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Terras Indígenas: faltam ferramentas para a preservação

Boa parte das áreas preservadas da Amazônia está dentro de Terras Indígenas, onde não há bons mecanismos para reprimir crimes ambientais

30 de julho de 2013 · 11 anos atrás
  • Gustavo Geiser

    Engenheiro agrônomo com mestrado em Agroecossistemas pela Universidade Federal de Santa Catarina, trabalha na Polícia Federal...

Terra Indígenas Sete de Setembro, Zoró e Reserva Roosevelt.

Como perito da Polícia Federal, tive a oportunidade, há pouco tempo, de visitar uma região que ainda não conhecia, no sul do estado de Rondônia. É talvez a região do norte com menos “cara” de norte, já que predomina a colonização de imigrantes do sul e sudeste, e é raro encontrar quem não seja migrante, ao menos por onde passei. Não posso deixar de elogiar características da região como as cidades limpas e o setor agropecuário organizado e produtivo. Afinal, é importante que as áreas convertidas de mata para agropecuária produzam o máximo e da melhor maneira possíveis. Por outro lado, Rondônia é o estado do norte com menos cobertura vegetal nativa. Quase tudo o que sobrou está no interior das Unidades de Conservação e de Terras Indígenas. Ou seja, mais do que nunca, é importante garantir que essas áreas sejam preservadas.

Próximo daqui existem três Terras Indígenas. Uma delas é a Sete de Setembro, da etnia Suruí, bastante preservada, conhecida pelos esforços de lideranças Suruí em buscar apoio para a preservação e até um projeto pioneiro de venda de créditos de carbono. Outra é a Zoró, também em razoável estado de preservação e pouco noticiada. A terceira é a Reserva Roosevelt, dos Cinta-Larga, tristemente famosa pelos garimpos ilegais de diamantes. É de conhecimento geral que índios controlam a entrada e saída de garimpeiros, cobram para permitir o garimpo e defendem essa fonte de renda a qualquer custo. Não faltam relatos de assassinatos e torturas no interior dessa área, em especial o assassinato (com tortura) de 29 garimpeiros, praticado pelos indígenas, que foi notícia nacional em 2004.

Em um esforço para garantir a preservação de sua área, representantes dos Suruí procuraram a Polícia Federal para relatar um caso de exploração ilegal de madeira na Terra Indígena Sete de Setembro. O triste foi descobrir que, assim como ocorre com os Cinta-Larga, os vendedores de madeira também eram Suruí, de uma pequena aldeia dissidente, que se formou próximo à estrada que margeia a Terra Indígena.

Na aldeia que visitei, havia plantações de café conduzidas pelos índios que, junto com a coleta e venda de castanha, garantem alguma renda monetária, lembrando que praticamente não existem mais etnias que vivem totalmente à margem de nossa sociedade de consumo. Mas aqueles da outra aldeia aparentemente queriam mais, coisa normal do ser humano, e optaram por vender madeira. Agiram como com frequência o fazem as etnias que possuem grandes reservas de madeira e estão próximas a polos madeireiros: sem se preocupar com a lei. Eles sabem que a coisa mais rara é um índio ser preso.

“O triste foi descobrir que, assim como ocorre com os Cinta-Larga, os vendedores de madeira também eram Suruí, de uma pequena aldeia dissidente”

Esse tipo de situação faz pensar sobre o problema de gestão dos recursos naturais em Terras Indígenas. No caso dos Suruí, com o agravante de uma possível quebra de contrato de venda de carbono. É possível imaginar o cumprimento de um contrato de créditos de carbono se parte dos detentores da área preferem vender madeira? Não sei não, ainda mais lembrando que é raro a “chefia” indígena ser um cargo estável e com poderes sobre os demais, onde o líder tem o poder de representar a tribo e firmar um compromisso, contando que o grupo acate o que ele decidiu. Os caciques mudam com facilidade, e os chefes de uma aldeia não tem ingerência sobre as outras. Não consigo entender como um contrato de venda de carbono pode ser firmado nessas condições.

No caso dos Cinta-Larga é ainda pior, já que além da venda de madeira há a mineração, que principalmente quando feita com métodos artesanais, e sem controle, tem um impacto ambiental tremendo. Para piorar, como já ficou claro no problema com os Mundurukus, é uma operação de guerra para que a Polícia ou os órgãos ambientais possam entrar em uma Terra Indígena e realizar seu trabalho. A razão da resistência costuma ser simples: extinguir as atividades ilícitas significa uma redução brutal de renda para os índios.

Nesse ponto, há quem possa perguntar: e a FUNAI, não tem esse papel?

Não, o papel da FUNAI não é servir de “fiscal”, mas sim interlocutor dos interesses dos índios. Nas Reservas Extrativistas, o ICMBio é responsável pelas autuações, enquanto a FUNAI não tem esse poder nas Terras Indígenas. Não pode multar ou apreender um caminhão de madeira. Além disso, ela não possui autoridade sobre os índios, não pode dizer a eles o que devem ou não fazer, no máximo persuadir…

Preocupa-me constatar que na prática não há uma política de gestão das Terras Indígenas sob o ponto de vista de que são unidades de conservação. Na falta de um órgão que tenha o dever, ou condições, de fiscalizar ilícitos ambientais no interior destas reservas, e que responda por omissão caso não o faça, dependemos da possibilidade de haver lideranças indígenas comprometidas com a causa ambiental. Ainda que sem poderes legais que as ampare, podem fazer o papel de fiscal, como é o caso de Almir Suruí.

“Não, o papel da FUNAI não é servir de “fiscal”, mas sim interlocutor dos interesses dos índios. Nas Reservas Extrativistas, o ICMBio é responsável pelas autuações, enquanto a FUNAI não tem esse poder nas Terras Indígenas”

Porém, na maioria das vezes isso não ocorre, e não podemos também colocar como obrigação algo que as lideranças indígenas não podem nem mesmo legalmente assumir. Além disso, as etnias indígenas nem sempre compreendem e concordam com nossas regras. Cada qual possui cultura própria, que pode facilitar ou não a preservação ambiental. Em alguns casos, as Terras Indígenas já não são cobertas por vegetação nativa, ou são tão pequenas que acabam integralmente alteradas para atividades agrícolas, como boa parte das reservas no sul e sudeste do país, mas também em alguns casos no Centro-Oeste. Entretanto, no norte muitas das principais Terras Indígenas são cobertas por mata nativa preservada.

Enfim, ao estudar os mapas, me preocupo. Boa parte das principais áreas públicas preservadas são Terras Indígenas, que, como vimos, não possuem um órgão competente e apto a fiscalizar e reprimir ilícitos ambientais. Estão cheias de problemas sem solução, vide as constantes tentativas de se fechar os garimpos em terras indígenas, todas sem sucesso. Sequer a polícia tem condição de adentrá-las para reprimir crimes sem que se organize uma verdadeira operação de guerra, pois há sempre o risco de ser atacado pelos índios. Está na hora de rever essas regras. Pressupor que uma unidade de conservação deva ser preservada mesmo com os órgãos responsáveis proibidos de entrar na área ou de punir os infratores é no mínimo um contrassenso.

Não conheço solução pronta para o problema, mas é bom pensarmos, pois, como já disse, os indígenas são os guardiões de boa parte das florestas do norte do país, e a pressão por obter renda através da exploração dos seus recursos naturais é constante e não vai deixar de existir.

A princípio, era isso que eu queria contar. Entretanto, senti um mal-estar ao terminar de escrever sobre a minha experiência recente trabalhando como policial nas Terras Indígenas citadas. Algo me incomodou. É que se há motivos para se criticar os índios, sobram motivos para se criticar os seus vizinhos não índios. Continuo com essa reflexão na segunda parte dessa coluna.

 

 

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