Além da carência em termos de recursos financeiros e humanos, tendo como consequência a pouco inserção das unidades de conservação na agenda municipal, um dos graves problemas dos municípios, em especial de pequeno e médio porte, é a insuficiente aptidão dos servidores municipais para atuar na criação e gestão de unidades de conservação.
Não obstante o cenário, as Unidades de Conservação são um dos institutos jurídicos e políticos previstos no Estatuto das Cidades (Lei nº 10.257/2000), mais especificamente no seu artigo 4º. Há inúmeros exemplos de unidades de conservação criadas para controlar a expansão urbana desordenada ou para proteger mananciais de abastecimento público de água.
Apesar do instrumento de proteção ser importante por si só, impactos típicos de áreas urbanas tornam a gestão das UCs localizadas nas cidades um dos maiores desafios (comparando com as unidades de conservação “isoladas” da Amazônia), principalmente quando estamos falando das que estão sob gestão do município.
Neste contexto, capacitar e treinar servidores municipais significa fornecer os conceitos e as técnicas que embasam o planejamento e implantação de unidades de conservação, fundamentadas em uma visão integrada do território e de gestão participativa.
Após anos trabalhando com diversos tipos de UCs federais – algumas delas inseridas no contexto urbano como a Área de Proteção Ambiental (APA) da Baleia Franca, localizada no litoral centro-sul de Santa Catarina, região de forte pressão urbana, e como Chefe da Floresta Nacional de Lorena, situada entre Rio de Janeiro e São Paulo, muito próximo da Via Dutra, uma das regiões mais urbanizadas do país –, decidi criar em 2016, em parceria com instituições locais, regionais e nacionais, o curso “Criação e gestão de unidades de conservação urbanas: aspectos conceituais, legais e práticas”.
Em 10 edições, sendo 7 em capitais estaduais e o último em São João Del Rei, Minas Gerais, aprendi quais são as principais lacunas e desafios na gestão dessas unidades, que prestam tantos serviços ambientais para uma população brasileira cada vez mais urbana. Neste espaço em ((o))eco, compartilho este aprendizado.
Principais pontos e questões:
De olho na legislação – Verificou-se durante o curso que a necessidade de capacitar os gestores para compreensão dos principais aspectos relacionados às unidades de conservação como legislação do Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC), em especial sobre os instrumentos de gestão como Conselho Gestor, Plano de Manejo e a questão das Zonas de Amortecimento (critérios para delimitação).
Básico do planejamento urbano – Outro ponto levantado foi sobre a necessidade de entender o planejamento urbano e seus instrumentos, como aspectos ambientais da legislação do Estatuto da Cidade como os Planos Diretores.
Efetivação das UCs municipais – Como seguir o passo a passo para tornar a unidade de conservação efetiva, desde a criação da unidade por meio dos estudos técnicos e realização da consulta pública; passando pela implantação por meio da elaboração do Plano de Manejo; criação e fortalecimento do conselho gestor; proteção, manejo e uso público; pesquisa e monitoramento; autorizações e processos de licenciamento; gestão dos conflitos socioambientais; integração com comunidades do entorno e, por fim, articulação interinstitucional, principalmente no sentido de viabilizar as parcerias para implantar os programas estabelecidos no Plano de Manejo.
Violência, vandalismo e criminalidade – Outro ponto foi a da violência urbana e como ela atinge e dificulta a gestão das unidades de conservação urbanas. A criminalidade e vandalismo nas unidades de conservação urbanas compromete a educação ambiental, a visitação, pesquisa e mesmo a fiscalização, afetando os objetivos de conservação da unidade.
A problemática da violência somente poderá ser melhorada com maior uso das trilhas, maior policiamento e efetiva implementação da unidade, em especial quanto aos trabalhos de educação ambiental com população do entorno, no sentido de dar um sentimento de pertencimento em relação aquele espaço protegido.
A definição da ZA não pode ocorrer após a aprovação do Plano de Manejo, porque este deve abranger a ZA (art. 27, § 1º).
Zonas de Amortecimento – Outro aspecto discutido diz respeito à questão das Zonas de Amortecimento (também chamadas de Zona Tampão) das unidades de conservação urbanas, já que essas unidades são praticamente cercadas pela cidade. Duas observações: primeiro, os Planos de Manejo das unidades de conservação de proteção integral tem que definir a zona de amortecimento e as normas de uso e ocupação durante o processo de elaboração, e isso dificilmente acontece. Além do mais, a Lei 9.985/2000 do SNUC, estabelece que “A definição da ZA não pode ocorrer após a aprovação do Plano de Manejo, porque este deve abranger a ZA” (art. 27, § 1º). No caso de criação da unidade de conservação, mas que já existe bastante ocupação urbana ao redor da unidade, para definir a zona de amortecimento são necessários estudos e levantamentos a serem realizados durante o processo de elaboração do Plano de Manejo que comprovam que ocorrem impactos desse crescimento urbano na unidade de conservação. Então, a partir dessa análise, incluir essas áreas urbanas na zona de amortecimento, para através de programas definidos no Plano de Manejo, como envolvimento das populações do entorno, tentar resolver os problemas de impacto do crescimento urbano na unidade em conjunto com a Prefeitura ou órgão que trata da questão do saneamento básico (principalmente em termos de esgotamento sanitário, manejo de resíduos sólidos, drenagem e manejo das águas pluviais urbanas) já que na maioria das vezes trata-se desses problemas.
Trilhas – O papel das trilhas ecológicas interpretativas como instrumento de gestão e para aproximar as pessoas das unidades de conservação (e da questão ambiental) e, portanto, como instrumentos de educação ambiental, também foi foco dos 10 encontros. Por outro lado, percebeu-se também que o foco deve ser mais político da prática da educação ambiental realizada por meio das reuniões e capacitação dos integrantes do Conselho Gestor, já que a educação ambiental não é neutra, mas ideológica, baseado em valores para a transformação social.
Conselhos gestores – Implantar unidades de conservação sem conselhos gestores ou que, apesar de criados oficialmente, não atuam na prática como fórum de participação social em conjunto com o órgão gestor da unidade e portanto não se legitima o processo de implantação da unidade.
Esta unidade de conservação conserva? – É suficiente realizar a gestão das unidades de conservação com poucas pesquisas sobre sua biodiversidade, com poucos dados e informações, ou elaborar a gestão com dados existentes e realizar mais pesquisas após a aprovação do Plano de Manejo?
Corredores ecológicos – Dificuldade de estabelecer as necessárias conexões entre ambientes naturais (corredores ecológicos urbanos) em áreas cada vez mais impactadas e consequentemente mais fragmentadas por meio da urbanização.
Comunicação falha – Problema dos ambientalistas urbanos terem dificuldade de se comunicarem com planejadores urbanos e romper as barreiras entre o “natural” e o “urbano”.
Falta de integração entre políticas públicas – Deficiências na articulação institucional entre as políticas públicas, em especial em relação de uso e ocupação do solo, habitação, meio ambiente e geração de emprego e renda.
Planos de Manejo e Diretores – Importância da elaboração e revisão dos Planos de Manejo e Planos Diretores serem realizados simultaneamente, o que praticamente nunca acontece, ou no mínimo “dialogarem” mais um com o outro. Agregar o Conselho Gestor da unidade de conservação com o Conselho de Desenvolvimento Urbano da cidade.
Falta de incentivos – Escassez de Programas de Incentivo ao Desenvolvimento Sustentável/Alternativas econômicas de baixo impacto ambiental estabelecidos nos Programas do Plano de Manejo que gerem emprego e renda no entorno das unidades de conservação como, por exemplo, implantação de agroflorestas urbanas, que são produtoras de água.
Finalmente, algumas perguntas para refletirmos:
- Que fatores são determinantes para o sucesso ou fracasso da gestão de uma unidade de conservação urbana?
- Como estimular o interesse da população local e governos para que todos entendam as Unidades de Conservação como bens comuns à toda sociedade?
- No contexto das mudanças climáticas e aquecimento global, e considerando o papel das cidades nessa conjuntura, qual será o legado das áreas naturais protegidas? É preciso uma política pública diferenciada para as unidades de conservação urbanas, diferente daquelas isoladas da situação urbana como as unidade de conservação localizadas na Amazônia?
Aprimorar os conhecimentos, habilidades e práticas no processo de criação e implantação das unidades de conservação municipais contribui para construirmos profissionais e a comunidade local em melhores condições para reconhecer e valorizar esses espaços naturais tão importantes para desenvolvimento sustentável municipal.
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Desculpa Miguel, mas esta afirmação é bem complicada… "é a insuficiente aptidão dos servidores municipais para atuar na criação e gestão de unidades de conservação"… existem dados estatísticos sobre "aptidão" ou "vocação" de servidores municipais que confirmem isto? Seriam dados da ANAMA? Alguma tese ou dissertação tratou deste assunto? Gostaria de ver estas pesquisas.
Faltam recursos sim, humanos, financeiros, mas acima de tudo a cultura de se trabalhar com planejamento territorial. Concordo com vc que as politicas públicas devem dialogar e que não se cria ou implanta UCs Municipais sem que a Politica Ambiental e a Urbana dialoguem.Nossa experiência tem nos mostrado isso, e assim caminhamos para a 5a UC Municipal. (Tenho um artigo sobre nossa experiência em Guarulhos nos Anais do ANPPAS Sudeste de 2018). No mais os desafios são muitos, porém garantir proteção dos Recursos Naturais através da criação de UCs Municipais é assumir nosso compromisso perante a Convenção da Biodiversidade, as Metas de Aichi… entre outros!