A nossa relação com os cães e gatos constitui uma história antiga, complexa, de uma abrangência ímpar e que ainda está sendo construída. O cão, por exemplo, conhecido como o “melhor amigo do homem” foi o primeiro animal – e o único carnívoro de grande porte – a ser domesticado, há mais de 15 mil anos. O gato, por sua vez, já foi considerado sagrado em sociedades como o Egito antigo e é, até hoje, envolto por superstições, mistérios e admiração. O isolamento social provocado pela pandemia de covid-19 colocou em evidência o papel dos animais de companhia: a procura pela adoção aumentou 400% no Brasil, segundo dados da União Internacional Protetora dos Animais. Além disso, em tempos de internet e conteúdos virais, vídeos de cães e gatos são incrivelmente populares!
Essa relação pode se manifestar de diversas maneiras: há quem os ame, quem os odeie e quem os tema… há quem os maltrate e também quem dedique a vida por eles… há conflitos entre humanos por causa deles, mas também há amizades e amores que se formam graças a eles. Hoje, cães e gatos podem ser doados ou comercializados, podem ser utilizados para trabalho, terapia, alimentação, caça, guarda ou companhia. Ao conviver com humanos, eles podem vivenciar situações que vão desde maus-tratos e negligência até a antropomorfização (ou seja, a projeção de características humanas nos animais) – ambas prejudiciais para o bem-estar dessas espécies. Também é comum que sejam tratados como membros da família, no que hoje se denomina família multiespécie, ou seja, o núcleo familiar formado por mais de uma espécie. Mas o que acontece quando adicionamos mais um elemento – no caso, os animais silvestres – a essa equação de interações?
No tema deste mês, o campo das Dimensões Humanas – que “se refere às relações que as pessoas estabelecem com o ambiente e entre si (em função do ambiente)” – converge com o conceito e abordagem de Saúde Única, ou seja, o reconhecimento de que a saúde das pessoas, dos animais e do ambiente estão profundamente conectadas e, portanto, devem ser trabalhadas em conjunto. Assim sendo, no prisma que envolve a relação entre humanos, cães, gatos e animais silvestres há muitas facetas a serem observadas, iluminadas, refletidas e descobertas.
Primeiramente, devemos lembrar que os cães e gatos são animais domésticos. Isso significa que, no processo evolutivo das suas respectivas espécies, eles foram adaptados para conviver com os humanos, apresentando “características biológicas e comportamentais em estreita dependência do homem”, de acordo com a Portaria 093/1998 do IBAMA, que lista outras 48 espécies domésticas entre aves, invertebrados e mamíferos. Esse processo envolveu também intensa seleção artificial, na busca humana por características físicas e comportamentais específicas nesses animais. A condição de “domésticos” traz à tona não só a história evolutiva dessas espécies, mas também a nossa responsabilidade em relação a elas – seus indivíduos e populações. Isso é importante, principalmente, quando refletimos e comparamos os comportamentos humanos direcionados aos animais domésticos e silvestres.
Para alguns, um cão fazendo “amizade” com um cervo ou um guaxinim é visto como legal e positivo. Para outros, um gato saindo de casa sem supervisão e voltando com um passarinho na boca “de presente” é visto como natural. Mas por quê, do ponto de vista da Conservação e da Saúde Única, as interações dos cães e gatos com os animais silvestres não é considerada positiva nem natural? Bem, a resposta é que para o ambiente silvestre, os caninos e felinos domésticos são considerados animais exóticos (que não pertencem àquele ecossistema) e também invasores (que ameaçam a fauna nativa e o equilíbrio daquele ecossistema). Por isso, há muitos riscos e impactos negativos que advêm dessas interações – para todas as populações envolvidas (Figura 1).
A transmissão de doenças, por exemplo, é um desses impactos e pode afetar tanto os animais silvestres, quanto os cães e gatos e até nós, humanos! Na interação domésticos-silvestres o fluxo de doenças é uma via de mão dupla – pode ocorrer dos domésticos para os silvestres e vice-versa. Um ponto importante é que essas doenças podem ser zoonóticas, ou seja, podem ser transmitidas entre pessoas e animais. Considerando que os cães e gatos que interagem com os silvestres frequentemente também interagem com os humanos (sendo seus tutores ou não), eles também podem atuar como pontes de transmissão entre essas populações. E esse é só um exemplo de como a relação entre pessoas, domésticos e silvestres pode ser complexa.
Para os animais silvestres, além das doenças, podemos mencionar o expressivo impacto da predação. Em 2013, um estudo realizado pelo Instituto Smithsonian e pelo Departamento de Pesca e Vida Selvagem dos Estados Unidos estimou que os gatos matam de 1,3 bilhão a 4 bilhões de aves e entre 6,3 bilhões e 22,3 bilhões de mamíferos todo ano. Há também estudos que apontam até mesmo para a extinção de espécies, nas quais houve contribuição significativa dos animais domésticos para tal. Uma pesquisa publicada em 2017, por exemplo, mostrou que os cães contribuíram para a extinção de 11 espécies de animais vertebrados, entre aves, répteis e mamíferos. Além disso, eles são considerados como ameaça conhecida ou potencial para outras centenas de espécies, incluindo algumas em risco de extinção. No Brasil, não são raros os relatos de cães e gatos caçando animais silvestres nas cinco regiões do país, inclusive dentro de áreas protegidas como Unidades de Conservação.
Mesmo quando não chegam a matar os animais silvestres de fato, cães e gatos os perseguem e intimidam, causando outro impacto, chamado de perturbação. Como predadores, apenas a sua presença é suficiente para que as presas – animais silvestres – se vejam obrigadas a mudarem suas dinâmicas, rotinas ou comportamentos para evitá-los. Por fim, mesmo que de forma menos expressiva, considera-se ainda o impacto da competição – quando há disputa por recursos como água e comida – e da hibridação, quando há reprodução entre diferentes espécies, podendo resultar em perdas na integridade genética dos envolvidos.
Grande parte desses impactos negativos e ameaças à fauna silvestre são causados por cães e gatos que se encontram soltos e sem supervisão humana. Ao imaginar esses animais, pode ser que a primeira imagem que venha à mente seja a de cães e gatos sem tutor – que foram abandonados ou que sobrevivem sem contato com humanos (os tais cachorros e gatos ferais). Mas sabe-se que em muitos locais, a maioria dos cães e gatos que seriam definidos como “de rua” têm sim um tutor, mas são deixados livres para andar por locais públicos a maior parte do dia. Ou seja, é mais provável que os impactos sejam causados por animais semi-domiciliados ou comunitários (aqueles que vivem na rua, mas são mantidos por várias pessoas; que são adotados coletivamente) e que exista uma pessoa que se responsabilize por eles. É comum, por exemplo, que os cães avistados em armadilhas fotográficas dentro de áreas protegidas apareçam nas imagens usando coleira. Sendo assim, conseguimos perceber como o comportamento humano tem um papel central nas interações dos animais domésticos-silvestres.
Nós, seres humanos, podemos ser considerados como mediadores das interações que acontecem entre os cães/gatos e os animais silvestres. O tipo e a intensidade da interação dependem principalmente de três fatores relacionados ao comportamento humano: o controle que temos sobre o espaço destinado aos nossos animais (se ficam restritos ou tem acesso à rua), os recursos que oferecemos a eles (como alimento, água, abrigo e cuidados veterinários), e o manejo (ou não) da densidade populacional dos cães e gatos – pelos tutores, poder público, ONGs e/ou outras instituições.
Em relação à restrição do espaço, quando falamos de cães e gatos com acesso à rua, ou seja, aqueles que não vivem o tempo todo em um espaço controlado por seus tutores, adentramos a área do bem-estar e da tutela responsável dos animais de companhia. A realidade é que fora de casa – ou do espaço reservado a eles, seja canil, quintal ou qualquer outro – e sem supervisão humana, esses animais têm maior facilidade de interagir com a fauna silvestre e, ao mesmo tempo, são expostos às situações adversas como doenças, estresse, maus-tratos (quem nunca ouviu uma história de um cachorro agredido ou de um gato envenenado?), brigas com outros animais – sejam eles domésticos ou silvestres, acidentes, atropelamentos… Além disso, caso não sejam castrados, ou seja, caso não tenham passado pela cirurgia para que não tenham filhotes, eles ainda podem se reproduzir e contribuir com o aumento do número de animais nas ruas.
Já sobre a oferta de recursos, caso não obtenham alimento e água de forma adequada, os cães e gatos podem acabar buscando-os no ambiente silvestre. Ao mesmo tempo, fornecer esses recursos aos cães e gatos faz com que essas espécies sejam beneficiadas, ou seja, nós damos a elas vantagens que os animais silvestres normalmente não possuem. Por isso, quando falamos em termos de espécie, as domésticas geralmente têm maior vantagem competitiva que as silvestres. Não é à toa que se observa a superpopulação canina e felina ao mesmo tempo que a superpopulação humana: onde há gente, há cães e gatos! Isso significa que eles estão presentes no mundo todo, mesmo em situações de vulnerabilidade. Os números assustam: Há estimativas de 1 bilhão de cães e pelo menos 600 milhões de gatos no planeta. Portanto, mesmo que o impacto individual causado por cada cão e gato sobre os silvestres possa parecer pequeno, se levarmos em consideração o impacto coletivo, ele se torna extremamente preocupante.
Assim temos que, de uma maneira geral, quanto maior for a população de cães e gatos (e não manejada), quanto mais eles tiverem acesso às ruas e quanto menos eles obtiverem recursos adequados dos humanos, maiores serão as chances de interação com a população silvestre e consequentemente, de causar os impactos negativos citados. Portanto, o melhor caminho é a tutela responsável, o esclarecimento sobre os riscos dos cães e gatos soltos e a promoção dos cuidados necessários e ideais para os animais domésticos, o que inclui mantê-los em espaços restritos e controlados. Além disso, estimular a participação social em ações e estratégias de manejo populacional de cães e gatos em suas comunidades – especialmente se forem regiões rurais ou próximas a áreas protegidas.
Nesse sentido, o “Programa Cãoservação” – um grupo de projetos de pesquisa voltados a estudar os impactos dos cães e gatos no ambiente silvestre – foi inovador ao inserir as Dimensões Humanas e a Saúde Única neste debate. Dentre outras ações, as entrevistas com moradores do entorno de uma Unidade de Conservação proporcionaram o envolvimento da comunidade na busca por soluções. A partir das respostas de adultos e crianças, um material educativo infantil foi elaborado, contemplando um livro de histórias, um jogo de tabuleiro e histórias em quadrinhos relacionadas à temática da interação humano-domésticos-silvestres. Os vídeos utilizados na metodologia das entrevistas e o material educativo produzido estão disponíveis gratuitamente.
Até aqui, falamos dos cães e gatos de forma conjunta, como um grupo que interage com outros. Porém, é preciso deixar claro que eles pertencem a espécies diferentes, com comportamentos e necessidades próprios e distintos, o que também diferencia os tipos de interação com os animais silvestres. Por exemplo, cães preferem se manter em trilhas e têm comportamento de matilha, muitas vezes atacando animais silvestres em bando. Gatos já adentram áreas de mata, caçam mais por instinto (o que independe de estarem com fome) e tem comportamento mais solitário.
É importante mencionar que nem todas as interações entre domésticos e silvestres são negativas. Há situações em que os cães são utilizados como instrumentos para a conservação e fazem trabalhos incríveis! Cães que realizam a guarda de rebanhos, por exemplo, são uma ferramenta milenar de manejo na Europa central e na Ásia, protegendo os rebanhos de cabras e ovelhas de ataques de predadores, como os ursos (Ursus arctos) e lobos cinzentos (Canis lupus). A redução das perdas de rebanhos a partir da implementação de técnicas não letais, como o uso de cães, é fundamental para facilitar e promover a coexistência entre os humanos e os predadores silvestres. Outro exemplo são os cães farejadores, treinados e utilizados na busca por material biológico de animais silvestres – como excrementos. Eles facilitam o trabalho dos pesquisadores em campo, no que diz respeito ao registro da presença e à coleta de amostras de espécies alvo de esforços de conservação.
Alguns grupos de pesquisadores defendem o extermínio de cães e gatos como pragas em Unidades de Conservação ou em áreas protegidas e de interesse para a conservação de espécies silvestres ameaçadas de extinção. Ressalta-se que além de gerar um grande conflito com muitos outros grupos da sociedade, esse método não é legalmente amparado (a Lei 13426/2017, que dispõe sobre a política de controle de natalidade de cães e gatos, diz que o controle será “mediante esterilização permanente por cirurgia, ou por outro procedimento que garanta eficiência, segurança e bem-estar ao animal”). Além disso, considerando que: a presença de cães e gatos é um efeito antropogênico; que o processo de extermínio envolveria sofrimento; e que na maioria das vezes as dinâmicas populacionais locais são instáveis e desconhecidas; sacrificá-los seria cruel e ineficaz (assim como foi a tentativa de eliminar os cães das ruas com as chamadas “carrocinhas” para o controle da raiva, num passado não tão distante). Desse modo, é imprescindível que a gente olhe para a superpopulação de cães e gatos como uma situação criada por nós, e que, portanto, cabe a nós, como sociedade, abordá-la de maneira ética e humanitária.
O manejo populacional canino e felino conta com princípios e diretrizes estabelecidos por organizações internacionalmente reconhecidas, como por exemplo a Organização Mundial da Saúde Animal (OIE) e a Coalizão Internacional de Manejo de Animais de Companhia (ICAM). O manejo é um compromisso permanente, com intervenções que mudam e evoluem ao longo do tempo, o que requer um sistema de ações sustentado pela combinação de leis, políticas, governanças e sociedade civil. Um aspecto importante é entender que por desigualdades socioeconômicas e inequidades, há limitações estruturais que se impõem na relação entre as pessoas e seus animais domésticos, pois a gestão do que é doméstico depende fundamentalmente da condição econômica/social e das potencialidades oriundas dela. Assim sendo, quando refletimos sobre tutela responsável precisamos também considerar tais problematizações. Isso significa buscar soluções realistas e factíveis, dentro de cada realidade, cabendo ao Estado instituir políticas públicas e garantir acesso gratuito ou subsidiado para que populações mais vulneráveis também participem do processo de manejo ativa e intelectualmente.
A complexidade do tema assusta, mas é preciso encará-lo de frente, pois quando o assunto é minimizar os impactos negativos da interação entre pessoas, cães, gatos e animais silvestres, o manejo populacional canino e felino – que engloba a tutela responsável – é ponto chave. Ações, individuais, coletivas e governamentais, muito importantes nesse sentido – e que se não cumpridas, podem até caracterizar maus tratos passíveis de multa e prisão (Lei 14604/2020) – são: atender às necessidades básicas dos cães e gatos, zelar pela sua saúde e bem-estar, vaciná-los, castrá-los, mantê-los em espaço controlado, passeá-los na guia e sempre verificar e respeitar a permissão/proibição da presença deles em áreas verdes. Assim se promove a saúde de todos: pessoas, animais (domésticos e silvestres) e ambiente. Ser um tutor responsável de cães e gatos não é só dar uma vida digna a eles, mas também é – e deve ser – um ato conservacionista e de Saúde Única!
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