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Questão cultural

Uma Ação Direta de Inconstitucionalidade quer impedir o sacrifício de animais em cultos religiosos no Rio Grande do Sul, logo na terra dos maiores consumidores de churrasco do país.

11 de março de 2005 · 20 anos atrás

Tramita perante o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul uma ação direta de inconstitucionalidade que, com certeza, dará muito o que falar. A ADIn nº 70010129690, proposta pelo Procurador-Geral de Justiça do Rio Grande do Sul, pretende excluir o parágrafo único do art. 2º do Código Estadual de Proteção aos Animais. Incluído pela Lei Estadual nº 12.131/04, o polêmico parágrafo permite que animais sejam sacrificados em cultos e liturgias de religiões de matriz africana.

O andamento do processo foi interrompido no dia 8 de março, porque um dos desembargadores que participam do julgamento pediu vista dos autos. Ou seja, quer ter mais tempo para analisar a questão, antes de se manifestar. O Desembargador Araken de Assis, que funciona como relator na causa, já se declarou pela improcedência da ação, afirmando que não vê diferença entre o sacrifício de animais em cultos religiosos e os abates realizados em matadouros, ressalvando casos de excepcional crueldade que, segundo ele, deverão ser apreciados individualmente. Ainda segundo o relator, a prática não seria contrária a nenhuma norma de ordem pública. Outros dezessete desembargadores acompanham integralmente o voto de Araken de Assis. Até agora, apenas quatro magistrados posicionaram-se pela inconstitucionalidade do dispositivo.

Os argumentos apresentados por quem defende a manutenção do parágrafo são no sentido de que a liberdade de culto é assegurada pela Constituição Federal e pelo fato de o Brasil sacrificar, diariamente, um sem número de animais para o consumo humano. O próprio relator, tentando fundamentar seu ponto de vista, citou um caso semelhante da Suprema Corte dos EUA, em que prevaleceu o direito à liberdade de culto, e lembrou que até mesmo o cão, que consideramos um animal doméstico, é visto como uma iguaria por algumas culturas.

Há quem diga, por outro lado, como é o caso dos desembargadores Alfredo Foerster, Alfredo Guilherme Englert, Vladimir Giacomuzzi e Paulo Moacir Aguiar Vieira, que votaram pela procedência da ADIn, que a vida deve prevalecer sempre e que o parágrafo em questão serviria de salvo-conduto para a prática de crueldades. A briga vai ser boa e tem toda a cara de que vai chegar a Brasília.

A questão não é nada simples e o debate se dá em nível constitucional. Se por um lado o art. 5º, VI, da Constituição Federal assegura como direito fundamental a liberdade de culto, o art. 225, VII, dispõe que nenhum animal será submetido a tratamento cruel. A Lei nº 9.605/88, de Crimes Ambientais, prevê até três anos de prisão para quem comete crueldade contra animais, além do pagamento de multa. Do ponto de vista do animal, eu, particularmente, duvido que faça alguma diferença o propósito para o qual ele está sendo sacrificado. A galinha não está nem aí para saber se vai para a panela ou para a encruzilhada.

É, portanto, um embate entre dois pontos fundamentais de nossa cultura. De um lado, a vontade, extremamente saudável, que temos de manifestar, livremente, nossas crenças. Do outro, o hábito que adquirimos, ao longo de milhares de anos, de comer carne. No meio disso tudo, aves, bovinos, caprinos, suínos e peixes, com a corda – ou a faca – no pescoço.

Particularmente, eu não conseguiria me filiar a uma religião que exige, em suas demonstrações de fé, a matança de qualquer ser vivo, simplesmente por entender que todos – não apenas os seres humanos – temos o direito à vida. Mas, do alto da minha hipocrisia, junto com a maior parte da população mundial, adoro comer carne. Não preciso dela, mas adoro. E é justamente aí que está o ponto nevrálgico da questão.

A questão, para mim, é a seguinte: qual é a diferença entre matarmos um animal em um ato de fé e em um ato de vontade, de gula? Pondo as cartas na mesa, fica fácil constatar que ninguém mais, salvo raríssimas exceções, precisa realmente comer carne para sobreviver. Comemos porque queremos e queremos porque gostamos. Há séculos, fazemos de conta que o bife dá em árvores. Hoje se sabe muito bem que todas as proteínas de que precisamos podem ser adquiridas de fontes vegetais, ou de laticínios.

É verdade que bife de soja ainda tem um certo gosto de papel engordurado. Mas nem por isso os matadouros não servem para suplantar um estado de necessidade coletivo. Sua função é, exclusivamente, atender a nosso paladar carnívoro. Não há nada mais mórbido do que um frigorífico, com dúzias de animais esfolados e estripados pendurados em ganchos de metal.

Há diferença profunda nas mortes promovidas pelos seguidores de tais religiões de origem africana e as que se fazem para abastecer as churrascarias-rodízio? Acho que não. Todas significam o fim sangrento de uma vida. Do meu ponto de vista, ou se proíbe todo tipo de sacrifício animal ou se libera tudo. Não há razão plausível para que se faça distinção. A não ser o método.

O que podemos, e devemos, é evitar uma vida e uma morte excessivamente dolorosas para esses animais. A fiscalização, nesse sentido, é que deve ser eficiente. Os abatedouros deveriam ser fiscalizados todos os dias do ano e os religiosos que me perdoem, mas eles também.

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