tomou a decisão correta.
Governantes são julgados pelos seus atos, e os atos deveriam ser julgados pelas conseqüências. Infelizmente a percepção de causa e efeito, e o custo-benefício de atos presidenciais tendem a ser filtrados pela opinião pública.
Por exemplo, Juscelino Kubitschek é endeusado pela construção de Brasília, obra que merece ser avaliada pelas conseqüências. Por exemplo, ela resultou na extinção de um simpático roedor improvavelmente batizado de Juscelinomys candango. E teve conseqüências na vida política do Brasil que são muito evidentes hoje em dia.
Além da extinção, que é para sempre, e da popularização da arquitetura estilo Niemeyer, o legado mais duradouro de Juscelino é seu governo ter sido um ponto de mudança na corrupção brasileira. A construção de Brasília foi atrelada a pacotes de “bondades” (passagens grátis, auxílio-moradia, etc.) oferecidas para que nossos congressistas aceitassem se mudar do Rio de Janeiro. Vemos hoje no que isso deu.
Mais tipicamente kubitschekianos, os acordos mutuamente interessantes com as empreiteiras para viabilizar a rápida construção da nova capital resultaram na intimidade inadequada entre políticos, empreiteiras e órgãos públicos responsáveis por grandes obras, o que gera hoje boa parte dos escândalos que ocupam a Polícia Federal e o Ministério Público e explica porque temos antes listas de grandes obras desejadas por empreiteiras do que políticas dignas do nome para áreas como transportes e energia.
O imaginário brasileiro prefere olhar Brasília como um grande feito, e realmente ela o é, em termos de engenharia. Mas o legado político e ambiental de sua construção deveria nos fazer pensar melhor.
Meio ambiente tem tudo a ver com política e economia. São estes fatores que determinarão o legado ambiental deste governo, que parece tão dúbio quanto o político. Para começar, Lula, o presidente que odeia pererecas, deve no mínimo, se igualar a Juscelino no quesito extinção causada por obra pública.
Mas o principal legado ambiental que Lula ameaça deixar para o futuro é resultado da grande característica dos dois governos moluscos: sua política agressiva de compra de apoio. Que é evidente no bolsa-esmola, nos financiamentos de estatais e ministérios para ongs companheiras, na domesticação de ambientalistas que viraram governo, no silêncio da UNE e dos sindicatos que já foram caras-pintadas, e no aparelhamento do Estado com companheiros dizimistas. E ululante na compra de deputados de programa e senadores de vida fácil em troca de cargos, obras ou dinheiro vivo mesmo.
Compra de apoio que serviria para “garantir a governabilidade”, mas certamente não foi usada para avançar com nenhuma reforma necessária, e que agora parece servir primordialmente para que Lula eleja sua sucessora, aquela simpática senhora que falsificou o currículo acadêmico e, como seu padrinho, tem a cabeça nos anos 70.
Os votos na eleição de 2006 migraram das regiões mais urbanizadas e com melhor nível educacional, onde o eleitorado foi mais sensível ao escândalo do mensalão, para regiões menos urbanizadas e menos educadas, onde a opinião pública não liga muito para isso. O mesmo eleitorado que leva ao Congresso marimbondos de fogo, caçadores de marajás, cangaceiros de terceira e roubam-mas-fazem.
É o mesmo eleitorado que nas eleições municipais mostrou suas prioridades, ao (re)eleger políticos intimamente associados à indústria do desmatamento, enquanto aqueles que investiram seriamente em educação acabaram chutados de seus cargos. O que nos deixa longe de ex-miseráveis como a Coréia, onde não apenas a prioridade na educação resultou em progresso social, mas políticos corruptos só se redimem quando se suicidam. Ah, se fôssemos como os coreanos…
A crescente sertanização da política nacional e poder cada vez maior que os pactos lulistas têm dado a senhores feudais e agrocratas resultam em impactos ambientais diretos. Lula já deu um presentão aos grileiros de terras na Amazônia com a aprovação da MP da Grilagem. Passo importante rumo ao neoliberalismo ambiental que ruralistas e PACeiros querem impor ao país.
Neoliberalismo que se traduz por um liberou geral para que “as forças criativas do mercado liberem o potencial pleno de crescimento da economia como resultado da eliminação da regulação excessiva imposta sobre o setor produtivo”. Como reza o mantra que cansamos de ouvir até pouco tempo atrás.
Do mesmo modo que a História mostrou que o socialismo é uma roubada, as crises econômicas mundiais mostraram no que dá este tipo de abordagem. Interesses individuais sem moderação externa produzem sistemas instáveis onde a coletividade paga pela ganância privada. Como Thomas Hobbes já notou séculos atrás, é para isso que precisamos de leis e de um Estado que as imponha.
Mesmo assim Lula, versão grisalha e hirsuta de Zé do Caixão, parece disposto a passar para a história como coveiro da legislação ambiental brasileira.
É recorrente que nosso presidente fale em público contra o que vê como entraves ambientais a suas grandes obras. Não é apenas preocupante ver um presidente atacando a lei que jurou obedecer. É sintomático vê-lo ignorar que o entrave não é a lei nem o IBAMA, mas sim a incapacidade governamental de planejar e produzir bons projetos técnicos e orçamentos realistas.
Com o fim do recesso parlamentar e se o congresso não ficar imobilizado por mais escândalos, devem voltar à baila o aleijamento do Código Florestal, MPs isentando rodovias amazônicas de estudos ambientais e outras barbaridades para as quais não têm faltado os Von Pettenkofer da vida, conscientes ou iludidos, para lhes dar sustentação “técnica”, temperados com atentados à inteligência como os que “justificaram” a MP da grilagem e ornam a retórica dos agrocratas, para os quais 33% do país é pouco.
O que veremos nos próximos meses será decisivo para nosso meio ambiente, que é questão estrutural, mas nunca recebeu tal status nas políticas públicas. Com a insuperável capacidade brasileira de matar o futuro em troco do voto imediato, o neoliberalismo ambiental pode bem ser o mais duradouro legado de Lula ao futuro.
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