Os quilombolas habitam e manejam a floresta atlântica no Vale do Ribeira há mais de 300 anos. Não por acaso o Vale do Ribeira é o maior remanescente de Mata Atlântica contínuo: dos 7% que restaram do bioma de Mata Atlântica em território nacional, 21% estão localizados no Vale do Ribeira. É a área mais conservada de São Paulo, contrastando com o restante do Estado que está desmatado e não abriga comunidades quilombolas.
Ou seja, as maiores áreas de Mata Atlântica no Estado de São Paulo estão nos municípios do Vale (Veja tabela 1), onde vivem populações tradicionais e existem áreas protegidas, como os Territórios quilombolas. Seria esse cenário apenas uma casualidade, uma coincidência? Ou teriam essas comunidades desempenhado um papel fundamental na conservação da floresta?
A partir da ocupação histórica da região nos últimos séculos, as condições da geografia de relevo acidentado com áreas desfavoráveis à agricultura de larga escala e o baixo desenvolvimento de infraestrutura como estradas, por exemplo, pode-se entender as circunstâncias que fizeram com que as comunidades sobrevivessem até hoje da agricultura tradicional. As técnicas de plantio de baixo impacto, aliadas a baixa densidade populacional da região e a permanência dos quilombolas no território, impedindo a entrada de exploradores, são fatores que se somam e contribuem para que a vegetação esteja preservada no Vale do Ribeira.
Tabela 1 – Municípios com as maiores áreas de floresta no Estado de São Paulo | ||
Município | Área total (ha) | Área de floresta (ha) |
Iguape | 197.795 | 153.487 |
Eldorado | 165.426 | 118.195 |
Cananéia | 123.938 | 102.725 |
Iporanga | 115.205 | 94.066 |
Sete Barras | 106.270 | 74.280 |
Fonte: Atlas dos Remanescentes Florestais da Mata Atlântica – Fundação SOS Mata Atlântica e Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), 2018. |
Ao longo de sua existência, para sobreviver no Vale, os quilombolas praticaram uma agricultura itinerante, herdada dos povos indígenas que habitaram a mesma região, chamada por eles de roça de coivara e que tem outros nomes em outras regiões tropicais. É a forma de agricultura milenar de povos e comunidades tradicionais. Até o passado recente, foi esta agricultura que garantiu alimento para as famílias quilombolas e todas as outras da região. Hoje essa mesma agricultura, que concilia produção com conservação, alimenta os quilombolas e outras famílias que recebem a comida produzida por meio dos programas institucionais como o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e o Programa Nacional Alimentação Escolar (Pnae).
A agricultura quilombola do Vale do Ribeira vem sendo amplamente estudada pela academia e os conhecimentos dos quilombolas sobre suas práticas e seu manejo vêm sendo relatados e documentados. Esse binômio, conhecimento tradicional e conhecimento científico, foram os alicerces do dossiê que embasou o pedido de registro como patrimônio cultural ao Iphan.
A partir de 2009, cinco anos de pesquisas inventariaram 180 bens da cultura imaterial das comunidades da região. Na conclusão do Inventário de Referências Culturais Quilombola, em 2013, foi identificada a centralidade da agricultura na vida dos quilombolas e recomendado que a diversidade agrícola encontrada, a quantidade de bens culturais associados às roças e a importância dessa prática tão ameaçada fosse protegida de alguma forma. Diante disso, em 2014 os quilombolas deram início ao pedido de registro ao Iphan.
O Sistema Agrícola Tradicional Quilombola do Vale do Ribeira é um conjunto de saberes e técnicas aplicadas no cultivo de uma variedade de plantas utilizadas na alimentação, medicina e cultura material. Abrange também os espaços onde se desenvolvem as atividades, os arranjos locais de organização do trabalho, os modos de processar os alimentos, os artefatos confeccionados para este fim e os contextos sociais de consumo. A existência de cada um dos componentes do sistema agrícola promove − e ao mesmo tempo resulta − um modo de transmissão intergeracional dos conhecimentos baseado na oralidade, no aprendizado presencial e prático.
Esses conhecimentos se expressam também por meio da linguagem, pela existência de um “idioma” criado para designar processos, objetos, classificar e caracterizar elementos ligados ao fazer agrícola. As trocas comerciais envolvendo produtos agrícolas configuram um aspecto do Sistema Agrícola Tradicional, também conhecido como sistema agrícola itinerante (SAI), é baseado no rodízio de áreas de plantio: o quilombola escolhe uma área, corta, coloca o fogo apenas nesse trecho. Depois, observando os ciclos da lua, ele planta. O solo se mantém fértil por alguns anos − e as cinzas que sobram do fogo, assim como os troncos que não foram queimados, são essenciais para isso. Dali ele retira o alimento que garante a sua sobrevivência: arroz, feijão, milho, cará, mandioca, pimenta, laranja, entre outros cultivares. O excedente do cultivo é comercializado e gera renda para atender as necessidades básicas das famílias. A partir de 10 a 15 anos depois, a roça vira novamente mata fechada.
Segundo a bióloga Cristina Adams, pesquisadora do grupo de estudos em Ecologia Humana de Florestas Neotropicais, da Universidade de São Paulo, esse sistema foi desenvolvido simultaneamente em todas as florestas tropicais do mundo. Segundo Adams, é o sistema mais adaptado à floresta tropical.
Entre os documentos que embasam o dossiê entregue ao Iphan está um conjunto de pesquisas científicas realizadas pelo grupo de estudos em Ecologia Humana de Florestas Neotropicais, da Universidade de São Paulo, pesquisadores da Unicamp e do Instituto de Botânica do Estado de São Paulo em cooperação com instituições internacionais de ensino. Os estudos falam sobre vegetação, fauna, solos, saúde nutricional, transformações na paisagem, agrobiodiversidade e produtividade agrícola. Todos realizados no Vale do Ribeira, em territórios quilombolas (veja as referências no final do texto)
A pesquisa de Gomes et al (2013), por exemplo, mostra que a diversidade de espécies de plantas aumenta ao longo do tempo de pousio da roça, processo esse conhecido como sucessão florestal. Se comparadas com áreas naturais perturbadas de tamanho e tempo de descanso semelhantes às roças, percebe-se que as áreas de pousio possuem número igual ou maior em espécies de plantas. Outra pesquisa também mostra a manutenção da biodiversidade nas áreas de roça, inclusive a megafauna que frequenta as áreas de roça abandonada em busca de alimento e outros recursos (ADAMS et al. 2013). Em relação ao impacto do uso do fogo na cobertura do solo, Ribeiro Filho (2015) mostra que a queima não atinge 10 centímetros da cobertura de biomassa, é superficial e atinge apenas os galhos finos e folhas mais secas, o restante se decompõe em nutrientes para o solo.
Os estudos de Lúcia Munari (2009), desse mesmo grupo, mostram que a cobertura vegetal de algumas das comunidades não mudou desde 1965. Aproximadamente 13% de toda a área das comunidades é utilizada para as roças, habitação e demais atividades dessas populações. O resto é cobertura vegetal. Em alguns quilombos, a mata cobre 97% do território, como Pedro Cubas e Bombas. A roça de coivara foi e é essencial para os quilombolas e pequenos agricultores, bem como para a conservação do maior remanescente florestal da Mata Atlântica no Brasil, o Vale do Ribeira.
Diante dos dados, observa-se que não são as roças quilombolas as responsáveis pelo desmatamento na Mata Atlântica. Têm-se, no Vale, outras ameaças que merecem artigos e denúncias, caso da mineração, das Pequenas Centrais Hidrelétricas e a pulverização aérea de agrotóxicos nos bananais às margens do Rio Ribeira de Iguape.
Olhando para as áreas autorizadas para roças em 2015 na tabela abaixo, o tamanho das áreas comparado com a porcentagem utilizada dos territórios diz muito das roças quilombolas.
Tabela 2 – Áreas autorizadas para supressão de vegetação com sobreposição com a Área de Proteção Ambiental (APA) Quilombos Médio Ribeira, período 2015-2017 | |||||
Quilombola | Município | Área do território (ha) | Quantidade de roça | Área de roça (ha) | Procentagem do território |
Engenho | Eldorado | 487,6 | 6 | 4,98 | 1,02 |
Galvão | Eldorado | 2234,34 | 9 | 8,27 | 0,37 |
Ivaporunduva | Eldorado | 2754,36 | 39 | 29,09 | 1,06 |
Maria Rosa | Iporonga | 3375,66 | 33 | 28,62 | 0,85 |
Nhunguara | Iporonga | 8100,98 | 47 | 33,59 | 0,41 |
Pedro Cubas | Eldorado | 3806,23 | 24 | 22 | 0,58 |
Pedro Cubas de Cima | Eldorado | 6875,22 | 7 | 9,47 | 0,14 |
Pilões | Iporonga | 6222,3 | 29 | 25,17 | 0,4 |
Praia Grande | Iporonga | 1584,83 | 13 | 19,72 | 1,24 |
São Pedro | Eldorado | 4688,26 | 32 | 29,12 | 0,62 |
Sapatu | Eldorado | 3711,62 | 3 | 1,6 | 0,04 |
Fonte: Instituto Socioambiental, 2017. |
Estes dados e outros se encontram no documento enviado ao Iphan. O dossiê foi elaborado entre 2014 a 2017, em um processo amplamente documentado pelos pesquisadores, detentores dos saberes e seus parceiros. Entregue em 2017, foi avaliado pela Superintendência do Iphan São Paulo e seguiu para o Departamento Nacional de Patrimônio Imaterial. Na reunião do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural, realizado no último dia 20 de setembro, o parecer favorável ao registro foi da renomada antropóloga Manuela Carneiro da Cunha. Foi uma conquista importantíssima para as comunidades quilombolas, especialmente porque mostra que há outros olhares sobre as roças e os modos de vida; que o fazer roça é compatível com a conservação da floresta, e que o equilíbrio do ambiente também depende do manejo que os povos tradicionais, que o conhecem, fazem dele.
Saiba Mais
Referências
Adams, C.; Munari, C.; Van Vliet, N.;M, R. S. S.; Piperata, B. A.; Futemma, C.; Pedroso Junior, N. N.; Taqueda, C. S.; Crevelaro, M. A.; Spressola-Prado, V. L. Diversifying incomes and losing landscape complexity in quilombola shifting cultivation communities of the Atlantic Rainforest (Brazil). Human Ecology, New York, v. 41, p. 119-137, 2013.
GOMES, E.P.C., SUGIYAMA, M., ADAMS, C., PRADO, H. M., OLIVEIRA Jr., C. J. F. A sucessão florestal em roças em pousio: a natureza está fora da lei? Scientia Forestalis, IPEF, v.41, p. 343 – 352, 2013.
Munari, L.C. Memória social e ecologia histórica: a agricultura de coivara das populações quilombolas do Vale do Ribeira e sua relação com a formação da Mata Atlântica local. 2009. 217 p. Dissertação Mestrado – Instituto de Biociências, Universidade de São Paulo, São Paulo.
Ribeiro Filho, A.A. Impactos do sistema agrícola itinerante sobre os solos de remanescente de Mata Atlântica com uso e ocupação por comunidades quilombolas do Vale do Ribeira (São Paulo, Brasil). 2015. 387 p. Tese Doutorado – Instituto de Biociências, Universidade de São Paulo, São Paulo.
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Aplicado em larga escala agora nas florestas do Mato grosso. O que possibilitou as queimadas.
Agora o guardo do eixo do mal está completo.
Seu cu.
Só tem bolsonariata aqui hein !!! Até q enfim oeco deu uma bola dentro em contrarreaposta a horrível matéria anterior parabéns pela matéria ! Terra e Agroecologia !!
As alegrias de ir nas referências originais ao invés de acreditar nas interpretações….
Adams et al. (2013) não mostram nenhum dado sobre a composição, diversidade, etc das capoeiras criadas pelos quilombolas em comparação com áreas de perturbação natural. E a palavra fauna nem é mencionada
Mas fala dos quilombolas usando essas áreas para caçar e extrair palmito.
É como no livro do Diegues. Quando você vai ver as referências que ele usa sobre "povos tradicionais gerando biodiversidade" descobre que é um paper e os autores não falam exatamente disso…
Gostaria de entender alguns pontos colocados pela autora.
Ao dizer " (…) A partir de 10 a 15 anos depois, a roça vira novamente mata fechada.”, mas qual tipo de vegetação recobre a área? Como em 15 anos Árvores de crescimento lento irão se recuperar?
Como se manterá sustentável este tipo de agricultura, com o crescimento populacional destas comunidades? Pelo texto se percebe que o alegado baixo "impacto", se dá muito mais pela baixa densidade demográficas destas comunidades do que por outro motivo;
A Mata Atlântica, já sendo tão amplamente devastada como é, qualquer impacto contra sua conservação não deveria ser repudiado e impedido, por menor que seja, pois se existe pouco a se conservar, por menor que seja o dano ele irá trazer profundos impactos?
Os argumentos alegados não poderiam ser usados para, por exemplo, declarar a caça como patrimônio cultural?
Perfeito.
Interessante discussão entre Maria Tereza Jorge Pádua e Raquel Pasinato! A primeira criticou o reconhecimento outorgado pelo Iphan à prática de roça e queima por quilombolas, o que considera ser um estímulo ao desmatamento, e a segunda, o justifica. Esta última argumenta que a atuação dos quilombolas permitiu conservar a região. A verdade é que a região foi relativamente preservada devido, como a própria Sra. Pasinato diz que a terra é pobre e que a população de quilombola era pequena e dispersa. Isso já não e tão certo e, obviamente não o será no futuro, quebrando o equilíbrio. Os próprios dados oferecidos por ela indicam que de 2015 a 2017 se desmataram oficialmente uns 213 hectares. É pouco, mas não é “tão pouco” e aumentará. Também se esquece de dizer que os quilombolas, por própria confissão, também caçam e tiram palmito, degradando a floresta. Ela agrega um argumento realmente absurdo, embora “sustentado” por um artigo. Essa forma de agricultura não enriquece nem diversifica a floresta, exceto com plantas exóticas. Muito pelo contrário. Finalmente, o que é evidente é que com essa classe de argumentos o Ipham poderia declarar toda forma de agricultura de corte e queima como patrimônio cultural, e também a caça, que é ainda mais antiga e tradicional que a agricultura.