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Agora é a vez de Itatiaia!

Passados três meses desde que justiça abriu precedente para anular criação de áreas protegidas, associação de 'amigos' do primeiro parque brasileiro quer cancelar decreto.

7 de junho de 2010 · 15 anos atrás
  • Maria Tereza Jorge Pádua

    Engenheira agrônoma, membro do Conselho da Associação O Eco, membro do Conselho da Fundação Grupo Boticário de Proteção à Nat...

A saga do desmantelamento dos parques nacionais do Brasil continua a toda. Muitas vezes a ação começa dentro do próprio governo, quer seja o federal, ou os estaduais. Freqüentes são ainda as medidas deste tipo originadas no legislativo federal ou estadual. Mas, em geral, como é natural, a iniciativa parte de proprietários ou de habitantes da localidade. O ineditismo recente foi o respaldo do Judiciário a tais propostas. Com efeito, a decisão em abril deste ano do juiz da Vara Federal Ambiental, Agrária e Residual de Curitiba, declarando caduco o decreto de criação do Parque Nacional da Ilha Grande (vejam meu artigo sobre o Parque Nacional de Ilha Grande: Displicência Leva à Caducidade ) abre um novo capítulo dos ataques ao Sistema Nacional de Unidades de Conservação com conseqüências imprevisíveis.

“Os que pretendem destruir o Parque de Itatiaia não são muitos, mas são precisamente os que vêm desfrutando de propriedades em seu interior e que até hoje não foram desapropriadas. “

A seqüela da decisão do Juiz de Curitiba não se fez esperar. O precedente, que nem cumpriu três meses de idade, já é utilizado para pretender destruir grande parte do primeiro Parque Nacional criado no país em 1937: o do Itatiaia no estado do Rio de Janeiro. Os que pretendem isso não são muitos, mas são precisamente os que vêm desfrutando de propriedades em seu interior e que até hoje não foram desapropriadas. Aí, remedando e tendo como precedente a declarada caducidade do decreto de criação do Parque Nacional de Ilha Grande, vem a Associação dos Amigos do Itatiaia (AAI) impetrar com o pedido de liminar propondo que o judiciário considere anular o decreto de 1982, que ampliou o Parque Nacional do Itatiaia (PNI). Este decreto aumentou sua área original de pouco mais que 11.000 para cerca de 30.000 hectares.

Os tais “amigos” de Itatiaia, a AAI, ou pelo menos alguns de seus membros, pretendendo estar a favor da implementação desse Parque Nacional, entrou com ação cívil pública pedindo a caducidade do decreto de ampliação Parque. A AAI afirma que se conseguirem do Juiz Federal de Resende, Paulo Pereira Leite Filho, sentença favorável, assim agirá:

“1. Poderemos definir novos limites para o PNI, evitando conflitos, abrangendo áreas com perfis mais adequados às exigências de um parque nacional;

2. Outras unidades de conservação poderão ser criadas, nas esferas federal, dos estados e/ou municípios, tanto do grupo de proteção integral como também de uso sustentável, podendo também RPPNs;

3. Iniciando-se um processo de discussão envolvendo as prefeituras, a sociedade e os órgãos afins, a chance de sucesso é grande. A sociedade atual está amadurecida e não aceita imposições e pode, em conjunto com os órgãos de controle do meio ambiente, propor soluções criativas. Veja o exemplo da discussão para a criação do parque nacional dos Altos Mantiqueira- a sociedade se mobilizou e conseguiu do presidente da república a paralisação do processo.

O plano de manejo da APA Mantiqueira poderá indicar o melhor caminho para a proteção ambiental;

4. A área total de conservação muito provavelmente será ampliada e melhor conservada, tendo a participação da sociedade;

5. Os recursos financeiros que seriam despendidos com a desapropriação de imóveis urbanos, que têm valor de mercado mais alto, poderiam ser mais bem aplicados na conservação das unidades a serem criadas;

6. O primeiro parque nacional do país oferecerá um grande exemplo de conservação ambiental e de respeito à legislação e à sociedade”…

A AAI embasa sua ação na hipótese de que, se declarado caduco o decreto de 1982, seria possível redesenhar os limites do Parque Nacional: “abrangendo áreas cujo perfil mais se adéqua a um parque nacional, excluindo as áreas de conflito” e, indo um pouco além diz “pode-se criar também outras unidades de conservação contíguas ao PNI tanto de proteção integral, como, também de uso sustentável, nos níveis federal, estadual ou municipal”. Quer dizer que, conquanto esses proprietários não sejam atingidos, o Parque pode ser ampliado em outras terras ou propriedades, pois até onde se sabe lá não existem terras devolutas. E a AAI têm a pachorra de escrever “com toda certeza a área de proteção será aumentada. Não haverá perda e sim um ganho para o meio ambiente, para a sociedade e para a democracia”…

“Conservação da natureza serve ou deve servir à sociedade como um todo e não tão somente a interesses locais, por mais legítimos que possam parecer. Ampliar a área de conservação na região só se for através de APAs cujas terras ficam em mãos de particulares .”

Qual será o limite que alguns membros da AAI estão propondo? Esta não é a função daquela associação, mas sim dos técnicos do ICMBio, que estão acadêmica e legalmente preparados para tal. Os requerentes da nulidade do decreto até se arvoram em sugerir que o dinheiro para a desapropriação dos proprietários poderia ser mais bem utilizado em outras unidades de conservação. Que pretensão! Eles não são as autoridades responsáveis e evidentemente não podem se arvorar em dizer o que é melhor para o país, se eles não são especialistas em biodiversidade, mas sim proprietários pegos na armadilha de estarem situados em áreas de relevância nacional e até mundial.

Com todo respeito ao proposto há que se dizer que a sociedade também tem deveres e entre eles obedecer a nossa Constituição e a legislação em vigor. A Constituição é clara no seu artigo 225 no que concerne a áreas protegidas, senão vejamos:

Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao poder público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.

§ 1º – Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao poder público:

I – preservar e restaurar os processos ecológicos essenciais e prover o manejo ecológico das espécies e ecossistemas;

II – preservar a diversidade e a integridade do patrimônio genético do País e fiscalizar as entidades dedicadas à pesquisa e manipulação de material genético;

III – definir, em todas as unidades da Federação, espaços territoriais e seus componentes a serem especialmente protegidos, sendo a alteração e a supressão permitidas somente através de lei, vedada qualquer utilização que comprometa a integridade dos atributos que justifiquem sua proteção;

Assim os membros da AAI terão sim de aceitar imposições legais, no que concerne aos atuais limites do PNI. Nossa Constituição em vigor saiu de um regime democrático. Incitar à indisciplina lembra atos de arbítrio e, portanto, contra a cidadania e a sociedade, que parece eles tanto prezam. Conservação da natureza serve ou deve servir à sociedade como um todo e não tão somente a interesses locais, por mais legítimos que possam parecer. Ampliar a área de conservação na região só se for através de APAs cujas terras ficam em mãos de particulares e que os mesmos podem tudo o que podem outros cidadãos do país regidos pela legislação orgânica. APAs são áreas de uso direto dos recursos naturais, com uma série de atividades permitidas como agricultura, pecuária, loteamentos, mineração, entre muitas outras. Portanto não podem ser comparáveis, nem tampouco substituir aos parques nacionais que protegem muito mais e melhor os recursos naturais para a sociedade.

Parece que alguns prefeitos apoiam a medida e outros ficam em cima do muro. No caso do Parque Nacional de Ilha Grande os prefeitos deram um tiro no próprio pé, pois as suas prefeituras vão perder o ICMS ecológico, que somam grandes quantias para aqueles municípios que possuem unidades de conservação, principalmente as de uso indireto dos recursos naturais.

Há que se compreender que Parques Nacionais são estabelecidos para o benefício da Nação, da humanidade como um todo, em detrimento, é evidente, dos proprietários locais. Estes proprietários merecem ser adequadamente indenizados pelo Poder Público, o que raramente acontece e nunca em poucos anos. Justiça seja feita que os órgãos responsáveis pela administração de Parques Nacionais e outras unidades de conservação deveriam ser mais rápidos no quesito regularização fundiária. Não o são, porque o assunto nunca foi e não é prioridade nacional. Não estão previstos no PAC tampouco.

A presidente da AAI deveria se informar melhor sobre a legislação de unidades de conservação. Por exemplo, ela dá queixa de que “o chefe do Parque divulga manifesto e moções sem o consentimento do Conselho”. Para início de conversa os conselhos destas unidades de conservação são consultivos e não normativos. Não mandam no chefe do Parque, nem substituem a autoridade do ICMBio. Os conselhos são instituídos para informação, coordenação, assessoramento e participação em medidas de apoio e defesa dos parques nacionais e jamais para prepararem medidas que visem extingui-los, ou violentá-los, ou reduzirem seu tamanho. Igualmente a AAI afirma que o decreto de ampliação do Parque Nacional do Itatiaia careceu de medidas de desapropriações dentro do seu escopo. Assim deve ser. Decretos de desapropriação devem ser em separado dos decretos de criação ou ampliação.

No entanto se compreende que os proprietários fiquem ansiosos ante a espera de uma regularização por 27 anos. Isso é um escândalo já que o custo dessa regularização é inexpressivo para o governo federal. O que os proprietários maltratados por décadas de abandono por parte dos governos devem fazer é se coligar para exigir, via judicial sim, seus direitos legítimos a serem justamente compensados pelas suas perdas. Mas, de nenhum jeito eles devem, nem podem pedir a caducidade de instituições indispensáveis para o bem-estar da nação e deles mesmos. Pior ainda é fazer o papel ridículo de se pretender amigos do que querem destruir.

O Brasil enfrenta uma situação gravíssima com relação a pleitos de ações civis pedindo a caducidade de decretos de criação de unidades de conservação. Se a moda pega, como parece ser o caso, o país arrisca perder, em poucos anos, um século de enormes e custosos esforços para legar um pouco do patrimônio natural às gerações futuras. O governo deve levar a sério a regularização fundiária do Sistema Nacional de Unidades de Conservação aplicando os recursos financeiros necessários. Mais ainda, o Judiciário deveria idealmente orientar as suas baterias contra os responsáveis, no Poder Executivo, por mais de décadas de abandono da tarefa de regularizar a propriedade das unidades de conservação. Além disso, nosso Judiciário deveria considerar seriamente as imensas conseqüências dessas ações de alguns dos seus membros.

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