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Os efeitos nefastos ao meio ambiente do PL 364/2019

Na ânsia de anistiar casos que deveriam ser avaliados de forma específica e criteriosa, o oportunismo legislativo passou a propor a inserção de dispositivos anômalos, lesivos e não compatíveis

2 de abril de 2024
  • Carlos Bocuhy

    Carlos Bocuhy é presidente do Instituto Brasileiro de Proteção Ambiental (Proam)

A sociedade brasileira foi surpreendida por um erro brutal com a aprovação do Projeto de Lei 364/2019 na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados, que mais uma vez está legislando contra a proteção do patrimônio ambiental nacional.

O PL, se for aprovado, levará à devastação de, pelo menos, 48 milhões de hectares só de campos nativos, o equivalente às extensões somadas do Rio Grande do Sul e do Paraná. Na prática, poderiam ser riscados do mapa mais de 50% do Pantanal, 32% dos Pampas e 7% do Cerrado. 

A origem do PL decorre das ações de fiscalização e autuações do Ibama em áreas de campos de altitude na região sul do país. Na ânsia de anistiar casos que deveriam ser avaliados de forma específica e criteriosa, o oportunismo legislativo passou a propor a inserção de dispositivos anômalos, lesivos e não compatíveis. De incrível alcance degradador, a proposta representa enorme ameaça para toda vegetação nativa não florestal do Brasil.

O Brasil se caracteriza, no plano internacional, por seu DNA ambiental. Frequentemente busca demonstrar esforços para efetivar essa proteção, mas o Congresso Nacional continua a protagonizar graves ataques ao meio ambiente ecologicamente equilibrado.

Os reiterados erros ambientais que vêm ocorrendo no Congresso decorrem dos interesses econômicos do agronegócio & afins. A atuação legislativa dissociada da justiça e do interesse público não é democracia, mas sim atividade lobística característica da oligarquia, tipificando conflito de interesses no exercício da coisa pública estabelecida de forma constitucional.

Legislar contra o interesse público é um ato calamitoso para o ambiente e para o meio legislativo, que em tese é a casa do povo. O interesse público ambiental visa alcançar sustentabilidade ambiental, garantindo benefícios ecossistêmicos, entre outros aspectos relevantes de proteção a elementos com reconhecidos valores ambientais, para que estes sejam distribuídos equitativamente entre todos os membros da sociedade.

Em última análise, o interesse público confere status de bens indisponíveis aos elementos que configuram o bem comum mais amplo, que incluem, além do meio ambiente, saúde pública, educação, justiça social etc., aos quais não se podem sobrepor interesses econômicos e individuais.

Alheio aos seus deveres constitucionais, o Congresso Nacional demonstra ânsia em promover retrocessos na normativa de proteção do meio ambiente. As investidas neste sentido vêm sendo agravadas com a prática dos “jabutis”, tática oportunista de inserir interesses privados em projetos de lei. No Congresso, essa é uma atuação constante que visa ao benefício de interesses econômicos.

É preciso frisar que o Brasil conta com diferentes formações vegetais nativas não florestais. A vegetação nativa não precisa ter fisionomia florestal para ser ecológica e socialmente relevante. É fundamental em termos de oferta de serviços ecossistêmicos essenciais para a sociedade humana e, portanto, necessita da devida preservação e proteção, especialmente do ponto de vista legal.

É completamente absurdo que o PL em questão, partindo de uma problemática pontual, desguarneça a proteção e promova possibilidades de supressão de vegetação nativa não florestal em todo o território nacional. Pretender a ampliação e consolidação de usos agrossilvipastoris nestas áreas, de forma generalizada, é insustentável.

Há total improcedência no PL 364/2019, que enseja inúmeros questionamentos técnicos e legais. A vegetação nativa não florestal, que ocorre em nossos diferentes biomas como Pantanal, Cerrado, Caatinga, Pampa, Amazônia e Mata Atlântica, está sendo tratada como se não tivesse importância biológica, ecológica, cultural e social; como se não contasse com atributos e características próprias que ensejam proteção e avaliações específicas em diferentes casos; como se não contasse com a incidência de restrições legais já existentes, não tivesse importância para a biodiversidade, para os recursos hídricos, e não oferecesse outros inúmeros serviços ecossistêmicos fundamentais para a coletividade.

Ignorar tais aspectos é negação ilógica e absurda. Para exemplificar, considerando os campos de altitude, sabemos que estes são reconhecidos pela ciência como ambientes de grande importância biológica, alto grau de endemismos (táxons restritos geograficamente a esse tipo de ambiente), incluindo espécies raras e ameaçadas de extinção.

Estudos já efetuados demonstram a sua riqueza biológica, o que também ocorre nos campos do Sudeste e Nordeste brasileiro. Os remanescentes de campos de altitude têm alta relevância como corredores ecológicos e áreas de recarga de aquíferos, e mostram alta vulnerabilidade a processos erosivos, além de serem áreas que contam com elevado número de nascentes.

Outros serviços ecossistêmicos são oferecidos por estes ambientes, como por exemplo: banco genético/recursos genéticos, compostos bioquímicos; microclima/clima, recarga de aquíferos, infiltração e escoamento pluvial, controle de erosão, assoreamento, estabilidade geotécnica, retenção de partículas atmosféricas, controle biológico, estoque/remoção de gás carbônico da atmosfera, polinização; formação de solo, ciclagem de nutrientes, dispersão de sementes, conectividade da paisagem, manutenção da biodiversidade (biota rara), recreação, ecoturismo, educação, beleza cênica e conservação da paisagem.

Desta forma, além de sua incontestável relevância biológica, os campos de altitude cumprem funções abióticas relacionadas à manutenção, filtragem e regularização dos sistemas hidrográficos, bem como à imobilização de carbono atmosférico.

Por óbvio, nem é necessário dissertar aqui sobre como esses atributos ganham relevância ampliada diante das mudanças climáticas. Preocupações similares devem ser consideradas em relação aos diferentes ambientes de formações nativas não florestais ameaçados pelo nefasto PL 364/2019.

Segundo o deputado federal que propôs a mudança, José Mário Schreiner (MDB), a medida pretende “uniformizar entendimentos e evitar interpretações equivocadas, proporcionando segurança jurídica e tranquilidade aos produtores”. Porém, o que se constata é que o PL em questão se firma sobre raciocínios generalistas e pouco inteligentes, que jamais poderiam ter sido acolhidos pelo Congresso Nacional.

Então, resta a pergunta: como pode prosperar tal ação nefasta que está impulsionando, com subterfúgios descabidos a viabilização de uso econômico das áreas protegidas? Como são aceitas no Congresso Nacional tais generalizações cientificamente inconcebíveis? Como pode um problema específico gerar um tumor nacional, que, como os demais “jabutis”, uma vez aprovado, deverá ir parar no STF por sua evidente inconstitucionalidade?

A história natural do Brasil demonstra intensa degradação que aponta para crescente raridade dos bens ambientais remanescentes, o que obrigaria o Estado a redobrar a proteção desses compartimentos ambientais, que se vêm cada vez mais revestidos de maior valia.

Não se pode aceitar a perda de nosso patrimônio ambiental, inclusive por meio de questionáveis beneplácitos de anistia, como tem ocorrido em tantas outras situações devido à ineficácia e falta de efetividade na gestão e controle territorial no Brasil.

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