Há um descrédito crescente quanto à eficácia dos licenciamentos ambientais, que vêm sendo frequentemente desvirtuados por interesses políticos e econômicos de plantão.
Parte da ineficácia se deve à precarização e neutralização política dos conselhos e órgãos ambientais. Fato semelhante foi apontado na área federal pela ministra Carmem Lúcia, do STF, que se manifestou contra a “cupinização” do sistema ambiental.
O Conselho Estadual do Meio Ambiente de São Paulo (Consema), ao revisar a Deliberação CONSEMA 01/2018, tendo como principal interessada a Associação Nacional dos Municípios e Meio Ambiente (Anama), delega aos municípios a capacidade de licenciar tipologias de atividades impactantes.
Além de processo sem transparência, sem audiências públicas, com documentação precária e sem comprovação da capacidade administrativa e de implementar controle social pelos municípios, o Consema protagonizou uma atuação venal, entre outras que vêm sendo denunciadas há anos.
A questão é de essência. Fere princípios basilares da gestão participativa. O Consema foi objeto de representação ao Ministério Público do Estado de São Paulo, em 2021, ricamente fundamentada e subscrita por uma centena de entidades, demonstrando que há crescente manipulação do conselho para facilitar interesses políticos do Governo do Estado de São Paulo, em detrimento da proteção ambiental.
Situação assemelhada ocorreu sobre a composição do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama). Sobre a matéria, assim manifestou-se a ministra relatora Rosa Weber na ADPF 623, demandada pelo Ministério Público Federal:
“Esse quadro demonstra que os representantes da sociedade civil não têm efetiva capacidade de influência na tomada de decisão, ficando circunscritos à posição isolada de minoria quanto à veiculação de seus interesses na composição da vontade coletiva”.
Note-se que “vontade coletiva” se refere aos interesses difusos, direitos fundamentais consagrados na Constituição Federal que se sobrepõem aos interesses setoriais pontuais.
A fragilização do Consema
No caso do Consema, a composição instrumentalizada pelo governo e o regimento interno repleto de inconsistências democráticas levam à condução tendenciosa, somada à falta de transparência e de documentação hábil, conforme denunciaram em 2021 ao MPE as entidades ambientais.
O sistema ambiental paulista vem criando barreiras ao controle social, instalando um atoleiro que impede decisões pró-sociedade e pró-sustentabilidade, sem prevalência da ciência e da percepção social, amplamente desfigurada, apenas concedendo espaço cenográfico à sociedade civil.
A instrumentalização do Consema paulista atinge agora não apenas os licenciamentos pontuais. Vai além. Desfigura a própria instituição do licenciamento ambiental, sem critérios e exigência ambiental adequados. A revisão da normativa 01/2018 fere a própria essência e o instrumento mais democrático da Política Nacional do Meio Ambiente (PNMA), o licenciamento ambiental.
A revisão visa entregar o licenciamento de ampla gama de atividades econômicas, cujo competência anterior era da Cetesb, órgão ambiental estatal que conta com estrutura técnica reconhecida e que, quando não sofre ingerência política, pode proporcionar respostas adequadas aos desafios da avaliação ambiental.
A iniciativa do Consema aponta para possíveis inconstitucionalidades, invasão da competência legislativa e, sobretudo, a evidente perda de eficácia para o sistema ambiental público.
Normatizar o licenciamento ambiental não pode significar facilitação ou retrocesso. Também não pode representar insuficiência democrática, sem debate público, sem a realização de audiências públicas que possam, de fato, lançar luzes sobre as propostas a partir da experiência e percepção social local e regional.
O ovo da serpente
O trabalho de revisão da Deliberação Consema 01/2018 na Comissão Temática Processante e de Normatização contou com a relatoria da própria ANAMA. Não houve solicitação por parte dos participantes que tenha resultado na realização de audiências públicas sobre a matéria, em que pese sua relevância, e nem há notícia de nenhuma medida específica neste sentido, inclusive por parte do Ministério Público Estadual, que tem assento no Conselho e que, historicamente, tem defendido a integridade do licenciamento ambiental tanto no Conama como no Congresso Nacional. É reconhecido por suas posições fundamentadas e robustas, sempre contra a pulverização da visão ecossistêmica e da perda de percepção sobre impactos sinérgicos e cumulativos cada vez mais preocupantes em um Estado como São Paulo, antropizado e com rompimento dos limites de capacidade de suporte em vários compartimentos ambientais.
A fragilização do licenciamento ambiental
A iniciativa do Consema não demonstra preocupação com avaliações preliminares sobre a qualidade e meios efetivos da plena participação pública na esfera municipal, direito fundamental garantido na Constituição Federal. Também não há de se considerar que a mera descentralização do licenciamento possa representar avanço democrático. Este é verdadeiramente garantido na impessoalidade da administração pública em defesa dos interesses difusos.
Lançar a esfera de decisão sobre viabilidade ambiental para instâncias vulneráveis às pressões econômicas locais, que permeiam com facilidade o legislativo e o executivo municipal, poderá redundar em distorções que dificilmente poderão ser contidas por esforços da organização social local, amiúde sub-representada em conselhos ambientais municipais com evidente desequilíbrio de forças.
O Consema ainda dá aval a pérolas que apontam para ilegalidades como permitir que o município licencie intervenções em Áreas de Preservação Permanente (APP) em várias situações, inclusive para locais que estejam desprovidos de vegetação nativa e que deveriam ser recuperados – e não serem ofertados à maior sanha da artificialização.
O Consema também contempla maiores possibilidades e facilidades de desmatamento para remanescentes de Mata Atlântica e do Cerrado paulista, abrindo caminho para suprimir remanescente ou nucleações de Mata Atlântica e Cerrado com licença municipal.
A impressão que fica é semelhante ao que assistimos frequentemente nas distorções promovidas pelo Congresso Nacional, no atendimento a interesses setoriais com o artifício que, de forma popular, é conhecido como jabuti, onde se inserem facilidades em novos projetos de lei.
Como pode o Consema admitir o artifício de legislar em prejuízo da eficácia do licenciamento ambiental e por meio de deliberação com vícios e inconsistências, desconstruindo assim o bom e constitucional ordenamento ambiental?
Tramitação frágil e temerária
Lendo os documentos disponibilizados na convocatória da reunião do Consema do dia 31/01/2024, quando o tema foi pautado, e, assistindo aos vídeos disponíveis no YouTube, tanto desta reunião, como da reunião extraordinária subsequente realizada em 08/02/2024 (para a qual não constou convocatória no site da Secretaria de Meio Ambiente, Infraestrutura e Logística – Semil), fica evidente que a maioria dos questionamentos verbais, efetuados por entidades ambientalistas e pelo próprio MPSP, ao longo da apreciação da matéria, acabaram por ser voto vencido, sendo afastados, muitas vezes por argumentos retóricos, genéricos e sem sustentação, não se refletindo majoritariamente no texto final aprovado.
Notícia no site da Semil agracia a nova deliberação que “torna mais claras as regras que estabelecem se os municípios estão aptos a processar o licenciamento, qualificando a versão anterior da deliberação”. Isso também não condiz com a realidade. Ao contrário, a falta de clareza persiste, ao lado de problemas de ordem técnica e legal gravíssimos que fulminam a eficácia da normativa. Alguns destes problemas foram reiteradamente apontados nas discussões, mas repetidamente desconsiderados.
A deliberação aprovada, com o objetivo de revisar a Deliberação Consema 01/2018, acabou por manter e agravar muitas deficiências já existentes nessa normativa, ao invés de promover a sua adequação, fundamentação e correção.
Instituindo licenciamento míope
Um dos maiores problemas que persiste na normativa proposta, e que a prejudica como um todo, é a definição de “impacto ambiental de âmbito local”, onde se mantém o equívoco de o considerar apenas como “o impacto ambiental direto que não ultrapassar o território do Município” para fins de estruturar os critérios estabelecidos, desconsiderando os impactos indiretos, bem como cumulatividades e sinergias.
Este aspecto foi apontado nas discussões. No entanto, ainda que envolva fundamentos legais e técnicos que exigem respeito, o questionamento foi preterido, com adoção de argumentos descabidos, como “necessidade de objetividade”, ainda que se trate de falha grave que torna a normativa inepta em essência. Só este aspecto já ensejaria a revisão global da norma.
Também se nota na notícia sobre a norma aprovada pela Semil que o órgão se vangloria pela inclusão de “40 novas tipologias de empreendimentos e atividades a serem licenciados pelos municípios, considerando como critério legal a abrangência do impacto em âmbito local e os critérios de porte, potencial poluidor e natureza das atividades; inclusão de novos conceitos que visam tornar explícitos os objetos da Deliberação”.
Ocorre que as alterações de tipologias e critérios, promovendo a ampliação das possibilidades de licenciamento ambiental municipal, também foram efetuadas, da mesma forma observada nas versões anteriores da norma, ou seja, sem qualquer sustentação técnica e, também, sem o necessário rigor legal, sem atentar, inclusive, para a consideração de aspectos de cumulatividade e sinergia dos impactos.
Fica evidente que o Estado, por meio da Semil/Cetesb e com forte alinhamento com a Anama, pretende estimular a municipalização do licenciamento municipal ao máximo. Por seu turno, há indícios de que a inspiração primordial para tanto empenho parece ter natureza administrativa, tendo como meta central promover a desoneração do Sistema Ambiental Paulista no que tange ao licenciamento ambiental de uma ampla gama de empreendimentos/intervenções.
A incapacidade de implementação
A grande pergunta que permeia este debate é: os municípios terão condições de atuar de forma consequente, procedente e eficaz no que se refere ao licenciamento ambiental? No âmbito da discussão não houve a devida demonstração quanto a essa premissa.
Chama muito a atenção, partindo do que consta na documentação difundida na convocatória da reunião do Consema (31/01/2024), e no próprio site da Semil, no sentido de que atualmente, dos 645 municípios do Estado de São Paulo, 87 municípios estariam aptos a realizar o licenciamento ambiental municipal, nos termos orientados pela Deliberação Consema 01/2018.
Neste contexto, é surpreendente que ao longo da alegada discussão por dois anos não tenha sido requerido e apresentado, como fundamentação mínima para fins de subsidiar as discussões, um diagnóstico do “estado da arte” em relação aos municípios que já estavam no exercício do licenciamento ambiental municipal.
Ao menos não foi divulgado publicamente que tenham sido realizadas, disponibilizadas e difundidas, avaliações de ordem técnica e legal sobre a atuação de cada município considerado apto (desde o início de sua atuação até o presente), e inclusive, por exemplo, sobre o histórico, detalhes e fundamentos adotados para criação e atuação da Agência do Vale do Paraíba, que parece já estar atuando na prática, de forma consorciada, envolvendo vários municípios daquela região, mesmo antes da aprovação da Deliberação Consema 01-2024. Tais avaliações seriam fundamentais para apoiar os trabalhos do próprio Consema e da sociedade como um todo na discussão do tema.
Também não se demonstrou que a Deliberação Consema 01/2018 (aquela que é revogada pela Deliberação Consema aprovada) veio sendo cumprida pelos municípios que se declararam aptos a fazer licenciamento ambiental até o momento.
Desta forma, não nos parece que houve a disponibilização de elementos de avaliação efetiva quanto à demonstração da correção, suficiência, qualidade e eficácia, não só da instrução de ordem técnica e legal que vem sendo realizada no que se refere às licenças ambientais emitidas por estes municípios, desde que passaram a exercer a atividade, bem como em relação à capacidade de fiscalização da prefeitura municipal, após a emissão de autorização de licenciamento ambiental para empreendimentos.
Também não há informações dimensionando e avaliando qualitativamente as características envolvendo a composição, estrutura e funcionamento das equipes técnicas (número, qualificação, concurso etc.) que estão atuando nos licenciamentos ambientais dos municípios, e nem no que se refere aos Conselhos Municipais de Meio Ambiente.
Mas não é só isso. Há vários outros questionamentos. Por exemplo, há várias situações conhecidas que têm ilustrado ampla gama de burlas e irregularidades na emissão de licenças ambientais, o que não se restringe somente aos municípios, mas envolve também o governo estadual, a exemplo de casos envolvendo o “Via Rápida Ambiental” da Cetesb, entre outros.
Terreno fértil para burlas
Se a norma for aprovada como está sendo proposta, é previsível que o licenciamento ambiental municipal continue incorporando muitas burlas, manipulações e distorções em sua instrução técnica e legal e, assim, se torne uma progressiva ameaça para qualidade de vida e ambiental em todo o Estado de São Paulo.
Muitas situações envolvendo, por exemplo, autorizações e/ou licenças ambientais municipais para o caso de intervenções em Áreas de Preservação Permanente, em Área de Proteção de Mananciais, para supressões de vegetação nativa, inclusive aquelas associadas ou não à movimentações de solo em APAS, ou ainda, intervenções em Zonas de Amortecimento de UCs, assim como para corte árvores isoladas, poderão envolver sérias deficiências e/ou burlas de instrução, por diferentes razões, levando à emissão de autorizações ilegais e/ou irregulares em grande quantidade, criando dificuldades para o seu controle social, inclusive pela tendência de consumação dos fatos se valendo das mesmas, antes que possam haver questionamentos mais qualificados e a tomada das medidas cabíveis.
Estes temas, dentre outros, no que se refere à concepção da Deliberação Consema aprovada ensejam análises detidas quanto a possíveis ilegalidades e inconstitucionalidades envolvidas, pois os municípios não podem ser induzidos a praticar um licenciamento orientado por vícios de origem.
Um aspecto, neste cenário, envolve as relações entre o CAR e PRA (Lei Federal 12651/2012), quanto a pendências, restrições e/ou compromissos assumidos e as possíveis licenças municipais a serem emitidas para intervenções em áreas rurais. Temas relacionados foram levantados na discussão, mas permaneceram sem os devidos esclarecimentos e com respostas insuficientes.
Observa-se ainda que as possibilidades de controle social dos licenciamentos ambientais municipais ficam, segundo a normativa proposta, concentradas no próprio município, notadamente no Conselho Municipal de Meio Ambiente, o que está envolto em variados questionamentos, além da insuficiência de informações e esclarecimentos sobre os procedimentos associados que serão adotados na prática.
Como exemplo, observa-se que os relatórios (mensais e anuais) para fins de “controle social” estabelecidos pelo Anexo V da Deliberação, não se comprometem com avaliações qualitativas formais e específicas, inclusive no que tange à transparência da instrução técnica e legal dos licenciamentos ambientais, e poderão virar uma peça de natureza burocrática, com agravante de registrar informações após a consumação da emissão das licenças/autorizações.
Escamoteando a emergência climática
Por fim, merece destaque que em pleno contexto de emergências climáticas e eventos extremos, cenário esse cada vez mais agravado, quando convivemos com a ocorrência de diversos danos sociais, ambientais e econômicos, ameaçadores, recorrentes e muitas vezes letais, a norma aprovada se mostra insuficiente também diante do tratamento desta questão.
O mínimo dispositivo que se volta genericamente ao tema, o artigo 10A inserido da norma aprovada na reunião do dia 08/02 (vídeo YouTube), indica que sejam considerados instrumentos e documentos de planejamento, entre outros referentes a situações de risco, se assemelhando ao comando já dado pelo artigo 192 da Constituição Estadual (conformidade do licenciamento com o planejamento e zoneamento).
O momento atual exige muito mais detalhamento e comprometimento, inclusive e especialmente quando se trata de normas concebidas para orientar o licenciamento ambiental.
Segundo consta em publicações de respeitadas organizações como a Abrampa, o licenciamento ambiental é um instrumento basilar e central para a tutela ambiental e, apesar de a Política Nacional de Mudanças Climáticas ter sido implantada no ano de 2009, poucos dos seus princípios, objetivos e diretrizes foram colocados em prática no âmbito da governança ambiental, especialmente na seara do licenciamento ambiental. O cenário atual enseja que as questões referentes às mudanças climáticas sejam cada vez mais consideradas na instrução e emissão de autorizações e licenças ambientais.
É preciso agir
A Deliberação Consema aprovada não confere tratamento à altura do tema. Incorpora vários equívocos sérios, como aqui sintetizamos, ensejando questionamentos de ordem técnica e legal.
Por fim, cabe ainda lembrar, de passagem, que a aprovação da norma está se dando em pleno ano eleitoral para os municípios, período em que acabam por aflorar mais intensamente vários interesses e precariedades, desnudando, por vezes, condutas que não se alinham com o chamado “espírito público”.
Assim, convivemos com maior frequência com a veiculação de informações que apontam situações em que autoridades municipais são investigadas por atos de improbidade administrativa, além de conviverem com sérias limitações e problemas orçamentários, segundo aponta o próprio Tribunal de Contas do Estado (TCE).
Considerando essa síntese, fica ilustrado que a aprovação da Deliberação Consema 01/2024 é um desserviço ao meio ambiente de todo o Estado de São Paulo.
As situações decorrentes da aprovação e edição da norma em questão demonstram situação temerária. Ensejam que organizações e instituições da sociedade, incluindo o Ministério Público, no exercício de suas atribuições, se manifestem publicamente sobre o assunto e informem sobre a tomada das providências que consideram cabíveis diante do fato.
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