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Onças, caça e outros mal-entendidos

Faço essas ponderações, a propósito do que li no artigo “Açougue no mato” , da jornalista Silvia Pilz, publicado recentemente no semanário eletrônico O Eco

Felipe A. P. L. Costa ·
19 de dezembro de 2005 · 19 anos atrás

O português é um idioma vivo, sujeito a mudanças. Além de palavras novas, no entanto, estamos freqüentemente redefinindo ou ampliando o significado de velhas expressões. Por conta disso, é possível que duas ou mais pessoas nem sempre concordem com a interpretação dada a todos os termos contidos em um mesmo texto. Assim, embora as palavras mato (ou mata) e floresta sejam muitas vezes utilizadas como sinônimos, como ocorre nas expressões mata atlântica e floresta atlântica, há entre elas diferenças significativas que deveriam ser observadas, principalmente por aqueles profissionais que vivem do que escrevem.

No caso do português falado em terras brasileiras, a palavra mato é quase sempre utilizada em contextos depreciativos, servindo para caracterizar a (indesejável) vegetação miúda (e.g., ervas, trepadeiras, arbustos anuais) que cresce em áreas de cultivo, terrenos baldios ou quintais. É esse o significado embutido em expressões como “cortar o mato e preparar o terreno” ou “limpar o mato que cresce ao longo da estrada”. Por sua vez, a variante mata é mais utilizada em alusão a remanescentes florestais ou a trechos de floresta em estágios iniciais de sucessão. É com esse significado que devemos entender expressões como “as águas da represa inundarão a mata de araucária” ou “as matas ciliares que acompanham o curso d’água”.

Faço essas ponderações, a propósito do que li no artigo “Açougue no mato” , da jornalista Silvia Pilz, publicado recentemente no semanário eletrônico O Eco. Além de mato, a autora também emprega mal outras palavras, como exótico e bicho. A palavra exótico, por exemplo, serviria mais apropriadamente para expressar o contrário de nativo. Nesse sentido, plantas e animais são chamados de exóticos quando a espécie a que pertencem não é nativa do lugar onde se encontram; ao contrário, plantas e animais próprios de uma região são referidos como espécies nativas. As onças mencionadas no artigo da jornalista deveriam, portanto, ser tratadas como animais nativos das florestas acreanas, e não como animais exóticos.

Os mal-entendidos mais sérios, porém, não dizem respeito a problemas de terminologia. A começar pela idéia (francamente absurda) de que onças famintas vagam livremente pelo interior do país… Não custa enfatizar: predadores de grande porte, como o gavião-real e a jibóia, além das próprias onças, são animais naturalmente raros, difíceis de encontrar. Esses predadores ocupam o topo da cadeia alimentar e a rarefação numérica é, em certo sentido, o outro lado da moeda de quem ocupa essa posição. (Dizemos que um animal ocupa o topo da cadeia alimentar quando os indivíduos adultos da espécie estão livres da ação direta de outros predadores, ainda que continuem enfrentando outros inimigos naturais, como parasitas e patógenos). Trocando em miúdos: não há – nem nunca houve – onças perambulando pela vizinhança de cada propriedade rural instalada em território brasileiro. A noção de que o porte de arma representaria para a população rural um meio de auto-proteção é, portanto, um exagero, para não dizer um despropósito.

Um segundo mal-entendido presente no artigo é a idéia de que a caça de subsistência – o abate de animais selvagens para atender as demandas de consumo do caçador e seus familiares – seria um mal menor e inevitável. Com isso em mente, a articulista levanta o que para ela parecia ser então um problema: o que os caçadores fariam, caso o resultado do referendo do último dia 23 de outubro (o artigo apareceu uma semana antes em O Eco) implicasse na suspensão do comércio de armas de fogo e munição em todo o país?

Quando o assunto é a caça (esportiva ou de subsistência), os números e o tamanho dos problemas prosperam com facilidade e rapidez. A exemplo do que ocorre com o extrativismo – ver artigo “A insustentável leveza do extrativismo” –, a caça de subsistência praticada em terras brasileiras segue, em boa medida, um roteiro ficcional. No caso específico comentado pela articulista (a partir de matéria publicada no jornal carioca O Globo), caberia perguntar: será que a quantidade de animais selvagens abatidos anualmente no Acre (ou em qualquer outro estado) corresponderia de fato ao que é necessário para alimentar apenas os caçadores e seus familiares? Ou será que a quantidade abatida gera deliberadamente um certo excedente, a ponto de abastecer com regularidade mercados clandestinos em centros consumidores longe dali?

Deixando de lado as irregularidades, o assunto é por si só intrigante, tanto em termos ecológicos como antropológicos: por que a carnivoracidade é o hábito alimentar dominante entre os habitantes da floresta? Em meio a tamanha profusão de vida vegetal, por que a dieta dessas populações humanas é relativamente pobre em itens de origem vegetal? Ao invés de caçar, por que extrativistas e ribeirinhos, citados no artigo, não criam animais domésticos de pequeno porte (e.g., galináceos)? Por que essas e outras “populações tradicionais” não caçam com armas tradicionais, ao invés de usar armas de fogo? Ao que parece, a caça de subsistência tem levando o estoque de presas ao declínio. Nesse caso, do que então essas populações irão se alimentar, quando a caça se tornar uma prática por demais dispendiosa?

Por fim, cabe chamar a atenção para um terceiro e último mal-entendido: a menção ao caso do Rio Grande do Sul, único estado brasileiro onde a caça esportiva de animais selvagens nativos tem amparo legal, como exemplo a ser seguido pelos demais estados. Desnecessário repetir aqui a argumentação apresentada em outro lugar – ver artigo “Bangue-bangue gaúcho: agora também no Pantanal?” . Em todo caso, vale a pena enfatizar o seguinte: sai ano, entra ano, e a temporada de caça gaúcha é anunciada pela grande imprensa em tons de gestão ambiental exemplar; algo do tipo “os gaúchos caçam porque planejam, controlam e protegem”. Nada, porém, poderia estar mais longe da realidade. Em termos de proteção ambiental, por exemplo, o Rio Grande do Sul é um dos estados mais atrasados do país: com apenas 0,55% de sua área territorial protegida por reservas e parques federais e estaduais, ocupava até bem pouco tempo atrás apenas a vigésima-primeira posição no ranking verde do país (26 estados mais o Distrito Federal), sendo o último colocado entre os estados das regiões Sul e Sudeste. Ouço essa cantilena sobre caça em terras gaúchas desde os meus tempos de graduação, três décadas atrás. A velha ladainha de que as taxas cobradas pelas atividades de caça seriam revertidas para fins de proteção nunca deixou de ser exatamente o que é: lengalenga.

* Felipe Costa é biólogo, autor do livro “ Ecologia, evolução & o valor das pequenas coisas”, de 2003.

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