Manaus, AM — Ao lado de impressionantes geoglifos, índios que viveram há centenas ou milhares de anos onde hoje é o estado do Acre deixaram inúmeras outras marcas, bem mais sutis. Elas precisaram de olhos e instrumentos de cientistas para serem notadas. Esses registros estão ajudando arqueólogos e outros pesquisadores a explicar mudanças ocorridas na floresta amazônica de 6 mil anos atrás até a chegada dos primeiros europeus.
A análise de vestígios fossilizados de plantas, restos de carvão e levantamentos florísticos em áreas vizinhas aos geoglifos demonstrou que, além de construir esses misteriosos monumentos (talvez usados em rituais religiosos), os antigos índios enriqueceram a floresta com espécies úteis. E provocaram bem menos impactos sobre a natureza do que acreditam outros estudiosos. A pesquisa foi publicada nesta segunda-feira na revista Proceedings of the National Academy of Sciences (PNAS).
Conforme explica a autora principal do artigo, a arqueóloga inglesa Jennifer Watling, pesquisadora da Universidade de São Paulo (USP), antes do colapso provocado pela chegada dos europeus, os índios abriam clareiras para viver ou plantar, que depois de abandonadas se regeneravam. Às vezes, podia incrementar um pouco mais a floresta. “Eles favoreceram várias plantas econômicas, úteis no passado e mesmo hoje em dia”, conta a arqueóloga. “A gente viu que eles favoreceram o crescimento de palmeiras e outras espécies, como a castanha-do-pará, ao longo de 3 mil anos”, completa.
Vestígios de carvão sugerem que mudanças na floresta começaram a ser feitas com mais intensidade pelo homem há cerca de 4 mil anos, quando o uso do fogo se tornou mais comum. Antes disso, num período que retrocede 6 mil anos, as alterações humanas ainda eram muito pequenas. Há sinais de populações associadas aos geoglifos e essas mudanças na floresta até pelo menos a época da chegada dos europeus ao continente americano.
Floresta alterada
Estudos em outras regiões da Amazônia também tentam descobrir se a floresta encontrada pelos descobridores era diferente da planejada pela natureza. “De fato eles (os índios) cultivavam, manejavam. Mas a grande discussão é saber se os efeitos disso são vistos até hoje”, afirma a bióloga Carolina Levis, do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), que estuda alterações deixadas por índios na composição da floresta em uma área próxima a Manaus.
A concentração de espécies usadas na alimentação, construção de casas, remédios ou veneno, podem indicar mudanças na natureza provocadas pelas antigas populações amazônicas, afirma a bióloga. A castanheira é um exemplo citado por ela. A árvore é encontrada em quase toda a Amazônia, associada à ocupação humana. Estudos genéticos indicam que a dispersão da espécie foi rápida, sinal de que pode ter sido espalhada pelo homem. Além disso, eles precisam de clareiras para crescer.
Mas pesquisadores ainda buscam provas mais robustas de que a ocorrência de espécies importantes é mais do que um capricho da natureza e se deve, pelo menos em parte, à ação voluntária do homem. O artigo publicado esta semana reforça a tese de que antigos índios deixaram uma rica herança plantada na floresta. No Acre, embora as palmeiras dos povos pré-colombianos tenham desaparecido com o tempo, outras espécies de árvores, mais resistentes, ainda podem ser encontradas na mata.
“Existem evidências (de alterações provocadas pelos índios) em um pedaço de floresta que até agora não foi tocada por práticas modernas, que fica ao lado de um geoglifo”, destaca Jennifer Watling. “A gente fez um inventário botânico e vimos que lá tem várias espécies úteis. Essa evidência é grande para sugerir que as palmeiras talvez declinaram, mas a floresta que ficou lá até hoje em dia tem traços de manejo prévio”, completa.
O artigo publicado esta semana traz também uma contribuição a outra controvérsia que envolve o impacto da agricultura dos antigos índios sobre a floresta. Há quem diga em vez de serem plantadores eles eram destruidores. Segundo essa hipótese, o colapso dos povos pré-colombianos permitiu uma grande e extensa regeneração da floresta. O carbono sequestrado pelo crescimento das árvores teria sido suficiente para provocar uma pequena era glacial no planeta nos séculos seguintes.
Os estudos de Jennifer Watling indicam que não. Mesmo que em outras áreas da Amazônia o desmatamento tenha sido intenso, o sistema adotado na floresta acreana oferecia menos impacto. “Os índios não mantinham o espaço aberto por muito tempo, eram espaços temporários que eles abriam para viver ou para a agricultura, ou para o extrativismo”, conta. “Eles formaram uma espécie de mosaico, entre áreas manejadas e áreas que eles não mexiam”, completa.
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Muito interessante. Mas, este como tantos outros estudos sobre o mesmo tema, não prova que esses povos fizeram “desenvolvimento sustentável” nem que eles não iniciaram o processo de destruição da Amazônia. Manipularam a diversidade biológica em beneficio próprio tal como nos fazemos, lamentavelmente com muita mais eficiência, na atualidade.
Artigos sobre "história ambiental" são sempre bem vindos, ajudam a ilustrar a dinâmica das alterações no ambiente, pois o que parece "natural" hoje pode não ter sido assim no passado, tampouco permanecer assim no futuro.