Para quem vê de fora, o Brasil de hoje parece ser o melhor lugar do mundo para se pertencer a uma minoria histórica: nos últimos anos, qualquer pessoa que se identifique como índio ou quilombola pode reclamar para si qualquer pedaço de terra do país — não importa se tenha dono legítimo, com título de propriedade e tudo mais — sob o pretexto da “ocupação tradicional”, criado sem querer pela vagueza da Constituição Federal; grupos indígenas receberam, de mão beijada, nada menos do que dois parques nacionais inteiros para “administrar”, atropelando norma constitucional e sem precisar fazer qualquer prova de que estariam aptos a tal “encargo”; e agora, o processo de licenciamento da Usina Hidrelétrica de Belo Monte, considerada de interesse público geral e essencial para o planejamento energético do país, está parado por causa de uma guerra de liminares que tem como único objetivo ouvir as comunidades indígenas afetadas.
Essa batalha começou quando o Ministério Público Federal ajuizou uma ação civil pública para invalidar o Decreto Legislativo nº 788/05, através do qual o Congresso Nacional concedeu a autorização para a utilização do potencial hidrológico de terras indígenas. A justificativa do MPF é que o art. 231, § 3º da Constituição Federal que a exploração de recursos hídricos em terras indígenas somente se dará “com autorização do Congresso Nacional, ouvidas as comunidades afetadas”, sem esclarecer quem deve realizar e nem o momento exato da oitiva. No entender do MPF, essa oitiva teria que ser anterior à edição do decreto que autoriza a exploração (o Decreto 788/05, é importante que se diga, condiciona a exploração à oitiva das comunidades indígenas afetadas).
A discussão toda, portanto, é para saber se a tal autorização do Congresso pode, ou não, ser dada antes da manifestação dessas comunidades e quem estaria autorizado a ouvir tais comunidades (o decreto afirma que quem deve promover as audiências públicas é o Ibama, mas o MPF acha que quem deve fazê-lo é o próprio Congresso, que teria legitimidade indelegável conferida pela CF/88). Nesse meio tempo, o Juiz Substituto de Altamira/PA concedeu uma liminar ao MPF para sustar todo o processo de licenciamento da usina; o Juiz Titular de Altamira revogou essa liminar; o MPF recorreu dessa decisão e conseguiu, no Tribunal Regional Federal da 1ª Região, uma nova decisão mandando parar o licenciamento; e, por último — até agora —, a União Federal entrou com um pedido de suspensão de liminar do Supremo, onde conseguiu da Ministra Ellen Gracie uma decisão mandando o Ibama prosseguir com o processo de licenciamento, em especial com a oitiva das comunidades indígenas.
Segundo a Presidente do STF, o acórdão do agravo de instrumento (interposto pelo MPF) é ofensivo à ordem administrativa e à economia pública, quando considera inválido o Decreto Legislativo nº 788/05, proibindo o Ibama de elaborar a consulta política às comunidades interessadas. Ela ressaltou, ainda, que a consulta do Ibama às comunidades indígenas não deve ser proibida nesse momento inicial da verificação da viabilidade do empreendimento e que é relevante o argumento de que a inviabilização da UHE Belo Monte compromete o planejamento da política energética do país. A Ministra lembrou que, em decorrência da demanda crescente de energia elétrica, para substituir a Usina de Belo Monte, seria necessária a construção de dezesseis outras usinas na região, inundando-se uma área quatorze vezes maior do que o reservatório da UHE Belo Monte.
Permitam-se abrir um parêntese para dizer, desde logo, que eu não sou particularmente a favor nem contra a construção da Usina de Belo Monte. Eu, para falar a verdade, nem conheço direito as suas dimensões, benefícios e impactos. Essa não é, portanto, uma coluna de louvor à usina, nem de ataque aos índios. É apenas, como se verá a seguir, uma manifestação contrária ao desperdício de tempo e dinheiro públicos em discussões inteiramente estéreis. Alguém já parou para pensar se toda essa discussão possui algum efeito prático, além de movimentar a já assoberbada máquina judiciária brasileira? Fecha parêntese.
Eis aqui duas questões para se pensar: que diferença faz se as comunidades indígenas afetadas são ouvidas antes da autorização do Congresso Nacional ou durante o processo de licenciamento da usina (o que, aliás, é o que acontece com qualquer outra comunidade, afetada por qualquer outro empreendimento, o que demonstra mais um aparente privilégio de ser índio)? Faz sentido o Congresso Nacional — que não se interessa por absolutamente nada a não ser política — ser responsável por ouvir essas comunidades, como pretende o MPF, ao invés do Ibama?
Tudo bem que não se pode sair por aí fingindo que normas constitucionais não existem, mas há que se ter cuidado com a irracionalização das formalidades. Eu proponho aqui um desafio: considerando-se apenas os últimos 507 anos de história do Brasil, quem consegue imaginar um único argumento que, apresentado pelas comunidades indígenas do Xingu, faria mudar o rumo da construção da Usina de Belo Monte? Eu não consigo e, talvez por isso, ache essa discussão em particular sem sentido nenhum.
Parece-me que depois de cinco séculos de massacres, escravidão e abandono, o Brasil decidiu tratar bem as suas minorias mas, por absoluta falta de prática no assunto, não tem a menor idéia de como fazê-lo. E mete os pés pelas mãos, numa sucessão de trapalhadas tamanha que, se Didi, Dedé, Mussum e Zacarias estivessem todos vivos e juntos, teriam aqui a chance da fazer o seu grande épico com seu humor politicamente incorreto (com Zacarias no papel do índio, Mussum encarnando o quilombola e assim por diante). Esse sim, seria um sucesso.
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