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Dilma, veta só o que é retrocesso

Clima de torcida do tipo ambientalistas contra ruralistas não ajuda o Brasil a andar para frente. Há avanços no novo Código Florestal

22 de maio de 2012 · 13 anos atrás
  • Gustavo Geiser

    Engenheiro agrônomo com mestrado em Agroecossistemas pela Universidade Federal de Santa Catarina, trabalha na Polícia Federal...

Arte: Paulo André Vieira.

Todos estão ansiosos pelo desfecho das controvérsias sobre o novo Código Florestal. Eu também estou. Li vorazmente os textos argumentando a favor e contra o novo Código, e vi todos os dias mensagens pelo “Veta Dilma” e, mais ainda, pelo “Veta TUDO, Dilma!” no Facebook. Também li o texto aprovado pela Câmara, e recomendo que todos o façam, ainda que sejam 65 páginas.

Em especial pelas propagandas veiculadas nas redes sociais, me senti incomodado com a polarização exagerada entre “ruralistas” e “ambientalistas”. Mais ainda, incomodou a falta de argumentos dos que defendem o meio ambiente, ou pelas argumentações emocionais dos mesmos.

Como militante da causa ambiental, acredito que para sermos respeitados devemos fazer análises fundamentadas. Nesse sentido, o “Veta tudo” ou argumentos superficiais nos levam apenas ao descrédito em uma eventual mesa de negociações. Um debate do tipo cabo-de-guerra não levará a uma solução efetiva ou justa.

Dos textos que estão circulando e que defendem o  “Veta Tudo”, me chamou a atenção, e motivou a elaboração deste artigo, o denominado 13 Razões para o veto total ao PL 1876/99 do Código Florestal, amplamente veiculado na internet e assinado por pesquisadores de renome.

Esse texto argumenta que a proposta votada pela Câmara dos Deputados seja rejeitada na íntegra, o que manteria vigente o atual Código Florestal de 1965. Até aí tudo bem, muitas das críticas são válidas, o problema é que, em meio às válidas, aparecem outras falsas, induzindo ao erro aquele que lê somente esse texto sem ler a lei na íntegra e compará-la com o Código Florestal vigente.

A nova lei apresenta pontos inaceitáveis, em especial os que estão relacionados à anistia de desmatadores. Mas se precisamos de uma nova lei pois a atual não vem cumprindo sua função , há que se debater propostas, e não combater com fanatismo o que foi votado.

Um grande avanço do novo Código Florestal, ignorado, é a obrigatoriedade do Cadastro Ambiental Rural, melhor ferramenta já proposta para efetivamente garantir a recomposição das áreas degradadas. Outro avanço é a definição clara das exceções de uso para APPs, acabando com a hipocrisia reinante, onde ignoramos que nossas pontes e sistemas de captação de água estão, com frequência, em situação irregular. Desconhecer que a proposta de Código aprovada na Câmara possui avanços e desenhar um cenário catastrófico não contribui para uma proposta melhor.

Na tentativa de contribuir para uma argumentação sólida e madura, apresento minhas críticas a cada uma das 13 razões do texto acima citado. Aos que tiverem paciência, elas estão a seguir. Apenas peço que avaliem sua própria posição, antes de embarcar em uma “torcida organizada”. Reitero a sugestão da leitura e comparação dos dois Códigos, o vigente e chamado novo Código Florestal, em discussão.

1. Supressão do artigo 1º do texto aprovado pelo Senado que estabelecia os princípios jurídicos de interpretação da lei que lhe garantia a essência ambiental no caso de controvérsias judiciais ou administrativas. Sem esse dispositivo, e considerando-se todos os demais problemas abaixo elencados neste texto, fica explícito que o propósito da lei é simplesmente consolidar atividades agropecuárias ilegais em áreas ambientalmente sensíveis, ou seja, uma lei de anistia florestal. Não há como sanar a supressão desses princípios pelo veto.

Crítica: parte de um pressuposto falso, a de que o atual Código Florestal é melhor, já que qualquer veto na íntegra pressupõe a manutenção do Código Florestal de 1965. Ainda que a atual lei seja mais rígida do que o projeto recém votado, ela não cumpre sua função, pois não possui mecanismos que garantam sua aplicação.

Vide a atual situação brasileira, onde a imensa maioria das propriedades rurais não cumpre a lei, e não conseguimos fazer quase nada. Além disso, negar que devem haver flexibilizações em pontos específicos mantém a nefasta lógica de aceitar o descumprimento da lei em “casos especiais”, como em certos usos de APPs, como por exemplo captação de água.

2. Utilização de conceito incerto e genérico de pousio e supressão do conceito de áreas abandonadas e subutilizadas. Ao definir pousio como período de não cultivo (em tese para descanso do solo) sem limite de tempo (Art. 3 inciso XI), o projeto permitirá novos desmatamentos em áreas de preservação (encostas, nascentes etc.) sob a alegação de que uma floresta em regeneração (por vezes há 10 anos ou mais) é, na verdade, uma área agrícola “em descanso”. Associado ao fato de que o conceito de áreas abandonadas ou subutilizadas, previsto tanto na legislação hoje em vigor como no texto do Senado, foi deliberadamente suprimido, teremos um duro golpe na democratização do acesso e da terra, pois áreas mal utilizadas, possuídas apenas para fins especulativos, serão do dia para a noite terras “produtivas em descanso”. Essa brecha enorme para novos desmatamentos não pode ser resolvida com veto.

Crítica: ok, o que isso significa? A meu ver garante ao agricultor que as áreas que lhe foram autorizadas para produção agrícola são efetivamente usadas para essa função. Dá a ele o direito de utilizá-las ou não. Se preferir não empregá-las, permite que ele deixe a vegetação se regenerar. Atualmente agricultores gradeiam e passam herbicida em áreas não utilizadas para evitar a regeneração e manter seu direito ao uso da área, o que sem dúvida é pior. Já existe legislação para tratar da questão das áreas improdutivas e reforma agrária, questão essa que não cabe no código florestal.

3. Dispensa de proteção de 50 metros no entorno de veredas (inciso XI do Art. 4º). Isso significa a consolidação de ocupações ilegalmente feitas nessas áreas como também novos desmatamentos no entorno das veredas hoje protegidas. Pelo texto aprovado, embora as veredas continuem sendo consideradas área de preservação, elas estarão na prática desprotegidas, pois seu entorno imediato estará sujeito a desmatamento, assoreamento e possivelmente a contaminação com agroquímicos. Sendo as veredas uma das principais fontes de água do Cerrado, o prejuízo é enorme, e não é sanável pelo veto presidencial.

Crítica: inegável que reduz a proteção de áreas especialmente sensíveis. Porém, no código vigente não há definição clara sequer do que sejam as veredas, e já vi muito debate acerca de qual seria o limite de sua APP. Ou seja, a legislação atual também não protege. E, novamente, isso justifica o veto integral?

4. Desproteção ás áreas úmidas brasileiras. Com a mudança na forma de cálculo das áreas de preservação ao longo dos rios (Art. 4º), o projeto deixa desprotegidos, segundo cálculos do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA), 400 mil km² de várzeas e igapós. Isso permitirá que esses ecossistemas riquíssimos possam ser ocupados por atividades agropecuárias intensivas, afetando não só a biodiversidade como a sobrevivência de centenas de milhares de famílias que delas fazem uso sustentável.

Crítica: idem ao item 3. É inegável que reduz a proteção. Mas será que a regra antiga era adequada? Além disso, o argumento é contraditório pois afirma que milhares de famílias fazem “uso sustentável” de APPs, o que é proibido pelo Código Florestal atual. Quer dizer que é melhor deixar assim, torcendo que para que as “populações tradicionais” possam continuar a desrespeitar o código? Ou admitir que essas áreas possam ter outros usos econômicos e lutar para que sejam sustentáveis?

5. Aumento das possibilidades legais de novos desmatamentos em APP – O novo texto (no § 6º do Art. 4º) autoriza novos desmatamentos indiscriminadamente em APP para implantação de projetos de aquicultura em propriedades com até 15 módulos fiscais (na Amazônia, propriedades com até 1.500 hectares – na Mata Atlântica propriedades com mais de 1.000 hectares) e altera a definição das áreas de topo de morro reduzindo significativamente a sua área de aplicação (Art.4º, IX). Em nenhum dos dois casos o veto pode reverter o estrago que a nova Lei irá causar, ampliando as áreas de desmatamento em áreas sensíveis.

Crítica: o artigo referido nesse tópico trata APENAS da aquicultura (peixes e camarões). A argumentação não parece razoável dentro desse escopo de atividades. Seria possível imaginar centenas de milhares de hectares de APP desmatados para aquicultura? Por outro lado não colocar esse artigo seria proibir a aquicultura, uma tremenda hipocrisia, assim como é impostura fecharmos os olhos para quase todos os locais de bebedouros da nossa pecuária.

6. Ampliação de forma ampla e indiscriminada do desmatamento e ocupação nos manguezais ao separar os apicuns e salgados do conceito de manguezal e ao delegar o poder de ampliar e legalizar ocupações nesses espaços aos Zoneamentos Estaduais, sem qualquer restrição objetiva (§§ 5º e 6º do Art. 12). Os Estados terão amplos poderes para legalizar e liberar novas ocupações nessas áreas. Resultado: enorme risco de significativa perda de área de manguezais que são cruciais para conservação da biodiversidade e produção marinha na zona costeira. Não tem como resgatar pelo veto as condições objetivas para ocupação parcial desses espaços, tampouco o conceito de manguezal que inclui apicuns e salgados.

Crítica: primeiro, o artigo referido não trata de manguezais e sim da Amazônia Legal. Segundo, não é de forma indiscriminada. A nova lei prevê que um estado (a exemplo do Pará ou Amazonas) que já possui grande parte do seu território destinado à preservação ambiental — através de Unidades de Conservação –, possa permitir que as áreas de uso econômico tenham um aproveitamento mais intenso. Cabem questionamentos, mas façamo-los de forma clara.

7. Permite que a Reserva Legal na Amazônia seja diminuída mesmo para desmatamentos futuros, ao não estabelecer, no Art. 14, um limite temporal para que o Zoneamento Ecológico Econômico autorize a redução de 80% para 50% do imóvel. A lei atual já traz essa deficiência, que incentiva que desmatamentos ilegais sejam feitos na expectativa de que zoneamentos futuros venham legalizá-los, e o projeto não resolve o problema.

Crítica: trata-se do artigo 12, e não do artigo 14. Ele discorre sobre a possibilidade de os estados fazerem um Zoneamento Ecológico-Econômico. Isso implica que podem fazer a escolha de manter áreas completamente protegidas e, em troca, reduzirem a Reserva Legal para 50% em áreas de maior potencial agrícola. De fato, há que se tratar com cuidado a questão, mas não é possível dizer que a lei estimula desmatamentos ilegais.

8. Dispensa de recomposição de APPs. (leia aqui)

De acordo: Há que se vetar. Esse é um ponto crucial. Mas ele acaba perdendo força quando o inserimos em um conjunto de argumentos de solidez duvidosa.

9. Consolidação de pecuária improdutiva em encostas, bordas de chapadas, topos de morros e áreas em altitude acima de 1.800 metros (Art. 64), o que representa um grave problema ambiental principalmente na região Sudeste do País pela instabilidade das áreas (áreas de risco), inadequação e improdutividade dessas atividades nesses espaços. No entanto, o veto pontual a esse dispositivo inviabilizará atividades menos impactantes com espécies arbóreas perenes (café, maçã, dentre outras) em pequenas propriedades rurais, hipóteses em que houve algum consenso no debate no Senado. O veto parcial resolve o problema ambiental das encostas, no entanto não resolve o problema dos pequenos produtores.

Crítica: embora o ideal seja permitir a fruticultura e cafezais e proibir a pecuária, esse ponto não justifica o pedido de veto total. Além disso, falar em “pecuária improdutiva” é um preconceito danado, pois existem grandes bacias leiteiras, em Minas Gerais por exemplo, que ficam em áreas de encostas. O problema é ambiental, não produtivo.

10. Ausência de mecanismos que induzam a regularização ambiental e privilegiem o produtor que preserva em relação ao que degrada os recursos naturais. O projeto revisado pela Câmara suprimiu o art. 78 do Senado, que impedia o acesso ao crédito rural aos proprietários de imóveis rurais não inscritos no Cadastro Ambiental Rural – CAR após 5 anos da publicação da Lei. Retirou também a regra que vedava o direcionamento de subsídios econômicos a produtores que tenham efetuado desmatamentos ilegais posteriores a julho de 2008. Com isso, não só não haverá instrumentos que induzam a adesão aos Programas de Regularização Ambiental, como fica institucionalizado o incentivo perverso, que premia quem descumpre deliberadamente a lei. Propriedades com novos desmatamentos ilegais poderão aderir ao CAR e demandar incentivos para recomposição futura. Somando-se ao fato de que foi retirada a obrigatoriedade de publicidade dos dados do CAR, este perde muito de seu sentido. Um dos únicos aspectos positivos de todo o projeto foi mutilado. Essa lacuna não é sanável pelo veto. A lei perde um dos poucos ganhos potenciais para a governança ambiental.

Crítica: a exigência de Cadastro Ambiental Rural, o CAR, presente no novo Código Florestal e ausente no anterior, é o melhor mecanismo já proposto para forçar à regularização ambiental e permitir sua fiscalização. Ainda que o governo não tenha conseguido inserir no Código Florestal ferramentas como a vedação do crédito agrícola a quem não possui CAR, ao menos há a exigência de CAR onde antes não existia. Além disso, leis posteriores podem regulamentar essa questão. No Código atual, sem previsão de Cadastro Ambiental Rural, isso seria impossível.

11. Permite que imóveis de até 4 módulos fiscais não precisem recuperar sua Reserva Legal (Art. 68), abrindo brechas para uma isenção quase generalizada. Embora os defensores do projeto argumentem que esse dispositivo é para permitir a sobrevivência de pequenos agricultores, que não poderiam abrir mão de áreas produtivas para manter a reserva, o texto não traz essa flexibilização apenas aos agricultores familiares, como seria lógico e foi defendido ao longo do processo legislativo por organizações socioambientalistas e camponesas. Com isso, permite que mesmo proprietários que tenham vários imóveis menores de 4 módulos fiscais – e, portanto, tenham terra mais que suficiente para sua sobrevivência – possam se isentar da recuperação da Reserva Legal. Ademais, abre brechas para que imóveis maiores do que esse tamanho, mas com matrículas desmembradas, se beneficiem dessa isenção. Essa isenção fará com que mais de 90% dos imóveis do país sejam dispensados de recuperar suas reservas legais e jogaria uma pá de cal no objetivo de recuperação da Mata Atlântica, pois, segundo dados do Ipea, 67% do passivo de Reserva Legal está em áreas com até 4 módulos.

De acordo com uma crítica: analisa o artigo errado. É o 67 e não o 68, citado acima. Há que ser vetado. Novamente, é um ponto crucial que perde força quando aparece inserido em um conjunto de argumentos pouco sólidos.

12. Cria abertura para discussões judiciais infindáveis sobre a necessidade de recuperação da RL (Art. 69). A pretexto de deixar claro que aqueles que respeitaram a área de Reserva Legal de acordo com as regras vigentes à época estão regulares, ou seja, não precisam recuperar áreas caso ela tenha sido aumentada posteriormente (como ocorreu em áreas de floresta na Amazônia, em 1996), o projeto diz simplesmente que não será necessário nenhuma recuperação, e permite que a comprovação da legalidade da ocupação seja com “descrição de fatos históricos de ocupação da região, registros de comercialização, dados agropecuários da atividade”. Ou seja, com simples declarações, o proprietário poderá se ver livre da RL, sem ter que comprovar com autorizações emitidas ou imagens de satélite que a área efetivamente havia sido legalmente desmatada.

Crítica: artigo errado, é o 68 e não o 69. Trata-se apenas de garantir o direito adquirido à Reserva Legal de 50% para todos os imóveis que desmataram e investiram na área até o limite de 50% quando a lei assim o permitia. Já há entendimento de que seja ilegal retirar esse direito desses proprietários, que formavam pastagens quando a lei EXIGIA que as áreas fossem abertas. Se vai produzir debates e discussões judiciais? Certamente vai, assim como atualmente já gera, o que apenas explicita que a lei vigente também não cumpre seu propósito de legislar sobre o assunto.

13. Desmonte do sistema de controle da exploração de florestas nativas e transporte de madeira no País. O texto do PL aprovado permite manejo da Reserva Legal para exploração florestal sem aprovação de plano de manejo (que equivale ao licenciamento obrigatório para áreas que não estão em Reserva Legal), desmonta o sistema de controle de origem de produtos florestais (DOF – Documento de Origem Florestal) ao permitir que vários sistemas coexistam sem integração. A Câmara rejeitou o parágrafo 5º do Art. 36 do Senado, o que significa a dispensa de obrigação de integração dos sistemas estaduais com o sistema federal (DOF). Como a competência por autorização para exploração florestal é dos Estados (no caso de propriedades privadas rurais e Unidades de Conservação estaduais), o governo federal perde completamente a governança sobre o tráfico de madeira extraída ilegalmente (inclusive dentro de Unidades de Conservação federais e Terras Indígenas) e de outros produtos florestais no País. Essa lacuna não é sanável pelo veto presidencial.

Crítica: completo exagero. Em primeiro lugar, o código florestal vigente (Lei 4.771/65) sequer cita o DOF — Documento de Origem Florestal, que evoluiu para o sistema DOF, bastante bom, de controle para exploração e comércio de madeira e outros produtos oriundos de vegetação nativa.

Ao contrário, o projeto aprovado pelo Congresso cita, prevê e obriga o sistema DOF. Em segundo lugar, o Capítulo VIII inteiro do novo Código (do artigo 35 em diante) trata de forma detalhada do sistema de controle. Finalmente, continuam valendo a legislação específica e as resoluções do CONAMA hoje existentes, que regulam essa questão de maneira mais detalhada. Ou seja, é o oposto do que, neste tópico, os autores do 13 RAZÕES escreveram.

Eis o que considero poder contribuir. Espero que a crítica seja considerada construtiva, e que possamos demonstrar o nível de maturidade que o Brasil merece, às vésperas da Rio +20.

 

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