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Uma possibilidade de avanço: O novo Tratado do Alto Mar

O 1º passo para o sucesso da conservação do oceano é estarmos cientes dos processos de negociação que pretendem regular o uso dessas áreas e de como podemos influenciar e participar nas tomadas de decisões

15 de fevereiro de 2024
  • Rede Ressoa

    A Rede Ressoa é um projeto colaborativo de divulgação científica e comunicação sobre o Oceano.

  • Maila Guilhon

    Doutora Oceanografia pelo IO-USP. Membra do Comitê Executivo da Deep-Ocean Stewardship Initiative e membra da Liga das Mulheres pelo Oceano.

  • Barbara Mourão Sachett

    Advogada e professora universitária. Doutora em Direito Internacional e Comparado pela Faculdade de Direito da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.

  • Mariana Caldeira

    Mestre em Biologia Marinha pela Universidade de Aveiro, Portugal. Membra da Deep-Ocean Stedwardship Initiative (DOSI) e membra da Liga das Mulheres pelo Oceano.

Áreas além da jurisdição nacional (AAJN) representam mais de 60% do nosso oceano, abrigando inúmeras espécies e ecossistemas marinhos que, em sua maioria, são desconhecidos. Mas mesmo sem sabermos o que lá existe, o uso dessas áreas é intenso e ameaça sua biodiversidade e ecossistemas. Tais áreas são de grande relevância para atividades econômicas como a pesca, navegação, instalação de cabos marinhos subterrâneos e transporte de cargas, entre outras. E a cada ano, o desenvolvimento de novas indústrias, como a de mineração de mar profundo, acelera a busca por recursos nessas áreas.

Apesar de existirem organizações responsáveis pela gestão de tais atividades, a governança de AAJN é extremamente fragmentada, impondo desafios para a gestão da biodiversidade marinha. Isso significa que, apesar de existirem organizações para as atividades ali exercidas, estas não são suficientes para gerir a área oceânica como um todo, resultando em falta de regulamentação para certas regiões, atividades e recursos marinhos. Um exemplo disso é em relação às Organizações Regionais para o Ordenamento Pesqueiro, responsável por regulamentar a pesca em AANJ, mas que não abarca todos os tipos de pesca. Este exemplo mostra que apesar de existir regulamentação para as atividades, esta não é suficiente para regulamentar de forma compreensiva as atividades ali exercidas, nem englobar a proteção e manejo de toda a biodiversidade existente.

À medida que a tecnologia e a pesquisa avançam, novas e impressionantes formas de vida são descobertas no fundo do mar. À esquerda: Polvo com aparência de fantasma, encontrado a 4.290 metros de profundidade. À direita: Hidróide solitário, encontrado a 2.563 metros de profundidade. NOAA Ocean Exploration 2021. Fonte: NOAA

Criada em 1982, a Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar (CNUDM) é o instrumento jurídico mais importante para estabelecer os limites jurisdicionais no oceano (de forma simples, até onde vai a autoridade legal de cada país em direção ao oceano, que equivale, geralmente, à extensão da plataforma continental), e é responsável por fornecer a base para ordenamento e regulação de atividades em AANJ. Apesar de sua relevância, a CNUDM apresenta limitações no que tange à governança do oceano, especialmente no que se trata da proteção da biodiversidade marinha em áreas além da jurisdição nacional (AANJ). Assim, reconhecendo a necessidade de haver uma governança do oceano mais coerente e integrada, foi recomendada a criação de um instrumento internacional juridicamente vinculativo – em outras palavras, um instrumento ou acordo que tem a força de uma lei, impondo sanções àqueles que não a cumprirem –, com o objetivo de promover a conservação e a gestão sustentável da Biodiversidade Marinha em Áreas além da Jurisdição Nacional (BBNJ, da sigla em inglês) – o Acordo BBNJ. Nesse sentido, a Assembleia Geral das Nações Unidas decidiu por convocar conferências intergovernamentais com países para formalmente negociarem o novo instrumento. As negociações formais iniciaram-se em 4 de setembro de 2018 e apenas em 4 de março de 2023 seu texto final foi finalmente aprovado.

O Acordo BBNJ e sua importância

O Acordo tem o objetivo de promover a conservação e uso sustentável da diversidade biológica existente em AANJ através da implementação efetiva das provisões da CNUDM, além de promover através de mecanismos e normas, a cooperação e coordenação entre países. O Acordo BBNJ é composto por um pacote de quatro temas (além dos assuntos transversais e institucionais): capacitação e transferência de tecnologias marinhas; recursos genéticos marinhos (RGMs), incluindo o acesso e a repartição de benefícios; medidas de manejo baseadas em áreas, incluindo áreas marinhas protegidas e a Avaliação de Impacto Ambiental.

Em relação à capacitação e transferência de tecnologias marinhas, o Acordo BBNJ prevê o financiamento aos países em desenvolvimento com a finalidade de aumentar sua capacidade científica marinha, e promover a transferência de tecnologia marinha em bases mais equitativas. 

Já sobre recursos genéticos marinhos (considerado o material genético de qualquer ser vivo que tenha potencial de aplicação industrial para o desenvolvimento de novos medicamentos e cosméticos), o Acordo visa a equilibrar a liberdade de pesquisa científica marinha através, entre outros, do compartilhamento justo e equitativo dos benefícios dos RGMs encontrados em AANJ.;

O Acordo BBNJ prevê ainda a criação de áreas marinhas protegidas (AMPs) em alto mar, uma ferramenta importante para promover a conservação da biodiversidade marinha e manutenção da saúde e resiliência do oceano. Já a Avaliação de Impacto Ambiental visa mapear e avaliar a extensão e magnitude de impactos atrelados a atividades relacionadas ao ambiente marinho com o objetivo de auxiliar o processo de tomada de decisão relacionado à ocorrência de determinada atividade no meio marinho.

Uma das grandes novidades do acordo BBNJ é que ele busca garantir que a exploração de recursos encontrados em AANJ ocorra de forma mais equitativa entre os países desenvolvidos ou em desenvolvimento. Em outras palavras, países que possuem mais tecnologia e recursos para explorar áreas marinhas além de seus limites territoriais deverão, em contrapartida, compensar países que não possuem tais capacidades, seja através da transferência de conhecimento e tecnologia ou através da repartição de benefícios advindos de tais recursos. Além disso, outro avanço importante do Acordo refere-se à consulta de comunidades nativas ou indígenas, como parte do processo de criação de AMPs em AANJ.

Os próximos passos para implementação do acordo

Após a adoção formal do Acordo BBNJ, há ainda um longo caminho a ser percorrido. As assinaturas por parte dos países apenas representam uma intenção de ratificação, além de certificar um comprometimento para não transpor os objetivos do Acordo. Após a assinatura, os Estados ainda precisam passar pelo processo de ratificação doméstica, representando de fato, um comprometimento com o Acordo. O Brasil assinou o Acordo em setembro de 2023, afirmando sua intenção de alinhar medidas com os objetivos do novo tratado.

O Acordo somente entrará em vigor após a ratificação por 60 membros, o que pode levar um tempo, apesar da urgência em colmatar os problemas que assolam e impactam o nosso oceano. Um ponto importante para se observar é que a efetividade do novo tratado, em termos de conservação e uso sustentável, bem como o seu objetivo de ser equitativo, dependerá de diversos fatores, incluindo a criação e operacionalização de mecanismos institucionais, a fim de alinhar as expectativas e realidade para o contexto do Acordo.

Enquanto o Acordo BBNJ representa uma oportunidade decisiva para a conservação e uso sustentável dos recursos marinhos em águas internacionais, outra negociação em âmbito internacional pode colocar em risco os objetivos do Acordo. Trata-se da negociação para estabelecer um marco regulatório para a mineração – em escala industrial – em águas internacionais. Uma primeira versão do texto entrou em discussão em 2016 e até hoje não há consenso entre os países para sua finalização. Uma das razões para tal é que a atividade de mineração em águas internacionais – prevista para ocorrer em águas há milhares de metros de profundidade –, possui potencial altamente impactante. Aliado a isso, a ciência atualmente conhece muito pouco sobre os organismos e ecossistemas que ocorrem em águas profundas e, portanto, o estabelecimento de uma atividade altamente impactante em mar profundo poderia acarretar sérios danos aos organismos ainda desconhecidos por nós.

Entre ganhos e possíveis perdas, cabe à sociedade civil global, mas neste caso, a brasileira, manter-se à par do andamento de tais negociações e garantir que nossas opiniões e vozes também possuam lugar à mesa de negociações. Para tal, é importante monitorar o posicionamento e contribuições não somente do Brasil, mas também de outros países que têm em suas mãos o poder de decidir o futuro de nosso oceano. O primeiro passo é estarmos cientes de tais processos e como podemos influenciar e participar nas tomadas de decisões.

Para saber mais

Harden-Davies, H., Lopes, V. F., Coelho, L. F., Nelson, G., Veiga, J. S., Talma, S., & Vierros, M. (2024). First to finish, what comes next? Putting Capacity Building and the Transfer of Marine Technology under the BBNJ Agreement into practice. npj Ocean Sustainability, 3(1), 3.

Tiller, R., & Mendenhall, E. (2023). And so it begins–The adoption of the ‘Biodiversity Beyond National Jurisdiction’treaty. Marine Policy, 157, 105836.Tessnow-von Wysocki, I., & Vadrot, A. B. (2022). Governing a divided ocean: the transformative power of ecological connectivity in the BBNJ negotiations. Politics and Governance, 10(3), 14-28.

As opiniões e informações publicadas nas seções de colunas e análises são de responsabilidade de seus autores e não necessariamente representam a opinião do site ((o))eco. Buscamos nestes espaços garantir um debate diverso e frutífero sobre conservação ambiental.

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