Na região metropolitana da maior cidade da América do Sul reside uma das espécies de aves mais raras e ameaçadas do mundo, o bicudinho-do-brejo-paulista (Formicivora paludicola). Esse pequeno e gracioso passarinho, de bico afilado e que não passa de 15 centímetros, apresenta diversas peculiaridades. Entre elas, a distribuição geográfica bastante restrita da espécie, que não ocorre em nenhuma outra região e é a única ave endêmica do estado de São Paulo. Somente pode ser encontrada nas áreas de brejo localizadas nas bacias do Alto Tietê e Alto Paraíba do Sul, com registros em apenas seis municípios (Guararema, Santa Branca, Mogi das Cruzes, Biritiba-Mirim, Salesópolis e São José dos Campos). É uma das poucas espécies de sua família (Thamnophilidae), bastante diversa, a ser especialista de áreas alagadas.
Seus hábitos tímidos e pouco conspícuos, aliados ao seu habitat específico e muitas vezes negligenciado, são possivelmente responsáveis por um dos fatos mais surpreendentes relacionados a esta espécie: foi descoberta somente em 2004 e descrita pela ciência há apenas seis anos. Esse fato é notável, principalmente considerando que apenas cerca de 80 km separam seus locais de ocorrência do maior centro urbano do país, e que quase toda a área de distribuição da espécie está localizada dentro da Região Metropolitana de São Paulo, com cerca de 21,5 milhões de habitantes.
Foi seu canto sutil, embora bastante distinto, que chamou a atenção do ornitólogo brasileiro Dante Buzzetti em 2004, quando visitava áreas de brejos no município de Mogi das Cruzes. Após diversos estudos vocais, genéticos e de plumagem, foi demonstrado que o bicudinho de São Paulo era diferente de seu primo paranaense, o bicudinho-do-brejo (Formicivora acutirostris), descoberto por Bianca Reinert e Marcos Bornschein em 1995. Assim, o bicudinho-do-brejo-paulista foi formalmente descrito e recebeu oficialmente um nome em 2014. Dessa forma, essa espécie representa umas das mais recentes – e extraordinárias – descobertas da ornitologia brasileira.
Atualmente, a população total da espécie está estimada em menos de 400 indivíduos, distribuída em uma área com raio inferior a 50 km. Devido a essa restrita distribuição e sua alta especificidade de habitat – ocorre apenas em brejos de água limpa e corrente e com presença de algumas espécies vegetais específicas – a espécie encontra-se criticamente ameaçada de extinção, de acordo com os critérios da BirdLife International e União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN, sigla em inglês). Além disso, a situação do bicudinho ainda é agravada pelas ameaças sofridas nos poucos ambientes que restaram para a espécie, como a extração de areia, a invasão do exótico lírio-do-brejo (Hedychium coronarium) e a expansão da agricultura. Com todos esses riscos, é imprescindível que o habitat do bicudinho seja protegido em toda a sua área de ocorrência.
Atento à situação crítica que a espécie se encontra e à existência da espécie no município, o diretor de Meio Ambiente da Prefeitura Municipal de Guararema, Ricardo Moscatelli, procurou a SAVE Brasil no final de 2016. Coincidentemente, na mesma semana, a American Bird Conservancy, apoiadora de diversos projetos da instituição, também havia contatado a organização para expressar sua preocupação com essa espécie. Dessa forma, em 2017 a SAVE Brasil, a Prefeitura Municipal de Guararema e as ONGs locais Guaranature e Instituto Suinã uniram forças em um projeto para proteger a espécie naquele município, cujo objetivo principal era a criação da primeira Unidade de Conservação para a proteção do bicudinho-do-brejo-paulista.
No primeiro ano de projeto foram realizados diversos levantamentos na região em busca de locais de ocorrência da espécie, assim como censos destinados a estimar o número de indivíduos residentes nas áreas de brejo do município. Nessa primeira fase, foi possível observar que Guararema possui duas áreas de brejo muito importantes para a conservação da espécie, que juntas detêm uma população de aproximadamente 40 indivíduos. Esse estudo foi de extrema importância, já que virou a principal base para o movimento de criação de uma área protegida para a espécie, que culminou com a assinatura do decreto de criação do Refúgio de Vida Silvestre do Bicudinho em Guararema, com 2.372 hectares, em outubro de 2019 pelo prefeito Adriano de Toledo Leite.
O estabelecimento dessa área protegida representou uma grande vitória para a conservação em longo-prazo do bicudinho-do-brejo-paulista. A união dos esforços do poder público municipal com organizações da sociedade civil foi um bom exemplo para ilustrar como diferentes setores da sociedade podem trabalhar juntos para promover a conservação da biodiversidade. Esse resultado representou um enorme passo para a proteção do hábitat da espécie, passando a ser a primeira Unidade de Conservação a proteger o discreto bicudinho. Além dele, a área também abriga outras espécies ameaçadas de extinção como o sagui-da-serra-escuro (Callithrix aurita, Vulnerável), a águia-cinzenta (Urubitinga coronata, Em Perigo) e o pixoxó (Sporophila frontalis, Vulnerável).
Além de conhecer a população do bicudinho em Guararema, procurar a espécie em outras áreas e criar o Refúgio de Vida Silvestre, o projeto também buscou engajar a população local, já que, até então, a ave era totalmente desconhecida por seus habitantes. Nesse esforço, o projeto realizou diversas atividades com escolas locais e apresentou palestras sobre a espécie em eventos na cidade para também despertar o interesse dos adultos.
Agora, o bicudinho é um ilustre conhecido dos guararemenses, que têm orgulho de tê-lo como um habitante tão exclusivo. Com um representante tão notório para as aves da cidade e com o Refúgio estabelecido, a Prefeitura está investindo no turismo de observação de aves e desde 2016 realiza todos os anos o evento Avistando Guararema, com o apoio da SAVE Brasil. Em 2020, o Avistando Guararema se adaptou ao cenário atual e será um evento totalmente online em novembro. Ainda nesse esforço, a SAVE Brasil começou a treinar alguns cidadãos guararemenses para se tornarem condutores de observação de aves, estando aptos a levar turistas para conhecer a espécie no RVS do Bicudinho.
Graças ao apoio das instituições parceiras e dos apoiadores American Bird Conservancy, Fundação Grupo Boticário de Proteção à Natureza, Neotropical Bird Club e Mohamed Bin Zayed Species Conservation Fund, o projeto de conservação do bicudinho-do-brejo-paulista em Guararema já está perto de completar 4 anos. Durante esse tempo, além dos constantes monitoramentos da população e das atividades de engajamento, também foram realizadas buscas por novos brejos em que a espécie pudesse ocorrer. Atualmente, são conhecidas apenas sete outras áreas de brejo com ocorrência da espécie, distribuídas nos municípios de São José dos Campos, Santa Branca, Guararema, Mogi das Cruzes, Biritiba-Mirim e Salesópolis. Esse último município tem a sorte de contar com um dos mais importantes guardiões do bicudinho-do-brejo-paulista, o guia de observação de aves Elvis Japão. Além de ser um dos maiores conhecedores da espécie, Elvis contribui para a divulgação do bicudinho, que até pouco tempo era desconhecido, através da realização do Festival do Bicudinho, que ocorre anualmente em Salesópolis.
Agora que o bicudinho já tem uma área protegida garantida, seguimos trabalhando com a prefeitura e os demais parceiros para assegurar a implementação do Refúgio de Vida Silvestre e esperamos que, em um futuro próximo, Guararema possa receber pessoas do mundo todo para observar essa pequena preciosidade que dá nome à reserva. Esperamos também que outros municípios se inspirem no exemplo de Guararema e criem mais Unidades de Conservação para proteger os ambientes importantes para essa espécie, ajudando esse ilustre paulista a prosperar nos brejos da região.
Autores
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- Alice Reisfeld é formada em Gestão Ambiental pela Universidade de São Paulo e é Gerente de Projetos na SAVE Brasil.
- Karlla VC Barbosa é bióloga, mestre em conservação ambiental e sustentabilidade no IPÊ, doutora em Zoologia pela Unesp. Atualmente é coordenadora de projetos na SAVE Brasil
- Thiago Vernaschi Vieira da Costa é biólogo, com mestrado e doutorado em zoologia, atualmente professor da Universidade Federal de Itajubá, MG. Thiago foi o responsável pelo censo do bicudinho-do-brejo-paulista em Guararema, que embasou a criação da Unidade de Conservação.
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