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A nova geração gosta de onças

O 1º Curso de Biologia e Manejo do Iguaçu não só reabriu no parque o estudo de campo com onças como lhe deu novos visitantes, coloridos como os turistas, mas dispostos trabalhar.

4 de fevereiro de 2010 · 15 anos atrás
  • Marcos Sá Corrêa

    Jornalista e fotógrafo. Formou-se em História e escreve na revista Piauí e no jornal O Estado de S. Paulo. Foi editor de Veja...

O Parque Nacional do Iguaçu abriu o ano com dois recordes populacionais. Passaram por suas portas em janeiro mais de 167 mil visitantes. E ao mesmo tempo caiu a ficha de que suas onças pintadas, recenseadas por armadilhas fotográficas e farta pesquisa de campo, até segunda ordem estão reduzidas a seis indivíduos. É mais ou menos a metade do que havia uma década atrás, quando o biólogo Peter Crawshaw concluiu sua última avaliação metódica. O resto morreu atropelado ou a tiro.

Em outras palavras, o inegável sucesso do Iguaçu como parque veio junto com uma estatística que põe em causa seu êxito como unidade de conservação. E por isso é um alívio a chegada ao parque da turma que veio fazer, no Iguaçu, o Primeiro Curso de Biologia e Manejo de Carnívoros.
São 27 alunos de fora, além dos nove que aderiram programa entre o pessoal do parque e da guarda florestal. Muitos vieram de bem longe, de outros estados ou até do Peru e da Argentina. Pagaram, fora os custos da viagem, 900 reais pela taxa de inscrição. Acomodaram-se num dormitório preparado a toque de caixa para recebê-los, na beira de um caminho de terra que leva ao rio Iguaçu, sob a copa de árvores centenárias. Ou seja, a trilha do Poço Preto.

São, em geral, biólogos ou veterinários. Na média, gente muito jovem. Da turma, 14 alunos nasceram na década de 1980 e 4, nos anos 90. Eles povoaram da noite para o dia estradas e auditórios com rapazes de brinco na orelha e sacola de pano a tiracolo, transitando pelo acostamento da B-469 ou pegando carona em caçamba de picape. E, sobretudo, com moças de short e camiseta que, apesar do uniforme de férias, até à distância se distinguem das turistas, por andarem de lá para cá em trajetos que as visitantes ocasionais nunca percorrem, além de cumprir horários que precedem e ultrapassam com larga folga o funcionamento das bilheterias.

Todos eles estão passando a semana em contato direto, de manhã à noite, com desbravadores da conservação de grandes felinos no Brasil, como Laury Cullen, do Ipê, Ronaldo Gonçalves Morato, do Cenap, ou Dênis Sana, da fundação Pró-Carnívoros. E foram recepcionados com a exuberância de praxe pelo diretor de conservação e manejo Apolônio Rodrigues, um dos funcionários públicos menos convencionais que existem.

Ele entrou para o Ministério do Meio Ambiente como contínuo em Brasília. Efetivado na burocracia ambiental, à medida que ia subindo na carreira, passou a organizar por conta própria mutirões que limpavam parques do Cerrado no fim de semana, para “não enlouquecer” no confinamento do escritório. Apolônio agarrou à unha a primeira chance de uma transferência para a linha de frente. Mudou-se para o Iguaçu, sem escolher o lugar. E nunca mais saiu do parque. Hoje, dá a impressão de conhecer cada palmo de seus 185 mil hectares, incluindo os meandros mais ermos das áreas intangíveis. Mora numa curva de rio que só falta abraçar sua casa de madeira.

Tarimbado como está, Apolônio continua a cair no mato com o entusiasmo de quem está vendo cada coisa pela primeira vez. E há muito o que ver em cada passo no Iguaçu. Já fez papel de jagunço numa produção nacional sobre a colonização do Oeste paranaense e lamenta que o filme nunca tenha passado da ilha de edição. Neste momento sente-se obviamente muito à vontade no meio da estudantada, mimetizado entre os recém-chegados pela barba e o cabelo longo, fora a indumentária de quem está sempre prestes a sumir numa trilha ao primeiro pretexto e o fôlego que lhe permite emendar longos expedientes na administração com papos intermináveis noite adentro.

O curso anda bombardeando os alunos com saraivadas de informações frescas, de primeira mão. Laury Cullen contou-lhes durante uma manhã inteira como aprendeu a trabalhar entre fazendeiros e assentamentos dos sem-terra no Pontal do Paranapanema, salvando com isso onças que, enxotadas por barragens e desmatamentos, sobrevivem contra todos os prognósticos mais razoáveis na reserva estadual do Morro do Diabo.

Ensinou-lhes como fez do diploma de Biologia um passaporte para a pesquisa aplicada em conservação da natureza. Seu trabalho de campo, monitorando por satélite as andanças das onças que, entrincheiradas no Morro do Diabo, ignoram fronteiras municiapis, estaduais e internacionais, além de cercas, beiras de cidade, rodovias e rios cuja travessia que as represas estenderam a 1.800 metros de nado livre.

Os sinais que seus colares emitem durante essas andanças acumularam com o tempo dados precisos para traçar um novo mapa da região – o mapa que sem dúvida as onças fariam se pudessem ver seu pedaço da América do Sul de sensores situados na órbita terrestre. Aos olhos das feras andarilhas, a paisagem picotada por limites artificiais se reintegra num emaranhado de rios, fragmentos de florestas e várzeas que liga o Mato Grosso do Sul ao extremo Oeste do Paraná, varando São Paulo e o Paraguai.

A cartografia feita ela onça, se for conhecida e reconhecida, é o caminho mais curto para garantir que os cem derradeiros exemplares de sua espécie, na vasta bacia do rio Paraná, vençam a única barreira que elas não podem transpor sozinhas: a do tempo, que lhes acena, daqui a meio século, com uma alta probabilidade de extinção.

A tarde de terça-feira Ronaldo Morato conseguiu ocupar sozinho, literalmente entupindo a turma de informações sobre as últimas receitas dos laboratórios de genética para, entre outras proezas de ficção científica, reproduzir jaguatiricas genuinas através de gatos domésticos, ou guardar em bancos de germoplasma a fórmula para trazer de volta espécies silvestres que o mundo vai perdendo inapelavelmente, cada vez mais depressa.

No fim da aula teórica, ao ver que os alunos cabeceavam sob o peso de tanta novidade extra-curricular, levou-os em bando para uma aula prática de tiro-ao-alvo com zarabatanas, revólveres a gás e carabinas. As armas são heranças da tecnologia de caçadas que, com dardos de anestésicos, transformaram-se em ferramentas da conservação. O assunto era sério. Mas, com a mudança de ares e de metolologia didática, o grupo agüentou firme – e às gargalhadas – até o cair da noite.

O curso promete ser o primeiro de uma série. Reabre com ele a temporada de pesquisas com carnívoros de grande porte no Iguaçu, num momento crítico para discutir sua viabilidade a longo prazo. Porque, ao contrário do que faz crer o senso-comum e nossa vã simpatia pelas vítimas, eles são os guarda-parques primordiais. Ninguém toma conta melhor de sua fauna do que uma onça. Em seu território, o resto costuma estar sob controle, inclusive a pequena vanguarda dos polinizadores, que dependem da variedade da flora para existir – e vice-versa.

O curso não poderia começar em melhor hora. Nas circunstâncias que juntaram, na semana de estréia, para cada onça recenseada no parque, quase cinco jovens querendo aprender a conhecê-las, para salvá-las. Se, para a Panthera onca, isso não for um sinal de sobrevivência garantida, há de ser pelo menos um alegre consolo.

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