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ONGs: vamos separar o joio sem destruir o trigo

As ONGs funcionam e são parte das democracias modernas. Mas a corrupção de umas poucas ONGs de fachada arrisca sujar o nome de todas.

3 de janeiro de 2012 · 13 anos atrás
  • Suzana Padua

    Doutora em educação ambiental, presidente do IPÊ - Instituto de Pesquisas Ecológicas, fellow da Ashoka, líder Avina e Empreen...

Umas poucas exceções sujam a imagem da maioria, as ONGs sérias. Ilustração: Paulo André Vieira
Umas poucas exceções sujam a imagem da maioria, as ONGs sérias. Ilustração: Paulo André Vieira
Não há dúvida de que o trabalho das Organizações Não Governamentais (ONGs) ou Organizações da Sociedade Civil (OSCs) é transformador. O fundador da Ashoka, Bill Drayton, uma das pioneiras no reconhecimento do valor das organizações cidadãs (como ele as chama), há anos estuda o impacto delas e o papel dos empreendedores sociais na sociedade. Acompanha o aumento exponencial do número dessas organizações mundo afora, o trabalho que realizam e afirma que este é o setor que mais cresce. E destaca os seus bons resultados.

Na Índia, por exemplo, existem mais de um milhão de organizações cidadãs, e nos Estados Unidos o número ultrapassa os dois milhões, 70% delas criadas nos últimos 30 anos. A área ambiental se destaca com acréscimo de 61% somente entre 2002 a 2005.

O Brasil não foge a essa tendência. Somam 338 mil entidades no Cadastro Central de Empresas (Cempre), com estruturas, tamanhos e estabilidade financeira diferentes. Um estudo realizado pelo IBGE e IPEA (com contribuições da Abong  e do GIFE) indica que muitas organizações sem fins lucrativos são frágeis e oferecem salários aquém do mercado, quando comparadas ao setor privado ou a cargos públicos. Mesmo assim, o número de filiados e o interesse em criar novas organizações de fins ideais só tem aumentado.

A diferença

 

“O terceiro setor, cuja razão de ser é a transformação socioambiental, combina com quem busca meios de entregar resultados”
Trabalhar por um ideal motiva e atrai mais e mais pessoas que querem mudar o mundo. Mas as transformações rápidas da atualidade exigem profissionais com criatividade e espírito empreendedor, aptos a responder a demandas com frequência sem precedentes. O mercado de trabalho tradicional nem sempre dispõe ou prepara este profissional, e menos ainda o sistema educacional estabelecido. É no terceiro setor que se encontra o cenário mais adequado a desenvolvê-los. Isso porque as organizações de fins ideais foram criadas com o intuito de ousar novos caminhos. Arriscam errar se necessário for para depois ajustar os ponteiros até chegar aos resultados almejados.

Essas organizações têm servido de escola e quebram paradigmas, inclusive da educação tradicional que ainda priorizava o repasse de conhecimentos com ênfase na teoria. Mudar a forma de informar, motivar e inspirar autoconfiança para romper com velhos modelos não é fácil, mas se tornou decisivo.

Ironicamente, crianças, fomos educados a respeitar os mais velhos e a ousar pouco. Agora temos que sair da “caixinha” para darmos conta de cuidar de causas que não existiam ou passavam despercebidas, e cujos efeitos eram menos devastadores do que agora. A intensidade das crises ambientais, sociais e econômicas, multiplicada pelo acesso à informação, nos pressiona a encontrar líderes audaciosos e rumos para solucioná-las.

O terceiro setor, cuja razão de ser é a transformação socioambiental, combina com quem busca meios de entregar resultados. O empreendedor social ousa porque não se conforma com o que considera errado, injusto ou desalinhado com princípios éticos. Isso o leva a mobilizar, a fazer acontecer.

Empreendedores Sociais

 

As organizações de fins ideais despontaram quando as necessidades essenciais da sociedade não mais estavam sendo supridas pelo Estado.
O valor dos empreendedores, é claro, não se limita ao terceiro setor, pois hoje o mundo corporativo busca profissionais com este perfil. Drayton (Ashoka), que veio do mundo corporativo, considera os empreendedores essenciais para a evolução humana, por conta da capacidade que têm de responderem com criatividade aos desafios que emergem. Afirma que eles conseguem mudar padrões emperrados que causam males à coletividade a partir de visões que trazem soluções efetivas. Incansáveis, não desistem facilmente até verem solucionadas as questões que elegem como temas de seus enfoques. Drayton chega a afirmar que os empreendedores são os maiores responsáveis por mudar o mundo para melhor.

As organizações de fins ideais despontaram quando as necessidades essenciais da sociedade não mais estavam sendo supridas pelo Estado. E as demandas têm aumentado com a concentração de renda e de poder, e com os desequilíbrios ambientais. Além disso, onde há corrupção, e o Brasil não foge à regra, essa situação é mais grave. Recursos destinados a suprir as necessidades sociais acabam desviados, aumentando ainda mais as áreas desatendidas da sociedade.

O Brasil é o país com o maior número de fellows (como são chamados os empreendedores) da Ashoka, conhecida por seu rigoroso processo seletivo. São mais de 340 fellows trabalhando em todas as regiões do país em áreas como educação, direitos humanos, meio ambiente, saúde e desenvolvimento econômico. Ter tantos empreendedores Ashoka é um indicador da qualidade do que é produzido no país.

E não é só a Ashoka que reconhece o valor das ONGs. Instituições como AVINA, Artemísia e até a família Schwab (organizadores do Fórum Econômico Mundial), junto com a Folha de São Paulo oferecem anualmente o Prêmio Empreendedor Social, o que mostra que o impacto do trabalho realizado é inquestionável.

Naturalmente, não é só no Brasil que o trabalho de empreendedores socioambientais é reconhecido como idôneo. Celso Grecco (também fellow Ashoka), que criou a Bovespa Social, iniciativa inovadora por integrar o mundo corporativo ao das Organizações Não-Governamentais (ONGs), trabalhou para o Charity Bank da Inglaterra de 2007 a 2010. Contribuiu com a formulação do reposicionamento estratégico e branding da empresa: “um banco diferente para pessoas que querem um mundo diferente”. O Banco implantou mecanismos de vanguardas e acabou sendo a primeira organização social do mundo autorizada a se tornar um banco – regulado pelo sistema formal do Reino Unido (Financial Service Authority). O modelo é único até hoje porque sua função básica é emprestar recursos para organizações sem fins lucrativos.

O Charity Bank já emprestou 150 milhões de libras esterlinas para aproximadamente 900 Organizações da Sociedade Civil. O banco estima que os resultados gerados pelas organizações receptoras dos empréstimos equivalham a 600 milhões de libras, ou seja, quatro vezes o valor emprestado. A taxa histórica de inadimplência é de apenas 0,3%, o que atesta o alto padrão de seriedade do terceiro setor.

Ameaças

“Cabe ao governo não deixar que o joio contamine o trigo e prejudique as ONGs sérias.”

Hoje, há um movimento contrário às Organizações da Sociedade Civil (OSCs) que pode ser desastroso. Mesmo com o volume de dados positivos sobre a maioria das OSCs, uma decisão governamental suspendeu o repasse de verbas públicas a elas em outubro de 2011.

Preocupados com os efeitos e a injustiça do processo, o grupo formador da Plataforma por um Novo Marco Regulatório para as Organizações da Sociedade Civil enviou uma carta aberta à Presidente Dilma (28/10/2011), na qual são apontadas as incongruências das medidas tomadas:

 

Segundo o Portal da Transparência de 2010, das 232,5 bilhões de transferências voluntárias do governo federal, apenas 5,4 bilhões destinaram-se a entidades sem fins lucrativos de todos os tipos, incluídos partidos políticos, fundações de universidades e o Instituto Butantã, por exemplo. Foram 100 mil entidades beneficiadas, 96% delas por transferências de menos de 100 mil reais. Se juntarmos todas as denúncias contra ONGs publicadas na imprensa nos últimos 24 meses, as entidades citadas não passariam de 30, o que nos leva crer que além de desnecessária, a suspensão generalizada de repasses poderia constituir medida arbitrária e de legalidade questionável, que criminaliza a sociedade civil organizada.

 

O decreto publicado pelo governo é “injusto” e “prejudica mais do que corrige”, diz Silvia Picchioni da Fundação Grupo Esquel Brasil e secretária-executiva do Fórum Brasileiro de ONGs e Movimentos Sociais para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento (FBOMS). Para ela, as irregularidades estão relacionadas às organizações “montadas por políticos e partidos, que deveriam ser o alvo (das ações do governo) e não são”.

Na área de meio ambiente a situação não é diferente. A Corregedoria Geral da União está pressionando os órgãos públicos financiadores, que, por sua vez, convocam as organizações que já receberam repasse para projetos, exigindo detalhes que antes não eram considerados pertinentes.

Projetos já avaliados estão sendo re-questionados, e não pela qualidade do que realizaram, mas por pormenores relativos à prestação de contas. A transparência financeira é fundamental, mas projetos bem executados, que haviam passado por auditorias e sido aprovados, agora têm sua contabilidade sob suspeição. O final não se sabe, mas o risco de se ter que devolver recursos bem utilizados e de efeitos inquestionáveis, quando foram julgados, pode ameaçar organizações sérias.

Luz no fim do túnel

Ainda resta uma luz no fim do túnel – foi criada a Plataforma por um Novo Marco Regulatório para as Organizações da Sociedade Civil, e a Secretaria Geral da Presidência reuniu pessoas de governo e da sociedade civil para discutir os impasses. A Plataforma parte do princípio de destacar “o papel das organizações da sociedade civil como patrimônio social brasileiro e pilar de nossa democracia”. O Secretário Geral da Presidência da República, Gilberto Carvalho, afirmou: “A participação da sociedade civil é uma conquista e não uma concessão, o Estado precisa fomentar a cidadania e isso é feito pelas organizações da sociedade civil”.

Iniciaram-se encontros para formular num marco regulatório com critérios claros para o terceiro setor. Adriana Ramos, do Instituto Socioambiental (ISA), participante dessas reuniões, afirmou: “É uma pena que essa discussão super importante para a sociedade civil só aconteça agora, diante de tantas denúncias sobre organizações de fachada que não defendem o interesse público. Antes tarde do que nunca, já que é preciso ajustar os mecanismos da relação entre o governo e as organizações do terceiro setor. Os convênios, por exemplo, geram confusão porque esse foi um instrumento criado para regular a transferência de recursos entre governo federal, estados e municípios. Ou seja, para uma relação totalmente diferente”.

Nos resta esperar que a qualidade dos trabalhos falem por si. Há muito mais trigo do que joio.

Cabe ao governo em vigor, quem sabe junto com a Plataforma para um Novo Marco Regulatório, acertar o passo para não deixar que o joio contamine o trigo e prejudique as ONGs sérias. Caso contrário, a sociedade brasileira e o mundo serão os perdedores.

Uma versão resumida deste artigo encontra-se no Blog dos Empreendedores Socioambientais da Folha de São Paulo

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