Enquanto Chávez e Morales se revezam em surtos de xenófobo autoritarismo contra a Petrobras, roubando-lhe bilhões de reais, e Lula continua apatetado, como quem, para variar, não está entendendo nada do que ocorre à sua volta, a única manifestação digna de atenção por um representante da América Latina na 4ª Cúpula de Chefes de Estado e Governo da América Latina, Caribe e União Européia, até agora, veio de uma argentina de fio dental.
Nem tanto pelos dotes físicos da moça – que Chávez notou, aplaudiu e usou para desmoralizar o encontro –, mas pelo motivo do protesto que, graças à sua porta-voz (com todos os méritos a rainha do carnaval de Gualeguaychú, um dos maiores da Argentina), quase passou desapercebido. Vale a pena, contudo, tentar dar atenção ao cartaz da moça, e averiguar o que significa “basta de papeleras contaminantes”.
“La pendenga”
Gualeguaychú é uma cidade turística na província argentina de Entre Rios, localizada no nordeste do país e separada do Uruguai pelo rio de mesmo nome (Uruguay, não Gualeguaychú, “por supuesto”). Sua principal atração e fonte de renda, além de um carnaval muito bem comemorado, é a natureza, em especial os rios e as suas praias e águas termais.
Recentemente, no entanto, todo esse potencial turístico passou a ser ameaçado por duas fábricas de celulose, uma finlandesa e outra espanhola, que estão sendo construídas bem do outro lado do rio, em território uruguaio, na cidade de Fray Bentos. A obra é hoje o maior investimento feito no Uruguai, girando em torno de US$ 1,8 bilhão. Por isso mesmo, os uruguaios não querem largar o osso de jeito nenhum, mesmo que isso signifique atropelar – ou simplesmente fazer vistas grossas – às irregularidades do empreendimento.
Como não poderia deixar de ser, o caso virou uma briga internacional, que vem tomando corpo e já chegou ao Tribunal Internacional de Haia, onde a Argentina processa o Uruguai e o Uruguai promete processar a Argentina.
Segundo os argentinos, apesar de eles serem diretamente atingidos pelos impactos causados pelas plantas, eles não foram consultados sobre as obras, o que violaria o Pacto del Rio Uruguay, de 1975. Além disso, dizem os argentinos, não foi apresentada qualquer justificativa para a construção das fábricas justamente ali, às margens de um rio relativamente pequeno em volume de água, com pouca capacidade de absorção e diluição dos poluentes (muito menor do que a do vizinho Rio Paraná).
Mais grave ainda é a acusação de que as obras estão sendo realizadas sem que se tenha feito os devidos estudos de impacto ambiental. Segundo o presidente argentino, Néstor Kirchner, as empresas (a finlandesa Botnia e a espanhola ENCE) não apenas se recusam a atender aos pedidos dos argentinos pelos estudos como também a dar qualquer justificativa para não fazê-lo. O presidente argentino se envolveu recentemente na questão, mas parece disposto a comprar a briga. Ele liderou pessoalmente, no último dia 5 de maio, uma multidão com cerca de 40 mil pessoas em Gualeguaychú, em protesto contra as fábricas.
Com a construção das usinas, os argentinos ficariam “indefesos ambientalmente”, declarou à France Presse o Ministro do Interior argentino, Aníbal Fernández. “Essas fábricas vão retirar 87 milhões de litros de água em um rio compartilhado – a água é dos dois países – e devolvê-los, poluídos, mais abaixo”, disse o governador da Província de Entre Rios, Jorge Busti.
Exportando sujeira
Desde 1995, por causa das normas européias anti-poluição, as fábricas de celulose da Finlândia tiveram que deixar de utilizar o cloro, altamente poluente, nos seus processos produtivos. A fábrica que a Botnia – empresa responsável pela planta finlandesa – quer construir às margens do Rio Uruguay, no entanto, ainda utiliza o produto, repita-se, banido da Finlândia há mais de uma década. É um caso evidente de dois pesos e duas medidas. Se a empresa dispõe de uma tecnologia mais limpa, por que usar a mais suja? No projeto do Rio Uruguay, ao lado da fábrica finlandesa será construída, ainda, uma subsidiária, da qual o governo finlandês deterá 31% das ações, só para produzir o dióxido de cloro para ser utilizado na fábrica de celulose.
As queixas argentinas procedem, e são o retrato de um tipo de processo ambiental que tende a se popularizar: os Estados estão começando a se negar a sofrer os efeitos do desleixo ambiental de seus vizinhos. É a internacionalização dos problemas ambientais que, como fica cada vez mais óbvio, raramente têm seus efeitos limitados localmente. Nesse caso, a Argentina sofreria muito, tanto em termos ambientais quanto econômicos, por conta de um investimento que beneficiaria, única e exclusivamente, a economia uruguaia.
Em termos ainda mais amplos, é inaceitável – apesar de ser parte inegável da realidade mundial – que os países menos desenvolvidos continuem a ser tratados pelos países de primeiro mundo como suas lixeiras.
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