Em 2019, o Comitê do Patrimônio Mundial da UNESCO se reuniu na cidade de Baku, capital do longínquo Azerbaijão. Cercados pelo Mar Cáspio, seus 21 membros analisaram e aprovaram a cidade fluminense de Paraty e a Ilha Grande como Patrimônio Cultural e Natural da Humanidade.
Reconhecimento tardio, mas merecido, a uma cidade cujo passado se confunde com a História do Brasil. Repousando entre a Mata Atlântica e o mar, rodeada pela serra e por uma áurea boêmia, Paraty já atraiu piratas, príncipes, aventureiros, escritores, fotógrafos, mergulhadores e milhões de turistas.
A Baía de Paraty é protegida por uma paisagem geográfica que cria condições ótimas para a navegação. Com águas em tons infinitos de verde, é um lugar democrático, onde diversas embarcações dividem as mesmas rotas: o bote de alumínio apressado levando a família caiçara para casa; o veleiro elegante deslizando levemente, tombado pelo vento; a escuna abarrotada de turistas foliões; o iate imponente com seus múltiplos andares e um costado que brilha contra o sol.
Nos finais de semanas e na alta temporada, alguns pontos da baía lembram avenidas movimentadas, com filas de embarcações criando ondas e marolas que seguem em todas as direções e quebram contra os rochedos e costões. Abaixo da linha d’água, essas ondas são rompantes de desordem em um ambiente marinho delicado e acostumado com a estabilidade.
Mesmo mergulhando a alguns metros de profundidade, ainda consigo ouvir o som do motor de uma embarcação, como se ele estivesse ao meu lado. Minha dupla de mergulho, a pesquisadora Suzana Ramineli está eufórica tentando me mostrar algo. Ela aponta repetidas vezes para um monte de algas que dançam violentamente com a oscilação da água. Eu não consigo enxergar nada além de algas comuns daquele costão rochoso. Ela aponta com mais ênfase, balanço a cabeça em negativa, então, ela afunda e para o dedo indicador a poucos centímetros do objeto de todo nosso esforço naquela manhã: um cavalo-marinho, laranja, de no máximo 6 centímetros, agarrado à vegetação para não ser levado pela turbulência dos barcos.
Algumas pessoas desenvolvem habilidades extraordinárias durante a vida. Até cheguei a acreditar que tinha certa destreza em encontrar pequenos animais marinhos, mas Suzana está em outro patamar, quando se trata de achar cavalos-marinhos. Ela direcionou a sua vida à pesquisa desses fascinantes animais, quase sempre sem qualquer auxílio financeiro público ou privado, contando apenas com fundos oriundos de campanhas de financiamento coletivo, venda de produtos e cursos relacionados à ecologia marinha.
Apesar da sua grande popularidade, ainda existem diversas incógnitas sobre a evolução, história de vida, morfologia e biodiversidade dos cavalos-marinhos, pois são animais que não recebem tanta atenção por parte de pesquisadores, financiadores e da mídia, quando comparados a outros animais, como tartarugas, baleias, golfinhos e até tubarões.
Dias ensolarados, praias e ilhas paradisíacas, com água quente e transparente, e embarcações equipadas com os últimos instrumentos em pesquisa marinha são condições que não fazem parte da rotina de pesquisa de Suzana Ramineli. Avessa às práticas tradicionais de captura de animais para estudo, ela destrincha o litoral fluminense munida de prancheta, régua e instrumentos simples, para analisar as características da água onde estiver mergulhando. Sob chuva forte, em barcos esfumaçados de óleo diesel, no mar frio e com baixa visibilidade, ela encontra cavalos-marinhos em situações das mais adversas, inclusive nas poluídas águas da Baía de Guanabara.
A pesquisadora acredita no potencial desses animais como espécie bandeira, ou seja, um estandarte na preservação dos ambientes recifais. De acordo com a União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN), cerca de metade das espécies animais do globo corre risco de extinção nas próximas décadas, em consequência de perdas de habitat, mudanças climáticas e comércio ilegal. Essa velocidade de desaparecimento é maior que a capacidade de novas descobertas dos cientistas, principalmente nos ambientes marinhos, que ainda permanecem mais inexplorados do que o solo da lua.
Animais fascinantes
Cavalos-marinhos são pequenos, envergonhados e difíceis de serem achados até por mergulhadores experientes. São famosos por sua cabeça parecida com a de um cavalo, cauda preênsil semelhante à do macaco e olhos que se movem de forma independente, como os do camaleão. Mas poucas pessoas sabem que ele é um peixe sem escamas e com placas ósseas externas, pertencente à família Syngnathidae, a qual inclui ainda os peixes-cachimbo, que são pouco conhecidos do público e que também habitam as águas brasileiras.
Outra peculiaridade muito divulgada é a gravidez masculina. Os singnatídeos machos (cavalos-marinhos e peixes-cachimbo) possuem uma bolsa incubadora para receber os ovos da fêmea, os quais serão fertilizados e nutridos até o nascimento. Algumas espécies chegam a abrigar até 2000 embriões de uma vez. No final da gestação, o pai inicia movimentos de contração repetitivos, para poder liberar os pequenos filhotes para a água. Daí em diante, a ninhada não receberá qualquer outro cuidado paterno, ficando à mercê de predadores e do ambiente. Estima-se que apenas 10% deles cheguem à idade adulta
Durante muito tempo, acreditou-se que todos os cavalos-marinhos e seus parentes eram monogâmicos, ou seja, formavam casais para toda a vida. Hoje, já sabemos que apenas algumas espécies se comportam de tal forma. Um exemplo das complexas relações que podem ocorrer nesse grupo de peixes está no estudo sobre o peixe-cachimbo do Golfo do México (Syngnathus scovelli), publicado na Revista Nature, em 2010. Os pesquisadores Kimberly Paczolt e Adam Jones mostraram que as fêmeas procuram os machos para acasalar, sendo que várias delas podem depositar seus ovos no mesmo indivíduo. Ele, então, controla a quantidade de nutrientes ofertados à prole na sua bolsa, favorecendo os ovos que vieram de fêmeas que considerou mais atraentes.
Ameaças veladas
Mesmo com dezenas de espécies descritas mundialmente, a falta de dados gera inúmeras confusões e lacunas nas classificações. No Brasil, já foram relatadas 3 espécies de cavalos-marinhos, com inúmeros questionamentos em relação às características taxonômicas de cada uma delas. Certo é que, desde 1996, quase todas estão listadas como “vulneráveis” pela IUCN.
Em mais de 80 países, incontáveis cavalos-marinhos e outros singnatídeos são recolhidos do seu habitat, todos os dias, tanto para abastecer o mercado de aquarismo, como para a confecção de medicamentos “populares” sem comprovação científica. Estatísticas das Filipinas, desde 1987, apontam a exportação anual de mais de um milhão de animais secos, tendo a China como seu maior comprador. O grande sucesso econômico chinês criou uma população rica e sedenta por produtos supostamente medicinais, que, em 1992, consumiu mais de 20 toneladas de cavalos-marinhos, segundo os poucos registros governamentais existentes sobre o assunto naquele país. Em alguns lugares, os animais são cruelmente mortos por estrangulamento, com pequenos barbantes, para que suas caudas fiquem esticadas, o que melhora o preço da unidade vendida.
Em 2019, um estudo promovido pela Universidade da Colúmbia Britânica descreveu uma complexa rede de pesca e exportação ilegal desses animais. Registros realizados no grande mercado de Hong Kong apontaram que 95% dos cavalos-marinhos secos, que estavam sendo comercializados, tinham como procedência países que possuíam leis proibitivas de exportação, incluindo Tailândia, Filipinas, Indonésia, Índia, Malásia e Vietnã.
Desde o ano de 2000, o Brasil está entre os 10 maiores fornecedores de peixes ornamentais do mundo e entre os 4 maiores exportadores de cavalos-marinhos. Considerando-se que não se pode importar tais animais no país e não existindo criadores nacionais registrados junto ao IBAMA, todo cavalo-marinho comercializado em território nacional é fruto de coleta, o que é ilegal.
Ambientalistas e pesquisadores alertam também para a ameaça da pesca de arrasto, feita por barcos que navegam rebocando redes com placas de madeira e ferro em suas extremidades, as quais são arrastadas, rente ao leito marinho, revirando e devastando tudo que encontram pela frente.
O grande objetivo dessas redes é a pesca do camarão. Elas são responsáveis pela coleta acidental e morte de uma grande variedade de outros animais que serão descartados por não terem valor comercial ou pela proibição da sua pesca. Segundo a ONU, uma média de 27 toneladas de animais são mortos e descartados, mundialmente, a cada ano, em decorrência da pesca de arrasto. Outras pesquisas apontam que essa pesca indiscriminada captura pelo menos 37 milhões de cavalos-marinhos a cada ano em todo o globo.
Durante as suas viagens e pesquisas de campo, Suzana frequentemente se depara com a coleta clandestina e a venda ilegal de cavalos-marinhos (vivos ou mortos), ocorrendo em feiras, lojas de artigos religiosos e pet shops. Outros fatores que preocupa a pesquisadora é a pesca predatória e a destruição de habitats dos singnatídeos, por meio do turismo desordenado, da intensa urbanização e da modificação de áreas costeiras, os quais promovem a degradação de manguezais, estuários, ambientes recifais e a poluição de praias e rios.
“Tenho quase certeza de que existem espécies de cavalos-marinhos e peixe-cachimbo que ainda não foram classificadas. Mas, se essas ameaças continuarem crescendo, podemos perder espécies antes mesmo de conhecê-las”, conclui Suzana.
Referências e citações:
- Sarah J. Foster, Ting-Chun Kuo, Anita Kar Yan Wan, Amanda C.J. Vincent. Global seahorse trade defies export bans under CITES action and national legislation. Marine Policy, 2019; 103: 33 DOI: 10.1016/j.marpol.2019.01.014
- Kimberly A. Paczolt & Adam G. Jones. Post-copulatory sexual selection and sexual conflict in the evolution of male pregnancy. Nature, 2010; 464 (7287): 401 DOI: 10.1038/nature08861
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Linda foto.
Belíssima reportagem