Embora não sejam diretamente comparáveis, as recentemente revisadas legislações do Brasil (Lei nº 12.651 de 2012) e Peru (Lei nº 29.763 de 2011) merecem uma análise conjunta para destacar suas diferenças e semelhanças, bem como as virtudes e defeitos de cada uma. A muito resumida análise que se apresenta está focada na aplicação destas leis na região amazônica, que é um lugar comum para ambos os países.
É preciso começar por lembrar que a revisão da lei florestal peruana foi essencialmente motivada pelo descontentamento dos indígenas amazônicos, que teve a sua expressão mais violenta nos trágicos acontecimentos de Bagua, pequena cidade ao norte do Peru, onde em junho de 2009 muitos policiais foram massacrados por indígenas indignados pelo descaso do governo o que, obviamente, provocou represálias importantes. No caso do Brasil, a revisão da lei teve uma origem de certa forma oposta, já que foi abandeirada pelo mais poderoso setor do ruralismo tradicional, descontente com as medidas de proteção às florestas que o antigo Código Florestal exigia. Estas, que foram ignoradas por décadas, surpreenderam e apavoraram aos latifundiários quando começaram a ser aplicadas. Como eles e seus partidos dominam no campo e no Congresso Nacional forçaram a aprovação de um novo Código, bem menos severo que o anterior em termos de conservação florestal. O que é curioso é que, apesar desse fato, o Código brasileiro ainda tem muito que ensinar ao peruano.
Verdade é que as realidades florestais de ambos os países em relação à legislação são diferentes pelo fato de que no Brasil existe a propriedade privada de florestas naturais. Embora os recursos florestais naturais do Brasil sejam bens de interesse comum, neles são exercidos direitos de propriedade com as limitações impostas por lei. As florestas públicas são as que estão em unidades de conservação ou florestas nacionais. Além disso, existem florestas em terras indígenas e nas chamadas terras devolutas, que são do Estado, mas que, no futuro, podem ser repassadas ao setor privado. Todo o resto, que é muita floresta, pertence a pessoas físicas ou jurídicas em forma de propriedades rurais.
No Peru, no entanto, os recursos florestais naturais são todos de domínio do Estado, não existindo propriedade privada de florestas naturais a não ser quando possam legalmente ser convertidas para uso agropecuário. O aproveitamento da floresta é concedido através de concessões de diferentes tipos, com normas especiais de uso para as que estão em terras de comunidades indígenas. De qualquer maneira, os limites à propriedade rural, no Peru, são rigorosos, e impossibilitam tamanhos de propriedade que seriam consideradas apenas de porte médio no Brasil. Em parte, como as florestas naturais são propriedade do Estado, as recentes leis peruanas têm eliminado a figura de florestas nacionais.
Por essas diferenças de direito de propriedade, as legislações florestais de ambos os países têm ênfase diferentes. A lei brasileira, especialmente a revisão de 2012, enfatiza as regras de uso da floresta na propriedade privada, enquanto a revisão de 2011 da lei peruana concentra-se nas regras de exploração de florestas naturais através de concessões. Note-se também, no Brasil existe uma lei que trata especificamente das concessões em florestas nacionais.
Destaques da legislação brasileira
(…) a nova legislação peruana é essencialmente declarativa sobre evitar o desmatamento ilegal e, portanto, este deve aumentar.
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O resultado de ambos os processos políticos produziu, como era de se esperar, textos legais muito diferentes. A lei brasileira é muito mais “ambiental” do que a lei do Peru. Dedica a maior parte de seus artigos a estabelecer limites e regras para a substituição da floresta ou de seu uso nas propriedades, de modo a garantir a conservação da biodiversidade, proteger as nascentes e cursos d’água ou evitar processos erosivos através da manutenção da floresta.
A lei brasileira confirma, para a Amazônia, a determinação de que 80% (reserva legal) de cada propriedade rural amazônica devem permanecer cobertos de floresta embora, como era previsível, também estabeleça algumas exceções a esta regra geral. Também declara como área de preservação permanente as florestas contempladas em uma série de circunstâncias. Entre elas, exige-se manter ou restaurar, se foi eliminada, a vegetação natural sobre 30 metros nas margens de rios de menos de 10 metros de largura e de 500 metros em rios com mais de 500 metros de largura – estes são exemplos, há uma escala complexa na lei – e estabelece não desmatar em encostas superiores a 45 graus ou no topo de morros, em restingas, manguezais e em zonas superiores a 1.800 metros de altitude.
Não é só isso. O novo Código também mantém a obrigação de registrar no cartório a reserva legal e as áreas de proteção permanente, que em caso de venda do imóvel não podem ser alteradas, e ainda cria um Cadastro Ambiental Rural. Estabelece também as “cotas de reserva ambiental” que são negociáveis e/ou transferíveis no caso de manter-se mais do que a lei exige e adota outras medidas interessantes.
Para cumprir essa parte da legislação, esta lei e outras no Brasil preveem sofisticados mecanismos de monitoramento remoto associados ao mencionado cadastro ambiental rural e ao sistema de registros em cartórios, combinados com a capacidade instalada do Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis), de órgãos ambientais e florestais de cada estado e de seus respectivos grupos policiais e de bombeiros florestais. Há também um controle cada vez mais eficiente por parte do Ministério Público. Como é de se esperar, embora esteja melhorando, na prática, o sistema ainda tem graves falhas. Entretanto, tudo indica que, se esta nova lei for razoavelmente aplicada, apesar de ser menos severa que a anterior, o desmatamento ilegal deve começar a diminuir no Brasil.
A lei peruana é curta nestes temas e lhes dedica poucos artigos. Embora as propriedades rurais sejam pequenas, elas afetam diretamente o sistema hidrológico. Não obstante, a nova legislação indica apenas a obrigação geral de nelas proteger 30% da vegetação natural e, sem mais, menciona a necessidade de “proteger a mata ciliar”. Menciona um processo confuso para autorizar desmatamentos e mudanças de uso da terra, condicionados a um zoneamento e micro zoneamentos prévios, que, obviamente, não existem e cuja possibilidade de implementação é ilusória.
O esquema de proteção é limitado ao zoneamento, que não é respeitado, e ao estabelecimento da categoria de floresta de proteção -uma categoria de unidade de conservação- que ninguém cuida e que cobre uma pequena porcentagem do que deveria ser protegido. Em outras palavras, a nova legislação peruana é essencialmente declarativa sobre evitar o desmatamento ilegal e, portanto, este deve aumentar.
Outra diferença notável em favor da lei brasileira é a importância dada à questão dos incêndios florestais, assunto quase não mencionado na peruana. Aliás, no Peru não existem bombeiros militares nem bombeiros florestais, como no Brasil, onde estão equipados até com helicópteros. Existem apenas grupos independentes de bombeiros voluntários urbanos. O eventual combate a incêndios na vegetação natural se faz aproveitando apenas da boa vontade dos vizinhos.
Destaques da legislação peruana
Até agora não foi inventada uma lei florestal que funcione nos trópicos úmidos de qualquer continente, com a relativa exceção da Malásia, onde a lei é draconianamente aplicada.
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A lei peruana se concentra principalmente na produção de madeira e a maior parte de suas disposições se refere às concessões florestais e ao manejo florestal em geral. A lei faz isso em busca do ideal de manejo florestal sustentável. Também trata a gestão da fauna porque, curiosamente, no Peru não há lei específica para esse recurso, o que era justificável até um século atrás, mas que hoje é inadequado.
No tema das concessões, existem na lei do Peru, opções inéditas e interessantes. Além de concessões florestais convencionais para fins madeiráveis – até 40.000 hectares – e não madeiráveis – até 10.000 hectares para castanheiros ou seringueiras, entre outros – por períodos renováveis de 40 anos, existem concessões de ecoturismo sobre 10.000 hectares por 40 anos renováveis, e concessões de conservação de extensão ilimitada para 40 anos renováveis.
Já foram concedidas várias concessões destes dois tipos e têm sido uma importante contribuição para o desenvolvimento de negócios verdes e a conservação do patrimônio natural, especialmente porque em geral são cedidas em zonas de amortecimento de Unidades de Conservação. Outra inovação importante é que os detentores das concessões e as comunidades nativas podem obter certificados negociáveis para, por exemplo, garantia de crédito. Isso deveria facilitar o investimento para o manejo florestal.
A lei peruana, fortemente influenciada pelos movimentos indígenas, lhes concede privilégios talvez excessivos, para facilitar o uso de suas próprias florestas que já são extensas e que tendem a aumentar. Permite-lhes, por exemplo, decidir e aplicar seus próprios critérios – saber tradicional – para fazer zoneamento e planos de manejo e até delega a eles a capacidade para fazer confiscos. Hoje em dia, no Peru e no Brasil, a maior parte da madeira ilegal sai das terras indígenas com participação mais ou menos voluntária deles mesmos.
Na legislação brasileira o manejo sustentável da floresta é uma condição para seu uso tanto em propriedades privadas e em florestas nacionais, e nessa parte, não existe muita diferença com a peruana. Mas, lamentavelmente, em ambos os países apesar de décadas de esforço, dependendo dos critérios que sejam aplicados, de 80 a 98% da produção de madeira amazônica é ilegal ou falsamente legal. É ilegal quando sai de qualquer lugar, sem autorização ou com documentos falsos. É falsamente legal quando está amparada por títulos, concessões ou autorizações oficiais, em base a planos de manejo, de boa ou má qualidade, mas que na floresta são total ou parcialmente ignorados. O resultado é o mesmo: a degradação do patrimônio florestal. Os poucos madeireiros honestos não podem competir com o grupo de desonestos e seus negócios quebram ou imitam os segundos. Até agora não foi inventada uma lei florestal que funcione nos trópicos úmidos de qualquer continente, com a relativa exceção da Malásia, onde a lei é draconianamente aplicada.
Outras diferenças
De 1963 até hoje, a legislação florestal peruana foi alterada cinco vezes e, a verdade é que cada vez fica mais complicada e se torna menos realista.
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No Brasil a silvicultura ou o reflorestamento, especialmente de tipo industrial, está relacionado ao setor agropecuário e não ao florestal ou ambiental. Portanto, a lei que se comenta não toca no assunto. No Peru, dado que o subsetor florestal é parte do setor agropecuário, a nova lei aborda esta questão com certa amplitude. O mesmo acontece, como mencionado, com a conservação e o manejo de fauna. Essas duas questões constituem um anacronismo importante na nova lei peruana.
Na verdade, considerando que atualmente, bem mais do que a madeira, o principal benefício das florestas tropicais naturais para a humanidade é o sequestro de carbono na biomassa e no solo, além de outros serviços ambientais, é ilógico mantê-las sob o controle do sector agropecuário que, historicamente, é o primeiro e mais severo competidor do setor florestal no uso da terra. Portanto, como no Brasil, a questão florestal deveria depender do Ministério do Meio Ambiente, onde receberia a atenção preferencial que merece. Em vez disso, a silvicultura e a aquicultura, deveriam ser mantidos no Ministério da Agricultura por ser culturas de espécies domesticadas.
Em ambas as leis fala-se da questão dos créditos de carbono, mas a peruana não explica bem como isso irá beneficiar a floresta ou seus habitantes. Muito importante na legislação brasileira é o fato de que há um tratamento relativamente amplo de incentivos específicos para a conservação das florestas e a restauração das que foram degradadas. É provável que os interessados queiram ainda mais. Mas, em contraste, os incentivos estão praticamente ausentes na nova lei peruana, que simplesmente enuncia possibilidades de se concretizar em uma futura regulamentação.
Ou seja que, apesar de ter sido muito e justamente criticado no Brasil, pois representa um revés com referência à normativa que com mudanças regia desde 1965, o novo Código Florestal do Brasil é sem dúvida mais favorável para a conservação da floresta do que a nova lei peruana. De 1963 até hoje, a legislação florestal peruana foi alterada cinco vezes e, a verdade é que cada vez fica mais complicada e se torna menos realista. Por exemplo, depois de 50 anos foi criado novamente um serviço florestal autônomo, mas, devido à descentralização, o novo não tem nenhuma função executiva importante, ou seja, não precisava ser uma autarquia. Todo o poder de decisão está agora exclusivamente nas autoridades regionais ou locais que não têm a capacidade ou os meios para absorver esta função e para as quais a nova lei não oferece nenhum recurso para assumi-la minimamente bem. Além disso, existem dezenas de instituições nacionais e regionais que têm pequenas parcelas de responsabilidade sobre a floresta e que devem ser consultadas para as mínimas decisões, transformando a gestão em um verdadeiro quebra-cabeça.
Nestas circunstâncias não dá para esperar, pelo menos na Amazônia peruana, que algo melhore para as florestas naturais nos próximos anos. Apenas há a esperança de que a situação não piore muito.
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