Análises

Os verdadeiros guardiões das florestas

Não há como se falar seriamente na gestão e proteção de parques e outras áreas protegidas sem contar com guarda-parques profissionais

André Ilha ·
8 de janeiro de 2015 · 9 anos atrás
Guarda-parques combatendo incêndio florestal. Foto: Arquivo INEA.

O documento “Pilares para o Plano de Sustentabilidade Financeira do Sistema Nacional de Unidades de Conservação”, publicado pelo Ministério do Meio Ambiente em 2007, cita estudos no exterior que demonstram que para a conservação de áreas protegidas, a densidade de pessoal de campo é um fator mais efetivo do que qualquer outro tomado individualmente.

Não há qualquer surpresa nesta constatação. Ela apenas corrobora o que usuários, técnicos e pesquisadores já sabiam há muito tempo: para que um parque ou outra unidade de conservação (UC) qualquer possa ser promovido da abstração bem intencionada do ato legal que o instituiu para a sua materialização no mundo real, é necessária a presença no campo de servidores bem treinados, equipados, uniformizados e, sobretudo, identificados com os seus objetivos. Servidores que interajam rotineiramente com visitantes, pesquisadores e moradores e que monitorem e zelem pelo seu patrimônio natural, físico e cultural. Portanto, que sirvam de ligação entre a UC e o seu entorno físico e simbólico, fazendo com que ela não seja vista como um corpo estranho no tecido social onde está inserida. Esse profissional, por excelência, é o guarda-parque, uma carreira bem definida e consolidada em muitos países, mas que ainda engatinha no Brasil.

Guarda-parques no Brasil

Alguns estados brasileiros criaram temporária ou permanentemente um corpo próprio de guarda-parques, mas a maioria apresentou equívocos conceituais importantes em sua concepção.

“(…) a terceirização de atividades no serviço público é essencialmente precária, e a norma nestes casos foi a descontinuidade dos serviços, causando uma enorme frustração”

Em alguns casos, foram chamados de guarda-parques servidores terceirizados que, de fato, desempenhavam muitas das atribuições destes profissionais. Ocorre que a terceirização de atividades no serviço público é essencialmente precária, e a norma nestes casos foi a descontinuidade dos serviços, causando uma enorme frustração nos demitidos e também nos dirigentes dos órgãos ambientais, que contavam com essa força de trabalho para cuidar das áreas protegidas sob sua tutela. Além disso, por não serem concursados, tais profissionais não dispunham de competência legal para lavrar autos e termos diversos, tornando capenga a sua atuação.

Chamar voluntários de guarda-parques, como também já se viu, é ainda pior, pois sem haver sequer um vínculo empregatício formal com a instituição gestora da UC, é no mínimo temerário atribuir-lhes tal responsabilidade em nome do Estado. Voluntários podem contribuir muito com a gestão de parques e áreas afins, mas é importante deixar claro o seu papel até devido a possíveis repercussões legais que uma equivocada interpretação nesse sentido poderia gerar.

Uma importante unidade da federação denominou de guarda-parques todos os servidores a seu serviço, do bilheteiro ao chefe da unidade. Isso desvirtua o papel de cada um, agravado pelo fato de incluir servidores concursados e empregados terceirizados no mesmo pacote. Não se pode, por exemplo, chamar a todos os que trabalham em um hospital – diretores, médicos, enfermeiros, maqueiros, motoristas etc. – de uma coisa só, como “guardiões da saúde”, por exemplo. Uma vez mais, há zonas de sobreposição de atividades entre alguns destes cargos, mas isto não justifica a dissolução arbitrária dos limites entre as diversas categorias funcionais. Todas essas disfunções só servem para confundir, e conspiram contra o objetivo de vermos implantada, enfim, no Brasil, a autêntica filosofia que rege os corpos de guarda-parques mais consagrados em todo o mundo.

No plano federal a situação é ainda pior, pois apesar de o Instituto Chico Mendes para a Conservação da Biodiversidade (ICMBio) ser o órgão responsável pela gestão de mais de 400 unidades de conservação espalhadas por todo o território nacional, cuja importância ambiental conjunta tem uma dimensão planetária, inacreditavelmente não conta, até hoje, com um corpo próprio de guarda-parques.

O papel dos guarda-parques

Manejo de trilha no Parque Estadual Cunhambebe. Foto: Arquivo INEA.

Mas, afinal, o que são, ou, por outra, o que devem ser os guarda-parques?

Guarda-parques são servidores de estado, concursados, aptos a desempenhar uma série de atividades voltadas à proteção e gestão de parques e, por extensão, de outras unidades de conservação ambiental. Estas atividades podem variar de caso a caso, mas giram em torno dos seguintes eixos temáticos: 1) fiscalização; 2) prevenção e combate a incêndios florestais; 3) ordenamento do uso público; 4) interpretação e educação ambiental; 5) busca e salvamento; 6) manutenção de trilhas e instalações; 7) apoio à pesquisa científica; e 8) administração. Tratemos brevemente de cada tema:

Fiscalização – É a atividade que dá nome à carreira. Trata-se de zelar pela integridade do patrimônio natural e cultural das UC e adotar as medidas necessárias caso seja observada alguma infração administrativa. A competência constitucional para a repressão de crimes é da polícia, e para melhor atender a outras importantes atribuições como ordenamento do uso público e educação ambiental, os guarda-parques, idealmente, deveriam atuar desarmados. Contudo, em certas situações elas podem ser necessárias para garantir a sua integridade física do agente, como instrumento de defesa pessoal, especialmente quando não for viável o suporte imediato de força policial.

Prevenção e combate a incêndios florestais – Os incêndios florestais são a principal e mais drástica causa de destruição dos ecossistemas nativos brasileiros. Preveni-los e combatê-los prontamente é uma das mais fundamentais atribuições dos guarda-parques. Embora a competência primária para o combate a incêndios seja dos corpos de bombeiros, os órgãos gestores de unidades de conservação podem desempenhar esta tarefa nos seus limites e no entorno imediato. Primeiro, minimizando ocorrências com um trabalho preventivo e, na época crítica, mantendo vigilância constante e dando uma pronta resposta caso um foco seja identificado, impedindo que se alastre descontroladamente.

Ordenamento do uso público – Parques são Unidades de Conservação que visam tanto à preservação das espécies e dos ecossistemas nativos quanto à recreação, a educação ambiental e o turismo, especialmente o chamado turismo ecológico. Para atender a esta segunda função, quem tem a missão precípua de aplicar as políticas de uso público traçadas para cada atrativo e para cada segmento de usuários é o guarda-parque. Isto se torna ainda mais relevante quando nos lembramos de que é vital para o próprio futuro das áreas protegidas que parcelas crescentes da população as conheçam, entendam a sua importância e se engajem permanentemente na sua defesa e manutenção. Nesse sentido, os guarda-parques podem ser considerados como autênticos relações-públicas das áreas protegidas.

Interpretação e educação ambiental – Embora confundam-se em parte com o item anterior, estas atividades merecem destaque devido às oportunidades únicas que as unidades de conservação oferecem para proporcionar à população uma maior compreensão do funcionamento dos processos físicos e biológicos naturais e a estabelecer a sua conexão com o nosso próprio bem-estar.

Busca e salvamento – Outra atribuição de competência primária dos corpos de bombeiros, mas é de todo desejável que os guarda-parques estejam preparados e equipados para exercê-la num primeiro momento. Isso é especialmente válido para a busca de perdidos e a estabilização de feridos. O salvamento em si dependerá da sua complexidade, podendo ser necessária a ajuda dos bombeiros.

Manutenção de trilhas e instalações – O cuidado rotineiro com as instalações físicas de um parque, bem como de trilhas e outras estruturas de suporte ao uso público, também são tarefas universalmente desempenhadas pelos guarda-parques. Contudo, as atividades de conservação e limpeza de edificações e de manutenção predial devem estar a cargo de profissionais próprios, e intervenções físicas de maior magnitude requerem a contratação de serviços específicos.

Apoio à pesquisa científica – Uma das finalidades de qualquer UC é permitir o aumento do conhecimento científico sobre os aspectos bióticos e abióticos que ela encerra. Na medida do possível, sua equipe deve oferecer suporte logístico aos pesquisadores e, embora não o único, o guarda-parque é o principal candidato a desempenhar este papel.

Administração – As tarefas administrativas indispensáveis ao adequado funcionamento de um parque não podem ser negligenciadas, e os guarda-parques podem dar a sua contribuição eventual ou permanente, dependendo das circunstâncias. Entretanto, como não é possível que outros servidores desempenhem algumas das funções inerentes aos guarda-parques, por exigirem formação apropriada, então o recurso à sua utilização em atividades administrativas deve ser o menor possível.

A experiência do Rio de Janeiro

Operação de resgate e apoio às vítimas dos temporais de 2011, na Região Serrana do RJ. Foto: Arquivo INEA.

Após a criação, em janeiro de 2009, do Instituto Estadual do Ambiente (INEA), a gestão ambiental do estado deu um salto extraordinário em todas as suas agendas. Na Agenda Verde, os destaques se deram em campos como ampliação da área protegida, regularização fundiária, mecanismos financeiros para financiamento da gestão das UC, planos de manejo e outros. Mas uma das medidas que teve impactos mais positivos foi precisamente a criação do Serviço de Guarda-Parques.

Uma primeira tentativa em parceria com o Corpo de Bombeiros fracassou, mas mesmo assim conseguiu-se que 60 bombeiros militares fossem cedidos ao INEA para exercer a função em caráter pioneiro no estado. O comprometimento desse grupo e a excelência do serviço prestado provou o acerto da iniciativa, e em 2010 foi realizado um processo de seleção pública para a contratação, por prazo determinado, de 220 guarda-parques civis para o órgão. As atribuições profissionais previstas no novo decreto estão em perfeita consonância com os princípios acima mencionados, e o sucesso em criar, talvez pela primeira vez no Brasil, um grande e doutrinariamente consistente corpo de guarda-parques, justifica que analisemos rapidamente algumas de suas características.

Foi estipulado o segundo grau completo como requisito mínimo de escolaridade, pois o nível elementar dificultaria, ou mesmo impossibilitaria, o desempenho de algumas atividades pelos concursados. Já o superior teria um custo proibitivo – sem falar nos desafios de se ordenar a bacharéis que limpassem aceiros ou consertassem cercas. Além de os aprovados terem demonstrado um excelente aproveitamento no curso de formação, havia diversos deles com nível de escolaridade superior, que abdicaram de empregos com remuneração maior em troca da chance de trabalharem diretamente com as áreas naturais protegidas. A paixão pelo trabalho e o comprometimento demonstrado no dia a dia foram fundamentais para que o Serviço de Guarda-Parques do INEA conquistasse o respeito e a admiração de todos aqueles que de alguma forma lidam com as Unidades de Conservação estaduais fluminenses.

“(…) a ideia era provar para o Rio de Janeiro e para o restante do país que não há comparação possível entre a gestão de uma UC com e sem guarda-parques”.

Um aspecto da maior importância é que as vagas foram abertas por unidade de conservação. Assim, obteve-se um elevado nível de absorção de mão de obra local, o que resultou em dois benefícios evidentes: menor pressão para transferências para unidades na capital ou próximas a ela e, sobretudo, uma maior inserção das UC com as comunidades do entorno ou nos arredores. Isso favorece a elaboração e aplicação de políticas de relacionamento realistas com estes habitantes, parte legitimamente interessada no processo de criação e implantação de uma Unidade de Conservação vizinha.

A inexistência de um curso prévio de formação para guarda-parques fez com que o INEA se responsabilizasse por todo o processo de formação dos concursados, o que não foi o ideal. Mas há agora um projeto de lei federal em tramitação regulamentando a profissão no Brasil, que exige que os candidatos a um concurso já tenham concluído um curso de formação com duração mínima de 200 horas, reconhecido pelo MEC. Depois cada órgão contratante pode aprofundar o treinamento ou proporcionar cursos voltados para uma habilidade específica qualquer.

Não foram medidos esforços no equipamento deste contingente de 220 guarda-parques civis, que se somaram aos 60 homens cedidos pelo Corpo de Bombeiros. Uniformes, equipamentos de proteção individual, de combate a incêndios, de camping, tudo foi pensado e adquirido com a melhor qualidade possível. Mais do que meramente receber um novo grupo de servidores no órgão, a ideia era provar para o Rio de Janeiro e para o restante do país que não há comparação possível entre a gestão de uma UC com e sem guarda-parques, e o resultado não poderia ter sido mais satisfatório. Os guarda-parques do Rio de Janeiro não só promoveram uma revolução em termos de eficiência de gestão das unidades de conservação como também se destacaram como força suplementar aos bombeiros nas grandes calamidades que afligiram o estado desde então. Pequenas missões de interesse comunitário, como a desobstrução de estradas secundárias interrompidas por deslizamentos de terra ou queda de árvores, e o resgate de animais silvestres em residências para devolvê-los ao seu habitat natural, ajudaram a consolidar uma imagem positiva dos guarda-parques – um ativo imaterial de valor inestimável.

Por todo o exposto, podemos dizer que a criação de um bem treinado e equipado, e doutrinariamente consistente Serviço de Guarda-Parques no INEA foi um sucesso, e é impensável que as unidades de conservação estaduais do Rio de Janeiro venham a ficar sem estes profissionais no futuro. Há inclusive um projeto de lei estadual em tramitação criando 400 vagas definitivas na estrutura do órgão, que se aprovado abrirá postos para um efetivo compatível com a extensão e a complexidade das áreas protegidas estaduais fluminenses.

Esfera Federal

Veículos e equipamentos em quantidade e qualidade equipam o Serviço de Guarda-Parques do INEA. Foto: André Ilha.

Não há como se falar seriamente na gestão de parques sem contar com estes profissionais na ponta. É necessário que no Brasil, definitivamente, se implante uma cultura sólida de cuidado com as suas áreas protegidas através da contratação, formação e, finalmente, atuação de guarda-parques. Se estamos relativamente bem no percentual de áreas protegidas em relação ao território total do país, estamos péssimos na manutenção destas áreas, e não é mais possível adiar o enfrentamento deste problema.

Diversos estados mostraram, de forma mais ou menos estruturada, desejo de cumprir com a sua parte, e os eventuais problemas observados decorrem até da novidade do conceito e podem ser ajustados.

Mais preocupante, contudo, é a situação na esfera federal. É imprescindível que o ICMBio tenha condições de colocar em campo, o mais rápido possível, guarda-parques em número suficiente para zelar pelas centenas unidades de conservação federais de norte a sul do país, refúgio de uma diversidade biológica estonteante e duramente ameaçada. E que, quando o fizer, não cometa o equívoco de lançar este contingente contra potenciais aliados, como visitantes e moradores, salvo nos casos de flagrante transgressão das normas ambientais. Guarda-parques foram projetados para conquistar aliados, e não colecionar inimigos. A falha em entender este fato pode resultar catastrófica numa época em que o conservadorismo e a mentalidade patrimonialista aumentaram ainda mais a sua representação no Congresso Nacional.

O autor, em 2010, com o primeiro grupo de guarda-parques do Parque Estadual dos Três Picos. Foto: Arquivo INEA.

 

*Artigo editado em 10.01.2015 às 12h28

Leia também
Guarda-parque: uma vocação exercida ao redor do mundo
Reflexões sobre as concessões em parques
O Direito ao Risco

 

 

 

  • André Ilha

    Membro fundador do Grupo Ação Ecológica (GAE), ex-diretor de Biodiversidade e Áreas Protegidas do Inea.

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