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Qual o lugar da prevenção de desastres na produção jornalística?

A humanidade se encontra hoje na sociedade de risco, cuja seta aponta para o futuro. É necessário, portanto, que o Jornalismo compreenda que a sua atuação perpassa o antes, o durante e o pós-desastre

4 de outubro de 2023
  • Clara Aguiar

    Estudante de Jornalismo da Faculdade de Biblioteconomia e Comunicação da UFRGS

  • Eloisa Beling Loose

    Professora da Faculdade de Biblioteconomia e Comunicação da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul), pesquisadora e vice-líder do Grupo de Pesquisa Jornalismo Ambiental (CNPq/UFRGS).

Em 2022, mais de 890 mil pessoas foram vítimas de eventos extremos envolvendo chuvas intensas, enxurradas, enchentes e deslizamentos de terra no Brasil. Os dados são do S2iD (Sistema Integrado de Informações sobre Desastres), mantido por governos estaduais e municipais. Embora não haja ainda informações consolidadas para 2023, apenas neste ano o Rio Grande do Sul já contabiliza pelo menos 400 mil afetados em decorrência de tempestades.

Em setembro, o estado gaúcho sofreu com a maior tragédia climática de sua história. Em Porto Alegre, o nível do lago Guaíba chegou a 3m18cm, superado apenas pelos 4m75cm registrados na enchente de 1941. Na Região dos Vales, a passagem de um ciclone extratropical deixou 50 mortos, 943 feridos e oito desaparecidos. Meses antes, em junho, outro ciclone havia provocado 16 vítimas fatais no Litoral Norte. Há décadas pesquisadores alertam para tragédias climáticas como as que vêm ocorrendo no Sul do Brasil. O aumento na ocorrência e na intensidade de desastres no RS nos últimos meses fez com que o debate sobre políticas públicas de redução de riscos de desastres (RRD) ganhasse maior espaço na cobertura jornalística diária. 

A participação da imprensa na busca pela prevenção de desastres é fundamental tanto para a construção de uma percepção de risco quanto para o empoderamento dos cidadãos no que diz respeito ao enfrentamento dos impactos da crise do clima. Infelizmente, diversas pesquisas confirmam que a prevenção não costuma ser pauta nos meios de comunicação antes das tragédias ocorrerem. A lógica jornalística  é orientada para o passado recente, ou quase presente, sem se comprometer com o futuro. O tempo do Jornalismo é aquele mais próximo do “agora”, existindo dificuldade de reportar previsões – muitas vezes entendidas como especulações.

No entanto, em meio a um contexto em que eventos climáticos extremos estão se tornando “o novo normal” e que prognósticos se mostram cada vez mais necessários para tomarmos decisões acertadas, o Jornalismo precisa transformar a sua lógica voltada a uma cobertura factual em um posicionamento que lide melhor com a antecipação de situações críticas. É o que discute a publicação “Antes do desastre: notas a respeito do Jornalismo, da comunicação de riscos, da prevenção e do envolvimento cidadão”, assinada por pesquisadoras do Grupo de Pesquisa Jornalismo Ambiental (CNPq/UFRGS). 

Como apontado pelas autoras, o Jornalismo tende a centrar os seus esforços na cobertura de desastres, mas a pauta da prevenção exige um trabalho que antecede tais ocorrências. A discussão sobre prevenção deve estar inserida na rotina de produção das redações dos jornais, de modo que a população receba informações necessárias acerca dos riscos potenciais e de suas formas de gestão.

O texto salienta que há uma combinação de fatores pelos quais o Jornalismo, que atua a partir do registro do presente, não costuma pautar os riscos sob um olhar antecipatório. Destaca-se aqui:

1) Falta de profissionais especializados na área, o que tende a acarretar pouco aprofundamento na cobertura do pós-desastre e escassez de produções jornalísticas que apontem elementos preventivos para evitar riscos semelhantes, gerando uma cobertura pontual e superficial.

2) Priorização de um acontecimento concreto em detrimento de projeções futuras, o que prejudica a popularização das informações sobre riscos. Isso deve-se pelo fato de que o modus operandi do Jornalismo é guiado por valores-notícias que privilegiam a morte; a notoriedade; a proximidade; a relevância; a novidade; o tempo; a notabilidade; o inesperado (ainda quando previamente informado sobre sua possibilidade de ocorrência); o conflito ou a controvérsia – elementos que atravessam mais evidentemente o desastre.

3) Ausência do fator humano em notícias sobre riscos. Na produção jornalística, busca-se  apresentar algum “personagem” que vivencia ou que passa por determinada situação abordada, a fim de aproximar o relato das pessoas – o que, na maioria das vezes, não é possível quando lidamos com projeções.

4) Dificuldade em conseguir trabalhar com declarações científicas de incerteza e de probabilidade, pois os públicos, de forma geral, possuem percepções diferentes sobre o funcionamento de um prognóstico e o próprio papel da ciência.

5) Omissão dos riscos em favor de interesses econômicos, pois o Jornalismo se localiza entre dois polos: o econômico, atrelado à necessidade de vender e atrair a audiência, e o ideológico, voltado para seu papel social; logo, há casos em que os riscos são subestimados por parte da imprensa em razão de interesses econômicos. Tal silenciamento em relação à visibilidade dos riscos provoca um rompimento do compromisso do Jornalismo com o interesse público. 

É preciso lembrar que a prevenção de desastres não se resume à divulgação de dados pluviométricos ou alertas que solicitam que famílias deixem suas casas na véspera de possíveis alagamentos. A prevenção antecede o anúncio de um possível evento meteorológico e deve ser vista como processo.  Considera-se que o papel-chave do Jornalismo é colaborar com a criação de uma cultura de prevenção, o que significa esclarecer acerca dos riscos a partir das vulnerabilidades às quais as pessoas estão submetidas para que elas possam tomar decisões de maneira consciente e responsável. A democratização das informações sobre os riscos e as adequadas medidas para evitar e/ou mitigar danos é crucial para que cada cidadão possa tomar decisões acertadas e se proteger dos piores cenários.

Além disso, também é atribuída aos veículos jornalísticos a missão de fiscalizar e cobrar a longo prazo as ações prometidas por autoridades governamentais durante a ocorrência de um desastre (que não acaba quando finda o evento extremo). A fase da reconstrução não deve ser entendida como a tentativa de restabelecer a vida como era, mas de compreender que a nova infraestrutura precisa ser mais resiliente, considerando os riscos que até então não eram notados.

A humanidade se encontra hoje na sociedade de risco, cuja seta do tempo aponta para o futuro. É necessário, portanto, que o Jornalismo compreenda que a sua atuação perpassa o antes, o durante e o pós-desastre. O debate em torno do tema da prevenção de desastres precisa ser ampliado a fim de disseminar conhecimento para que os cidadãos possam se mobilizar frente às possibilidades de perigo. 

Diante da emergência climática, é imprescindível destacar a reflexão proposta no estudo: “Se o Jornalismo pauta o debate a partir daquilo que é interesse público, como ignorar os riscos? Não seria parte de suas finalidades informar a população sobre as medidas necessárias para evitar os desastres?”. A prevenção deve ser incorporada nas diferentes pautas do Jornalismo. Explicar os riscos para a população em vez de esperar que eles se concretizem pode contribuir para evitar danos materiais e, principalmente, perdas de vidas humanas. A perspectiva do chamado Jornalismo Preventivo pode orientar as discussões sobre como minimizar desastres na esfera pública e aproximar cidadãos e governos nos processos decisórios de gestão de riscos.

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