Bertolt Brecht
São Paulo.
No Metrô, Estação da Sé, principal encontro de cotovelos da cidade. O orientador tenta organizar as pessoas nas grades de ferro chumbadas no chão. Empurra, freia, contém os grupos nos currais que dão acesso aos vagões. É a única forma de impedir que, na parada dos trens, no afã de entrar, as pessoas se esmaguem. A porta se abre, entra uma leva, o curral esvazia, a corda sobe, os cotovelos voltam a se encontrar no apertado espaço entre as grades. Um curral não para gado, mas para gente. Um curral naturalizado, cotidiano, aceito. Suor, desconforto, ansiedade para entrar logo, trocar o aperto incerto da estação pelo aperto-deslocamento dentro do trem, este pelo menos tão seguro e certo quanto o rumo dos trilhos. Todo dia é assim. Vez ou outra, alguma confusão faz o aperto virar briga, o risco iminente de o desespero e o medo se espalharem. Uma tragédia engatilhada, esperando o estopim. Todo dia.
No ônibus que saiu do Terminal Parque Dom Pedro II, no Centro de São Paulo, rumo à Itaquera, na Zona Leste, mais aperto. A senhora não tem onde sentar. Leva sacolas pesadas. A senhora não tem onde ficar de pé. Um cotovelo na costela, um pé no chão tentando garantir o equilíbrio nas curvas. O rapaz mais próximo finge que dorme, boné afundado na cara. Cansaço coletivo. Entra mais gente. Um garoto senta na tampa do motor, do lado do motorista. É quente, tem um adesivo indicando o risco de se sentar ali. Não tem mais lugar no ônibus, o motorista deixa. Entra mais gente. A senhora se aperta mais. Encolhe o peito murcho. Respira agoniada. A senhora não cabe mais.
Na Avenida Rebouças, motoristas sentados no vazio da imensidão de carros cada vez maiores constrastam com trabalhadores-sardinhas enlatados nos ônibus. Todos democraticamente parados no trânsito. Nos carros, na maioria, só uma pessoa, um cidadão sozinho, cansado, sem contato com ninguém. Um celular, quem sabe. Uma acelerada. O ritmo que enjooa, acelera, para. Luz vermelha, luz branca. Fumaça. Buzina. Dentro dos coletivos, falta espaço para respirar. Chove e é ainda pior. Cheiro azedo. Acelera, para. Fumaça. Buzina.
No canto da avenida, o ciclista. O radialista boçal vocifera contra o absurdo de se andar de bicicleta em São Paulo. De se sonhar com outra cidade. O motorista está cansado. Ouve sem atenção. Boceja. Vê a bicicleta. Ou nem vê. Continua acelerando, desatento, apressado, estressado. Imprudente. Xinga alguém. Odeia um motoqueiro. Acelera. Toma uma fechada. Corta a frente de outra pessoa. Passa tirando fina do ciclista. E solta um palavrão. Cansado, chega em casa, toma uma bebida forte e vai dormir. Para repetir isso tudo no dia seguinte.
Medo
“O medo cega, disse a rapariga dos óculos escuros, São palavras certas, já éramos cegos no momento em que cegámos, o medo nos cegou, o medo nos fará continuar cegos (…) Então perguntou o velho da venda preta, Quantos cegos serão precisos para fazer uma cegueira. Ninguém lhe soube responder”.
José Saramago
As impressões acima são reais. Aconteceram e continuam acontecendo em São Paulo, a cidade supostamente mais rica do país. Rica se for para considerar o dinheiro que por aqui circula. Mas pobre se for para levar em conta a percepção dos seus cidadãos. A falta de. A ideia de reunir todas as impressões acentuando os absurdos rotineiros que se tornam invisíveis veio a partir de palavras do Mia Couto, o melhor escritor vivo de língua portuguesa do planeta. Culpa dele, que decidiu lançar um alerta sobre como a “banalização da injustiça” pode deixar “invisível a miséria material e moral”, durante aula inaugural na Escola de Comunicação e Artes, da Universidade Eduardo Mondlane, em Maputo, Moçambique.
A aula “Da cegueira colectiva à aprendizagem da insensibilidade”, na qual ele cita o poema acima de Brecht e faz referência ao Ensaio Sobre a Cegueira, de Saramago, de onde foi extraído o outro trecho compartilhado aqui, foi parcialmente reproduzida na última edição do jornal Brasil de Fato. Valendo a explicação de que chapa é o coletivo apinhado de gente que circula por Maputo, seguem alguns trechos do texto publicado pelo jornal e mais outros escolhidos para os leitores do Outras Vias. O original foi publicado na íntegra neste link:
“Todos os dias centenas de chapas de caixa aberta transitam por esta cidade que parece afastar-se do seu próprio lema “Maputo, cidade bela, próspera, limpa, segura e solidária”. Cada um destes “chapas” circula superlotado com dezenas de pessoas que se entrelaçam apinhadas num equilíbrio inseguro e frágil. Aquilo parece um meio de transporte. Mas não é. É um crime ambulante. É um atentado contra a dignidade, uma bomba relógio contra a vida humana. Em nenhum lado do mundo essa forma de transporte é aceitável. Quem se transporta assim são animais. Não são pessoas. Quem se transporta assim é gado. Para muitos de nós esse atentado contra o respeito e a dignidade passou a ser vulgar. Achamos que é um erro. Mas aceitamos que se trata de um mal necessário dada a falta de alternativas. De tanto convivermos com o intolerável, existe um risco: aos poucos aquilo que era errado acaba por ser “normal”. O que era uma resignação temporária passou a ser uma aceitação definitiva. Não tarda que digamos: “nós somos assim, esta é a maneira moçambicana.” Desse modo nos aceitamos pequenos, incapazes e pouco dignos de ser respeitados.
O caso dos chapas é apenas um exemplo, uma ilustração de um processo que eu chamaria de “construção do inevitável”. E é simples: aos poucos, os passageiros do “chapa” deixam de ser visíveis. Na nossa sociedade essas pessoas já contavam pouco. É gente pobre, gente sem rosto, gente que não aparece na TV nem no jornal. Essa gente surgirá no jornal quando o “chapa” se acidentar. Mas aparecerá sem voz e sem nome. Um simples número para se contabilizar feridos e mortos. Em contrapartida, outras coisas ganharam brilho na nossa sociedade. Por exemplo, adquiriram toda a visibilidade os carros de luxo de uma pequena minoria. Deixamos de ver os “chapas” mortais, mas estamos atentos aos sinais de ostentação dessa minoria.
O assunto que quero abordar convosco hoje é esta operação que banaliza a injustiça e torna invisível a miséria material e moral. Esta vulgarização faz perpetuar a pobreza e faz paralisar a história. Saímos todos os dias para a rua para produzir riqueza mas regressamos mais pobres, mais exaustos, sem brilho, nem esperança. De tanto sermos banalizados pelos outros, acabamos banalizando a nossa própria vida.
Estamos perante uma espécie de formatação mental e moral. A mensagem é a seguinte: querem dizer-nos as nossas doenças sociais são incuráveis. Resta-nos viver de remendos e expedientes.
Visitou-me um escritor amigo da Nigéria. Ele percorreu as cidades de Moçambique e ligou-me de Pemba. A primeira coisa que ele disse: Estou maravilhado! Vocês têm estações de gasolina a funcionar! O seu espanto espantou-me a mim. Principalmente porque esse assombro provinha de um cidadão da Nigéria, o maior produtor de petróleo de África. Só depois entendi. O que passa na Nigéria – depois de 50 anos de exportação de petróleo – é que as cidades nigerianas não possuem aquilo que para nós é comum: estações de gasolina vendendo gasolina. As bombas de combustível naquele país estão quase todas fechadas e a gasolina é vendida em garrafas e jerricans nos passeios públicos. Para alguns esse é um processo natural em África. Mas não é. O que sucedeu foi o seguinte: o governo subsidiou os preços dos combustíveis mas não foram os mais desfavorecidos que lucraram mais. Foi uma parte da elite nigeriana que se apoderou dos circuitos formais e desviou para os mecanismos informais a distribuição e venda do combustível. Uma vez mais, os ricos tornaram-se ainda mais ricos. Mas não é a questão politica que eu quero trazer aqui. A questão é que, para o cidadão da Nigéria, aquele sistema de venda, à maneira do dumba-nengue, se tornou normal. Ver bombas de gasolina a funcionar numa nação bem mais pobre como é Moçambique foi, para ele, um motivo de surpresa. Eu vejo muito africanos proclamarem que os mercados informais são a única maneira que África sabe fazer comércio. Que apenas nas barracas sabemos comer e beber. É mentira. A dumba-nenguização da economia é uma estratégia escolhida para fugir dos impostos, para escapar das obrigações para com o património público. Quando o meu amigo nigeriano voltou a Maputo ele disse-me o seguinte:
– A minha surpresa não foi tanto o que eu vi em Moçambique. Foi sim o que já não sabia ver na Nigéria.
(…)
Mas o nosso futuro como nação não se constrói senão com ousadia, com vitalidade e um infinito respeito pelos outros.
Ficamos muitas vezes à espera, ficamos à espera que o governo faça. Temos medo de tomar iniciativa. Achamos arriscado. Não agimos porque dizemos que faltam recursos, falta orçamento, falta autorização do chefe. Mas existem lições que parecendo pequenas podem tocar alguém para toda a vida.
Fazemos o que fazemos não porque sejam grandiosas iniciativas mas porque necessitamos mudar as coisas e melhorar o mundo. Fazemos o que fazemos porque, como diz o poema, nós queremos ser donos do nosso destino e capitães da nossa alma colectiva.”
Do Mia Couto, vale ouvir também suas palavras sobre o medo com o qual igualmente nos acostumamos. E ler todas as suas obras.
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