Diariamente nos deparamos com informações preocupantes sobre a poluição plástica, seja no meio ambiente, ou em nossos corpos. Plásticos são encontrados até nos lugares mais remotos do planeta, desde o topo das montanhas, até as profundezas do oceano, e os microplásticos (aqueles menores que 5 mm) já foram detectados no ar, na chuva, na água engarrafada e até no cafezinho e na cerveja! Claro que não estamos imunes e há muito tempo isso deixou de ser um problema apenas para a tartaruga marinha, uma vez que há registros de microplásticos na nossa corrente sanguínea, pulmões e placenta. Na verdade, olhando de forma mais ampla, o plástico gera impactos desde a sua produção, emitindo gases de efeito estufa que impactam a capacidade do planeta em atingir os compromissos globais para conter as mudanças climáticas. Conseguiu imaginar o desafio que é encontrar uma solução para esse problema que afeta o planeta, populações humanas e ecossistemas em tantos níveis? Vem com a gente que vamos contar o que se passa nos bastidores da construção dessa nova estratégia promulgada pela ONU.
A decisão histórica de elaborar um Novo Tratado Global
Em 2022, os países-membros da ONU chegaram a um consenso, na 5a Assembleia Ambiental das Nações Unidas (UNEA), de que a poluição plástica precisa ser eliminada, uma vez que atingiu níveis inadmissíveis e que impactam o desenvolvimento sustentável, social e econômico. A partir desse entendimento, 175 países reunidos na sede do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA) em Nairóbi, no Quênia, adotaram a Resolução 5/14 para a criação de um Tratado Global para acabar com a poluição plástica, incluindo no ambiente marinho. Foram agendadas 5 sessões de negociações intergovernamentais (INC, sigla em inglês) para a elaboração de um tratado, de 2022 a 2024, com metas legalmente vinculantes desde o início da cadeia do plástico, ou seja, para combater o problema ao longo de todo o seu ciclo de vida. Porém, por mais que a Resolução 5/14 tenha sido assinada por todos os países presentes, já era de se esperar que durante as negociações haveria entraves e polêmicas enraizados em conflitos de interesses entre os diferentes países do globo e os diversos setores da sociedade.
Conflitos de interesse travando a elaboração de estratégia global
Após as duas primeiras sessões de negociação do Tratado, ocorridas no Uruguai (INC-1) e na França (INC-2), um Rascunho Zero foi elaborado reunindo opções de texto com todas as sugestões dadas pelos países. O texto traz muitos elementos que fornecem um caminho para combater a poluição plástica. Dentre eles, opções para limitar e reduzir a produção de plástico, redesenhar os plásticos para torná-los menos tóxicos e mais fáceis de reciclar, e remediar a poluição plástica existente. Na terceira sessão, ocorrida em novembro de 2023, no Quênia, respostas ao Rascunho Zero foram dadas pelos grupos regionais de países (existindo 6, oficialmente, fora Coalizões criadas posteriormente) e pelos países de maneira individual. Algumas opções divergentes e polêmicas em jogo incluem o limite à produção de plásticos em nível global, e se o Tratado cobrirá os aditivos químicos plásticos. A adoção de ambas as medidas foi confrontada por países produtores de petróleo, como integrantes da OPEP (Organização dos Países Exportadores de Petróleo), e por representantes da indústria do plástico, um subproduto do petróleo. À medida em que o texto avança, é possível notar como os interesses domésticos divergem entre países e até mesmo dentro de um mesmo grupo regional, trazendo uma tensão crescente às negociações.
Alguns países, incluindo o Brasil, fazem questão de incluir um parágrafo no preâmbulo do Tratado, reforçando a importância do plástico para a sociedade. Eles não estão errados. O plástico possui uma excelente serventia, uma vez que a sua versatilidade o torna um material onipresente na sociedade moderna, compondo desde embalagens de alimentos, a dispositivos médicos, roupas e eletrônicos. Porém, para que o plástico tenha todas essas qualidades, diversos aditivos químicos são adicionados a ele (cerca de 13.000 adicionados intencionalmente). Destes, apenas metade foi avaliada quanto ao risco que podem trazer à saúde humana e ao meio ambiente e 3.200 foram classificadas como preocupantes, uma vez que podem afetar funções humanas vitais, como a reprodução, e até mesmo causar câncer. Isso nos leva a fazer a pergunta mais óbvia: usando a tecnologia existente e a que ainda pode ser desenvolvida, não seria possível eliminar plásticos que são evitáveis e substituir o plástico existente em funções essenciais por um material que não seja tóxico para a saúde e o meio ambiente?
A resposta não tem um tom uníssono nas negociações do Tratado, já que muitos países não desejam incluir a produção de plásticos e de seus aditivos no escopo do instrumento. Se a solução estivesse apenas nas etapas finais da cadeia dos plásticos, isto é, com a melhoria da reciclagem e da gestão de resíduos, com certeza uma cooperação mundial para acabar com a poluição plástica seria relativamente mais simples de operacionalizar. Porém, como traz a própria Resolução 5/14, isso não é o suficiente. Um artigo publicado na revistas científica Science por pesquisadores membros da Coalizão de Cientistas por um Tratado dos Plásticos Efetivo mostra que mesmo aplicando todas as soluções para a circularidade do plástico no fim da cadeia, as emissões anuais de plástico para o meio ambiente só podem ser reduzidas em 79% em 20 anos. Depois de 2040, 17,3 milhões de toneladas anuais de resíduos plásticos ainda seriam lançados no ambiente. Fica evidente que para prevenir a poluição por plásticos, a solução deve incluir a eliminação progressiva de plástico até 2040.
Tratado eficiente exige lidar com diferenças entre Norte-Sul Global
Sem um instrumento que regulamenta a produção global de produtos e aditivos plásticos, os países seguirão com a comercialização de produtos plásticos nocivos – que não atendem aos critérios de sustentabilidade, essencialidade e segurança – e exportação para países que permitem o uso destes. Além disso, grande parte dos resíduos plásticos já é exportada do Norte para o Sul Global, o que representa uma ameaça substancial às comunidades marginalizadas e em situação de vulnerabilidade e aos locais onde vivem. Essa prática, conhecida por “colonialismo de resíduos”, é uma das diversas questões de justiça ambiental que permeiam as negociações do Tratado.
O caminho à frente para construir uma solução efetiva: não há atalhos
Habilidades táticas de negociação são necessárias para conciliar os múltiplos interesses inerentes à produção e poluição plástica, numa sala que reúne 193 países-membros discutindo em 6 diferentes idiomas
As negociações do INC-3 tiveram como foco reunir posicionamentos sobre o Rascunho Zero e discutir as submissões enviadas pelas partes interessadas a respeito do escopo do Tratado Global contra poluição plástica, reunidas no Relatório Síntese. O objetivo era que essas discussões servissem de base para uma primeira versão do texto do tratado, a ser debatido na próxima sessão de negociação, agendada para abril de 2024, em Ottawa, no Canadá. Além disso, foram discutidas as regras e o mandato para planejar e organizar o trabalho entre as sessões de negociação (chamado de trabalho intersessional).
Porém, a INC-3 terminou com um sentimento de frustração pela falta de consenso em como seguir o trabalho intersessional e deixou alguns pontos em aberto, que precisarão ser discutidos no INC-4, como o escopo do Tratado e medidas de redução de produção de plástico aqui citadas.
Como ressaltou a economista e ambientalista Inger Andersen, Diretora Executiva do PNUMA, e o Presidente do Quênia, William Ruto, é preciso que os países adotem o “espírito de Nairóbi” (fazendo referência ao senso de cooperação e responsabilidade de culminou na adoção da Resolução 5/14), e prezem pelo bem comum da humanidade. Nesse sentido, é imprescindível que o Tratado seja baseado no melhor conhecimento disponível, incluindo informações científicas e conhecimentos indígenas e tradicionais, e atenda a interesses coletivos de melhoria da qualidade ambiental e a saúde humana. Para tanto, é fundamental eliminar a poluição plástica desde a fonte e fazê-la de forma global.
Alcançamos o meio do caminho nas negociações, mas tudo indica que ainda há muito para ser discutido se quisermos, de fato, cumprir a Resolução 5/14. Precisamos ser criativos enquanto partes interessadas, para redesenhar produtos e sistemas de comércio e trabalho, para uma nova economia justa e circular para o plástico. O processo de elaboração do Tratado sem dúvidas está trazendo aprendizados a todas as nações, estados e iniciativas dispostas em fazer a diferença em suas respectivas escalas, seguindo os princípios de prevenção e precaução da hierarquia de resíduos. Priorizar produtos e serviços com um novo design, livres de plásticos, focados na redução do consumo e reutilização, é o caminho recomendado para avançarmos de forma mais urgente e efetiva na implementação desse chamado global, em nossas realidades locais.
Para saber mais
Repensando o Plástico – Coleção de Materiais sobre políticas para a poluição por plástico, governança e estruturas de fiscalização que afetam o consumo e percepção da sociedade em geral em relação aos materiais plásticos. Núcleo de Pesquisa em Organizações, Sociedades e Sustentabilidade da USP (NOSS). 2023. Acesso em: https://www.livrosabertos.sibi.usp.br/portaldelivrosUSP/catalog/series/nosrepensando
Turning off the Tap – How the world can end plastic pollution and create a circular economy – Relatório que propõe uma mudança sistêmica e examina os modelos econômicos necessários para enfrentar a poluição por plásticos. Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente. 2023. Acesso em: https://wedocs.unep.org/bitstream/handle/20.500.11822/42277/Plastic_pollution.pdf?sequence=3
Earth Negotiations Bulletin – Resumo diário das sessões de negociações para o Tratado Global contra a Poluição Plástica. 2023. Acesso em:
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