Ursula parou e esticou os olhos procurando por Babyl. Ela tinha ficado um pouco para trás outra vez. Era ela atrás daquelas acácias? O brilho do sol baixo atrapalhava a visão. Mas então Ursula viu a pequenina.
Lá vinha Babyl, penosamente, em seus passinhos curtos, se juntar aos outros. Pilar estava com ela, incentivando-a, como sempre. Ursula olhou para elas com carinho. Perto das duas irmãs, Vasily parecia andar meio a esmo, se divertindo, explorando o novo lugar com aquela sua curiosidade infantil.
Um pouco mais tranquila, Ursula prosseguiu, liderando os outros. Concentrada, ela avançava devagar, parando de vez em quando. Babyl não podia ir mais rápido. Ely, com seus joelhos fracos, também não aguentaria. Desde criança os joelhos dele nunca tinham sido bons, imagine agora que já era quase um velho. O calor daquele dia bonito na savana também não tinha ajudado nada. Ursula estava com sede, os outros também deviam estar.
De repente ela sentiu uma inquietação, e por um momento se esqueceu até da sede. Ela tinha estado naquele lugar anos atrás, lembrava ainda do rio, promessa de uma vida melhor para todos eles. Mas agora era preciso chegar à água, rápido, e ela refazia em sua mente o caminho até lá, costurando memórias antigas. Enquanto procurava o caminho, ela tinha uma vaga sensação de perigo, que não conseguia entender bem.
Enquanto Ursula estava imersa em suas meditações, Vladimir passou ao seu lado andando rápido na direção contrária, gritando, fazendo uma barulheira, com aquela exuberância típica da juventude. Ele foi lá para o fim da fila, atrás de Tania e da bela Remedios, que pareciam muito distraídas andando juntas. Ursula prosseguiu, caminhando devagar ao lado de Ely. Procurando o caminho, eles se viraram em direção ao sol já baixo no horizonte, sentindo o vento bater em suas costas. Ely parecia querer lhe dizer algo…
Foi então que vieram os tiros.
Ursula nem soube de onde vieram. O matraquear seco de um fuzil automático quebrou abruptamente o silêncio da savana, ecoou nas árvores em volta, pareceu vir de todos os lados. Ela não sentiu nada, mas a seu lado o impacto devastador da rajada de balas acertou Ely em cheio. Os joelhos das patas dianteiras de Ely se dobraram, e sua tromba tocou o chão. Aqueles joelhos que sempre tinham sido seu ponto fraco, agora rígidos demais num elefante idoso, não tinham lhe dado rapidez suficiente para tentar fugir, naquela fração de segundo entre perceber os caçadores e ouvir os tiros.
Ely tentou penosamente se erguer, gritando de dor e de medo, sem conseguir esticar as patas dianteiras, sem conseguir nada mais do que dar o flanco para os caçadores. Outra rajada o retalhou; por um segundo um brilho branco fez um arco pelo ar, e então tudo se perdeu numa confusão de cinza e vermelho. O imenso elefante tombou para o lado, ainda se debatendo, até que seus movimentos foram parando aos poucos. O maior do grupo, com as maiores presas, Ely tinha sido o primeiro alvo.
Ursula gritava descontrolada, em pânico, sem entender a tragédia que se desenrolava rapidamente à volta dela. Ouvindo os gritos lancinantes da matriarca do grupo, Vladimir veio correndo lá de trás. Ele tinha jogado fora sua única chance. Escondido atrás das fêmeas adultas Remedios e Tania, Vladimir tinha passado despercebido para os caçadores. Mas agora, correndo loucamente na direção dos fuzis automáticos, com seus hormônios adolescentes em fúria, era um alvo perfeito. Os tiros o pegaram em cheio na cabeça, Vladimir parou, titubeou, se desequilibrou e rolou para a frente. Caiu sobre as costas, e as patas ainda ficaram se movendo no ar por alguns instantes em movimentos espasmódicos. Vladimir era só um macho jovem, mas suas presas já eram grandes o suficiente, os contratantes iriam pagar bem por elas.
Vendo sua vida ser destruída em segundos à volta dela, Ursula rodopiava em confusão total, sem saber se enfrentava os caçadores ou se ia lá para trás para proteger suas filhas e os outros. Em sua oscilação desordenada, avançou alguns metros na direção dos caçadores, e foi então que eles atiraram. Não precisavam. Ela não tinha marfim. Mas naquela confusão geral, naquela embriaguez de sangue e de morte, tinha bastado que alguém apertasse um gatilho por dois ou três segundos.
Ferida de morte, vendo o manto vermelho que lhe subia aos olhos, a velha matriarca olhou pela última vez lá para trás, viu suas filhas fugindo como podiam, ou como Babyl podia. Então suspirou e se deixou tombar.
Instantes depois, lá atrás, Babyl parou exausta numa clareira, Pilar sempre a seu lado. Vasily tinha vindo, aterrorizado também, para se encontrar com elas. Os três não entendiam o que tinha acontecido, não entenderiam nunca, mas com o tempo viria a percepção de que tinham se tornado órfãos.
Meses mais tarde, Vasily voltaria ali, e contemplaria longamente os ossos de Ursula. Para ele, a infância tranquila se fora para sempre. Anos depois, Vasily também teria uma morte violenta, abatido por participar de um daqueles grupos de machos solitários, desajustados e violentos que atacavam as plantações à volta.
Uma estória possível
Você achou no início que eu estava falando sobre pessoas? Se achou, teve ótimas razões. A nossa literatura costuma falar sobre nós, humanos – sobre nossos sentimentos, nosso sofrimento, nossas emoções. Como poderia ser de outra forma? Nós somos animais sociais, nos importamos uns com os outros, e é o nosso próprio universo emocional que compartilhamos. Shakespeare, Machado de Assis ou Gabriel Garcia Marquez são verdadeiros tratados sobre a natureza humana. A literatura faz nossas vidas melhores, e tem feito o mundo melhor. Mas minha pergunta é, será que precisamos falar sempre apenas de nós? Hoje, esse nosso foco absoluto em nós mesmos faz cada dia menos sentido, à medida que a ciência vem nos mostrando a riqueza das vidas emocionais de outras espécies que compartilham o planeta conosco.
Veja, por exemplo, os elefantes. A narrativa acima é fictícia, mas poderia ser real – bom, pelo menos eu fiz o melhor que pude. Usei apenas comportamentos já observados em estudos reais com elefantes africanos. Esses animais inteligentíssimos formam grupos sociais nos quais os mesmos indivíduos vivem juntos por anos. Têm aparências e personalidades muito diferentes, facilmente reconhecíveis por um estudioso, assim como uns pelos outros. É uma sociedade matriarcal; os grupos são liderados por fêmeas adultas como Ursula. Solidariedade do grupo com um filhote que tenha nascido com um defeito físico, como Babyl, já foi observada várias vezes. Elefantes órfãos se tornarem desordeiros e revoltados, como Vasily, também é comum. Já o comportamento de contemplar longamente os ossos de outros elefantes – mas não de outros animais – levanta a fascinante possibilidade de que esses animais têm alguma concepção da morte, e vínculos afetivos que sobrevivem a ela.
Os nomes que usei também são de bichos reais. São nomes dados pela pesquisadora Cynthia Moss a alguns elefantes da população de Amboseli, no Quênia, que ela estudou por mais de quarenta anos. Falar nisso, ela deve gostar de Garcia Marquez, porque os nomes de várias das fêmeas são de personagens femininas de “Cem anos de solidão” (como Ursula, Pilar e Remedios). Mais que isso, Babyl e Ely acima são baseados em elefantes reais, com as características físicas e o relacionamento com o grupo que eles tinham nos estudos de Moss.
Universos ao nosso redor
Enquanto você está lendo isso, um grupo de elefantes como o de Ursula vagueia em algum lugar do nosso planeta – hoje sabemos que com suas próprias personalidades, suas próprias emoções, suas próprias histórias, suas próprias vidas. Mas quanta atenção nós prestamos a isso? Enquanto nossa espécie já parece estar esgotando a sua imensa capacidade de olhar apenas para seu próprio umbigo, sequer olhamos para a maravilhosa descoberta que seria a de outros universos emocionais inteiros, inéditos, à nossa volta.
Há alguns anos deparei com uma entrevista de Michael Ballard – um explorador subaquático, famoso pela descoberta dos restos do Titanic, mas que antes disso foi treinador de golfinhos. A certa altura, o repórter pergunta: “Entre os golfinhos que o senhor treinava naquela época, havia um favorito”? E Ballard responde: “Sim, uma fêmea chamada Ho, com quem eu trabalhava oito horas por dia. Era um relacionamento maravilhoso. Nunca fui tão próximo de um ser não-humano quanto dela. É uma ligação que transcende muito aquela que se pode ter com um cachorro, por exemplo. Pelos olhos, pela voz, pelo toque há uma comunicação que deixa muito claro o quanto esses animais são inteligentes e capazes de afeto. Antes de tentar falar com seres extraterrestres, deveríamos aprender a falar com os golfinhos.”
Ampliando o círculo da empatia
Não só os golfinhos, mas também os cachorros, os ursos, os chimpanzés, os bonobos, as baleias e tantos outros animais têm vidas emocionais riquíssimas e interessantes. Alguns, como os próprios golfinhos e as jubartes, têm linguagens complexas e sofisticadas, que passam conteúdos complexos. É uma pena que não somos capazes de entendê-los; ao contrário da desmemoriada Dory (de “Procurando Nemo”), nós não falamos baleês. Mas enquanto a humanidade gasta todo ano bilhões de dólares tentando conversar com extraterrestres que nem sabemos se existem, não nos interessamos por entender a linguagem dos bichos bem ao nosso lado.
A literatura, é verdade, começa a descobrir o imenso potencial de estórias com personagens de outras espécies – por exemplo, “White as the waves”, de Alison Baird, que reconta o clássico Moby Dick, de Herman Melville, sob o ponto de vista da baleia. Mas precisamos de muito mais, porque pode ser a chave para desenvolver nossa empatia pelos outros animais.
Empatia nada mais é que nos colocarmos no lugar dos outros, sentir suas alegrias, suas inquietações ou seu sofrimento. Segundo Steven Pinker, ao longo da história a literatura – especialmente o romance epistolar, isto é, o romance narrado em primeira pessoa – parece ter sido crucial para desenvolver a empatia pelos menos favorecidos em nossa sociedade. Isso mudou o mundo. Agora, a ciência e a literatura nos dão a oportunidade de nos colocarmos no lugar de seres de outras espécies – como um elefante, por que não? Essa é uma experiência maravilhosa, que assim como nos colocar no lugar de Brás Cubas, faz nossas vidas mais interessantes e mais ricas. Além disso, eles precisam de toda a nossa empatia para que os mundos deles meramente continuem a existir. Afinal, não é só a sociedade dos elefantes que é verdadeira – a caça com fuzis automáticos, em expedições bem organizadas pelo comércio de marfim, também o é.
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