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Suspensão do georreferenciamento de imóveis rurais ‘abre porta’ para a grilagem, alertam especialistas

Decreto adia para propriedades rurais de todos os tamanhos a necessidade de georreferenciamento em casos de transferência

Ramana Rech ·
30 de outubro de 2025

Um decreto que amplia o prazo para que proprietários façam o georreferenciamento de seus imóveis rurais de qualquer tamanho pode favorecer a grilagem de terras, alertam especialistas. 

A medida altera o decreto nº 4.449 de 2002, que estabeleceu prazos para o georreferenciamento de acordo com o tamanho da propriedade em casos de desmembramento, parcelamento, remembramento ou transferência do imóvel. Enquanto proprietários de imóveis com 5.000 hectares ou mais teriam 90 dias para atender o requisito, aqueles com até 25 hectares teriam 22 anos.

O decreto de 2002 atendia a lei nº 6.015 de 1973, que estabeleceu a obrigatoriedade de descrição precisa e georreferenciada de imóveis rurais que passarem por algum processo de transferência.

Assinado pelo vice-presidente Geraldo Alckmin na semana passada, o decreto nº 12.689/2025 amplia os prazos de georreferenciamento para 21 de outubro de 2029, mas sem restrições em relação à área da propriedade. 

O Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) informou que propôs a medida em resposta às “dificuldades que os proprietários de imóveis rurais, em especial os pequenos, relataram estar enfrentando para se adequar, em razão dos elevados custos e da complexidade técnica do processo de certificação”.  

Em post no Instagram, a Federação da Agricultura do Estado do Paraná (FAEP) comemorou a ampliação e disse que o decreto nº 12.689 veio após articulação da federação junto a deputados federais. A FAEP disse ter mostrado aos parlamentares que a medida traria maior segurança jurídica. 

A identificação do imóvel pelo georreferenciamento precisa ser assinada por um profissional e contém as coordenadas do imóvel. As informações ficam disponíveis no Sistema de Gestão Fundiária (SIGEF) vinculado ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA). 

“É um procedimento muito mais robusto do que simplesmente o documento dentro do cartório”, explica o professor de Estudos Sociais da Ciência e Tecnologia da UFMG, Raoni Rajão. Ele explica que, no Brasil, quem fornece a documentação e garante a propriedade de uma área são os cartórios, mas esses dados não são integrados. Com o georreferenciamento no SIGEF, há o impedimento de alterações no terreno do imóvel em casos de sobreposição com outras áreas.

Segundo Rajão, grileiros podem utilizar do adiamento do prazo de obrigatoriedade do georreferenciamento para registrar propriedades em áreas que já tem outros usos. Proprietários que não registraram seus imóveis porque já havia sobreposição poderão também aproveitar o adiamento para realizar as transações antes bloqueadas. 

A Confederação Nacional dos Trabalhadores Rurais (Contag) disse ter apresentado ao governo federal em abril deste ano uma proposta “clara e específica” para que fosse adiado o requisito de georreferenciamento para imóveis de até 25 hectares. 

Em nota, a Contag informou que o pedido visava garantir que famílias com pequenas propriedades sem recursos para serviços georreferenciamento não fossem impedidas de acessar crédito agrícola e políticas públicas. Mas vê com preocupação o decreto ter estendido a medida para propriedades de todos os tamanhos. 

“Essa ampliação beneficia grandes proprietários e cria brechas que podem estimular a grilagem e a concentração fundiária, em detrimento das famílias agricultoras que realmente necessitam de apoio”, diz. 

O professor do Direito Agrário da UFPA Girolamo Treccani considera a prorrogação do prazo um retrocesso ao ir no sentido contrário ao da sistematização de informações, necessária para endereçar o caos fundiário braileiro. Na Lista de Alto Risco de 2024, elaborada pelo Tribunal de Contas da União (TCU), entre as 29 áreas consideradas pelo TCU como as mais críticas da administração pública, está a governança fundiária.

O tribunal justificou a escolha com o fato de que o Brasil não conta com base fundiária unificada e que o desconhecimento da malha nacional favorece a grilagem de terras. Um estudo publicado na revista Land Use Policy em 2019 indica que o governo não sabe quem é o dono de 17% do território nacional, o que corresponde a 141 milhões de hectares do Brasil. 

A suspensão da obrigatoriedade de georreferenciamento pode ter impacto ainda maior na Amazônia, onde, dos 50,2 milhões de hectares de florestas públicas não destinadas, 10,2 milhões de hectares estão dentro do Cadastro Ambiental Rural (CAR) de forma irregular, conforme dados do Observatório das Florestas Públicas. “Na Amazônia, as políticas públicas de destinação de terras estão muito aquém comparado com outros estados”, avalia Treccani. Ele acrescenta que, na região, também falta maior digitalização dos dados sobre imóveis rurais.

A assinatura do decreto n° 12.689 por Alckmin antecedeu a aprovação da tramitação em regime de urgência no Senado do Projeto de Lei 4.497/2025 na terça, 28. A matéria, já aprovada na Câmara dos Deputados, permite regularização de imóveis rurais na faixa de fronteira sem a necessidade de apresentar certidões oficiais.

O PL altera também a mesma lei de 1973 que deu origem ao requisito de georreferenciamento e adia a obrigatoriedade dessa identificação para o fim de 2028. Rajão destaca que, com a flexibilização do controle de imóveis rurais por lei, qualquer reversão das mudanças enfrentará maiores dificuldades. “O que está tendo ali é uma movimentação muito proativa do Congresso Nacional para poder tornar o nosso marco normativo mais permissivo para grileiros”, diz. 

Em nota técnica, a ONG WWF-Brasil afirmou que o PL é um grande retrocesso por flexibilizar requisitos formais e materiais. Segundo a ONG, o projeto legaliza ‘grilagem’ de terras devolutas e cria insegurança jurídica.

  • Ramana Rech

    Formada em jornalismo pela ECA-USP e passou pelo Curso Estadão de Jornalismo Econômico do Estadão. Escreve sobre ciência, meio ambiente, economia e política.

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