A Trilha Transcarioca primeira trilha de longo curso do Brasil, buscou desde sua concepção aprender com experiências de rotas de longo curso já consolidadas pelo mundo. O aprendizado, que já soma mais de dez anos, tem se dado por meio de leitura específica, mas também através de viagens para conhecer outras trilhas in loco e pela recepção de gestores de trilhas estrangeiras para palestras, seminários e oficinas de treinamento no Brasil. Mais recentemente, no contexto da World Trails Network, da qual a Trilha Transcarioca é a única representante da América do Sul, o Movimento Trilha Transcarioca e a Rede Brasileira de Trilhas, começaram a organizar viagens de estudos e aprendizado.
Até hoje, voluntários envolvidos com a implementação das trilhas de Longo Curso da REDE, realizaram visitas técnicas à North Country Trail, à Pacific Crest Trail, à Appalachian Trail, à Buckeye Trail, à Tahoe Rim Trail, à Florida Trail, à John Muir Trail, à San Francisco Bay Area Ridge Trail, e à Arizona Trail (Estados Unidos) ao Sendero de Chile e ao Circuito “O” (Chile); à Huella Andina (Argentina); à Estrada Real (Brasil); à Waitukubili Trail (Dominica); à International Appalachian Trail, à Bruce Trail, à la Grande Traversée e ao PanAm Path (Canadá); à Hoerikwaggo Trail, à Tsitsikama Trail, à Otter Trail e à Whale Trail (África do Sul); à Turaco Trail (Zimbábue); às GRR1 e GRR2 (Reunião); à GR (Mayote); à Israel Trail (Israel); à Rota Vicentina; à GR da Serra da Estrela; à GR 13 (França), à West Highland Way (Escócia); ao Wicklow Way (Irlanda); ao Pennine Way e ao Hadrian Wall (Inglaterra), à Taff Trail (Gales); à Via Alpina (Eslovênia); à Trilha Peaks of Balkans (Albânia e Montenegro); à Besparmak Trail (Chipre); à Laugavegur Trail (Islândia); às Trilhas Europeias E3, E4, e E9; à Overland Track, à Great North Walk, à Habour to Hawksville Trail, à Larapinta Trail, à Heysen Trail, à Cape to Cape Trail, a Myalls to Tops, à Fraser Island Great Walk, à Australian Alps Walking Track e à Bibbulmun Track (Austrália), à Great Baikal Trail (Rússia asiática), à Kumanu Kodo Trail (Japão) e à Jeju Ollé Trail (Coreia).
A última dessas viagens aconteceu em setembro de 2018. Na ocasião, pagando do próprio bolso, voluntários da Trilha Transcarioca visitaram a Lebanon Mountain Trail (LMT), trilha de 440 km que conecta os extremos sul e norte desse pequenino país do Oriente Médio.
A programação da viagem incluiu dois dias de reuniões com os gestores e voluntários da da LMT, coroados com uma belíssima travessia de cinco dias que incluiu algumas florestas de cedros do Líbano e uma cabritada pelo Vale do Qadisha, Patrimônio Mundial da Humanidade. No total foram caminhados sete dias, 117,3 km e 44h14 na Lebanon Mountain Trail
As emoções começaram antes mesmo da partida. A simples menção ao Líbano era respondida por todos com muito desconhecimento e pré-conceito. Amigos, parentes e montanhistas de nosso círculo logo vaticinaram que seríamos assaltados, sequestrados e mortos. Houve até quem nos visualizasse de joelhos, vestindo macacão laranja com uma faca prestes a nos degolar.
Não é nada disso. Sim, é verdade que as marcas da Guerra Civil que assolou o país entre 1975 e 1990 ainda são visíveis em muitos lugares. Há prédios cravejados de balas, é normal ver o Exército patrulhando as ruas e estradas do país e o Hezbollah tem presença ostensiva no Vale do Bekaa. Entretanto, isso não se traduz em um patamar de segurança que seja insuportável para os brasileiros. Segundo dados da consultoria NationMaster o índice de criminalidade do Brasil é o dobro do Líbano (78,4 x 36,84): o Brasil é o décimo país mais violento do mundo e o Líbano é 57º. Já, a taxa brasileira de assassinatos por cem mil habitantes é doze vezes superior à do Líbano (30,8 x 2,5); por fim o índice de crimes violentos do Brasil é 431 vezes maior que a do Líbano. Em nossa visita não sentimos insegurança em nenhum momento.
Fomos tratados como reis pelos nossos anfitriões, que prepararam meticulosamente a visita técnica. Já nos dois primeiros dias após desembarcarmos em Beirute tivemos reuniões proveitosas. De nossa parte, mostramos a Rede Brasileira de Trilhas e a Trilha Transcarioca. Quando o lado libanês fez sua apresentação, ficamos impressionados com a organização da secretaria executiva da Trilha, suas estratégias de levantamento de fundos, de capacitação de pousadeiros (que incluem algumas homestays), de serviços associados, bem como com a política de marketing da Lebanon Mountain Trail junto à diáspora libanesa e ao mercado europeu.
Como se sabe há na Europa algumas centenas de trilhas de longo curso. No próprio Oriente Médio existem a Jordan Trail, a Sinai Trail, a Israel Trail, além de trilhas de longo curso na Arábia Saudita e na Turquia. Assim, para atingir o objetivo de gerar emprego e renda para as comunidades que vivem nas montanhas do país, a LMT criou um diferencial para si mesma em relação a outras trilhas de longo curso da região. Hoje caminhar na LMT é mais que uma atividade de montanhismo. Trata-se também de uma experiência cultural e, mais recentemente, gastronômica.
O trajeto da trilha foi pensado para passar em mosteiros milenares escavados na rocha crua de vales estreitos, igrejas e mesquitas medievais e para utilizar antigas estradas romanas. Na nossa travessia, a trilha levou-nos ao Museu Gibran Khalil Gibran e ao imponente Mosteiro de Santo Antônio de Qozhaya, entre outros ativos culturais de relevância. O maior diferencial da LMT, contudo, está além da caminhada propriamente dita, pois ele se apresenta no fim do dia, quando chegamos nos locais de pernoite.
A trilha foi planejada para que os estabelecimentos de hospedagem incluíssem diferentes opções tais como casas de moradores, albergues, pousadas, hotéis e mosteiros cristãos. Em nosso périplo dormimos em casas de famílias cristãs e muçulmanas, experimentando assim dois lados da riquíssima cultura libanesa. Graças a um processo de capacitação desenvolvido pela LMT, cada pernoite vem acompanhado de um cardápio de comida libanesa especialmente desenvolvido para os trilheiros, onde evita-se a repetição de receitas ao longo da jornada, o que empresta à caminhada tons de uma experiência gastronômica única. Segundo Marcus Carrasqueira, um dos voluntários da visita técnica, foi a única vez que caminhou em uma trilha de longo curso e voltou mais gordo.
A Lebanon Mountain Trail foi concebida no princípio desse milênio pelo líbanês-americano Joseph Ghaleb Karam. Na época a ideia foi considerada um desvairio: todos diziam não havia demanda para a trilha. Hoje 76 empresas de ecoturismo vendem pacotes na LMT, cuja contribuição anual em gastos diretos na economia libanesa é estimada em cem mil dólares.
Com efeito, a LMT tem gerado emprego e renda em comunidades empobrecidas do interior do país o que tem resultado em grande apoio do entorno. Seus objetivos, contudo, extrapolam a geração de benefícios econômicos. Nas reuniões técnicas com a parte brasileira, Martine Btaich, Diretora executiva da LMT, explicou que a ong tem lutado para que a Lebanon Mountain Trail seja reconhecida oficialmente pelo Governo como um corredor ecológico ligando as áreas protegidas do país, bem como os remanescentes das florestas de cedro do líbano. Nesse sentido o Decreto do Município do Rio de Janeiro reconhecendo a Trilha Transcarioca e a Portaria Conjunta dos Ministérios do Turismo e do Meio Ambiente e do ICMBiocriando a Rede Brasileira de Trilhas foram de grande interesse para os libaneses.
A LMT hoje é composta por 40% de estradas de terra, 10% de estradas de asfalto e 50% de trilhas. Há muito que fazer, mas os libaneses não estão parados. Em reunião com a chefe da Reserva Natural de Horsh Eden fomos informados que há um forte engajamento das áreas protegidas conectadas pelo seu traçado com o objetivo de que no futuro elas deixem de ser ilhas biogeográficas, passando a ser efetivamente ligadas por uma LMT que funcione como conector de paisagem. Não se trata de uma ideia longínqua. Atividades de recuperação ambiental já estão acontecendo. Em nossa caminhada, participamos de uma iniciativa de reflorestamento de cedros do líbano em que houve uma profícua troca de experiências, já que Marcus Carrasqueira é profissional de recuperação ambiental da Cidade do Rio de Janeiro, com larga experiência no bem sucedido projeto Mutirão Reflorestamento, que plantou mais de 4 milhões de mudas ao longo dos últimos 24 anos.
Também há grande ênfase na educação ambiental. Em nossa caminhada pudemos testemunhar a visita à trilha de vários estudantes cristãos e muçulmanos, cujo trabalho envolvia sempre reflexões sobre a caça, a qualidade da água, a proteção das florestas e a importância da paisagem. Por fim, há o objetivo da construção de um propósito comum a todos os envolvidos no projeto. Por isso a Trilha foi pensada para passar por comunidades cristãs e muçulmanas de diferentes denominações, como maronitas, ortodoxos, drusos, xiitas e sunitas de forma a dar um sentido de unidade a todos esses grupos.
Como parte da visita, o Movimento Trilha Transcarioca e a Lebanon Mountain Trail assinaram um Acordo de Irmanação, cuja cerimônia foi dentro um belíssmo bosque de cedros-do-líbano da Reserva Natural de Tannourine. Foi um evento emocionante com cerca de 200 pessoas presentes, entre voluntários da LMT, moradores da região, políticos locais e guardas-parque. Todos nos procuravam para contar a história de seus primos no Brasil- sim todo mundo, TODO MUNDO MESMO- tem família no Brasil. A população libanesa hoje é de pouco mais de seis milhões de habitantes. Enquanto isso o Itamaraty estima que entre 7 e 10 milhões de brasileiros são de ascendência libanesa. Após a assinatura passamos o dia escutando as histórias em terras tupiniquins dos intrépidos Issa, Kassab, Temer, Feghali, Nader, Haddad, Jatene, Khoury, Gebara, Khalil, Eymaiel, Resek, Choffy, Chalita, Karam, Féres, Hassoun, Assaf, Chaloub e tantos outros que ajudaram a formar o nosso país.
Após o evento, o resto da viagem foi pé no chão. Em cada dia de caminhada fomos acompanhados por voluntários da LMT que iam nos contando a história e as particularidades dos trechos que atravessávamos. Foram muitas subidas e descidas, plantas endêmicas, vistas espetaculares e casos interessantes. Durante o primeiro trecho, Martine Btaich nos contou que a relação dos libaneses com seu país é muita parecida com a nossa: “O Líbano é uma país fraturado, tenso, difícil. Durante toda minha vida eu estive dividida entre emigrar ou permanecer aqui, meu coração estava partido com a dicotomia eu odeio meu país/eu amo meu país. A Trilha mudou isso pois mostrou que é possível desenvolver um projeto comum a todos. A LMT é a terra em que vivo e eu a amo profundamente. A LMT me deu um propósito para ficar e construir um país novo e melhor”.
A caminhada não foi só trabalho, foi muito prazerosa para o corpo e para a mente, mas essa parte, cheia de imagens deslumbrantes, Marcus Carrasqueira vai contar.
Em 2019 vamos ter mais uma viagem de aprendizado a outra trilha de longo curso. Todos os que quiserem nos acompanhar são bem-vindos.
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