A epidemia de febre amarela não ameaça apenas os humanos. Populações inteiras de primatas já foram dizimadas por surtos da doença ao longo da história. A atual epidemia, que acomete as zonas rurais de Minas Gerais e Espírito Santo já matou quase 100 macacos, a grande maioria bugios (Alouatta). O município de Caratinga (MG), onde fica localizada a Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPN) Feliciano Abdala, lar da população de muriquis-do-norte mais estudada do país, está no epicentro do atual surto de febre amarela. Especialistas temem que a doença atinja a população já ameaçada de extinção.
A preocupação não é infundada: primatas são muito vulneráveis ao contágio da doença. Se a taxa de mortalidade em humanos chega a 50% em infectados não tratados, em primatas ela ultrapassa 90%, o que torna os animais indicativos perfeitos de que a região está sendo atingida pela epidemia.
A febre amarela é uma doença infecciosa febril aguda, causada por um vírus e transmitida unicamente por mosquito. A contaminação se dá quando uma pessoa (ou macaco) é contaminada pelo vírus e em seguida mordida por um mosquito, que passará a ser o transmissor da doença. Na região rural, o transmissor normalmente é o mosquito Haemagogus ou Sabethes. Nas cidades, o vetor é o famoso Aedes aegypti. Desde 1942 não é registrado a ocorrência de febre amarela urbana no país.
A silvestre, que ocorre em regiões rurais ou de mata, nunca deixou de ocorrer. O último grande surto, em 2009, causou a morte de mais de 2 mil bugios no Rio Grande do Sul, falecidos ao contrair a febre ou mortos. Por ignorância, é comum primatas serem abatidos em surtos de febre amarela, acusados de serem os causadores da doença. Não são.
“Os primatas são os nossos sentinelas, eles que estão indicando que a doença está ali e que pode atingir os humanos. Se pensar direito, os macacos mal servem de reservatório [do vírus] porque acabam morrendo muito rápido. Os humanos, por terem mais resistência, é que vão permitindo que o mosquito que os pica possa transmitir o vírus para outra pessoa”, explica o primatólogo Fabiano Rodrigues de Melo, professor da Universidade Federal de Goiás e um dos maiores especialistas do país em Muriquis.
O vírus, letal para os primatas, já causou a extinção de populações inteiras ao longo da história. Segundo Melo, já foi verificada a existência de mata fechada sem nenhum primata para contar a história e sem sinal de que a extinção local foi causada pela caça. A nova epidemia, que aparentemente ainda não atingiu a população de Muriquis, preocupa os especialistas. Uma mortandade em regiões como no leste de Minas Gerais e na Serra do Espírito Santo, onde atualmente há casos registrados de febre amarela, poderá colocar em risco a preservação da espécie como um todo, que sem a epidemia já é considerada criticamente ameaçada de extinção. Existem menos de mil muriquis-do-norte soltos na natureza.
Uma das alternativas para proteger os primatas, principalmente os muito ameaçados, seria a vacinação dessa população. Como fazer e quanto custa uma operação de vacinação de primatas ainda precisa ser estudado, mas a discussão será levada para o XVII Congresso Brasileiro de Primatologia, que será realizada em agosto, em Goiás. Ação já usada na África em gorilas, a vacinação de populações de primatas livres na natureza pode ser uma boa alternativa para evitar a perda desses animais.
“Diante das ameaças, diante de populações tão pequenas, se a gente perde populações como essa de Caratinga […], talvez valha a pena a gente tentar prevenir vacinando os bichos, mesmo que custe caro. É algo a se estudar”, defende Melo.
Saiba Mais
Especialistas orientam sobre prevenção contra febre amarela (em humanos)
Leia Também
Mais de metade dos primatas do mundo podem desaparecer em 50 anos
Leia também
Mais de metade dos primatas do mundo podem desaparecer em 50 anos
Estudo alerta para o atual estado em que se encontram todas as espécies de primata. Nos países da Ásia, o número de espécies em declínio corresponde a 95% do total →
Uma História de Dois Muriquis
Primatas caçados por costume e como troféus por populações tradicionais mostram que conservação nem sempre combina com politicamente correto. →
Do norte ou do sul, muriquis brasileiros
Pouco conhecido, o muriqui-do-sul tem projeto de conservação em São Paulo, a duas horas da capital. Rio de Janeiro tem cerca de 160 indivíduos da ameaçada espécie. →
Esse é tema que deveria estar ganhando manchetes em MG e ES. Excelente oportunidade para aliar conservação e bem estar humano. Sugiro que as ONGs conservacionistas acionem suas assessorias para trabalhar melhor este tema.
A questão da febre amarela silvestre no Brasil não é assunto de hoje. Já em 1932 ela foi descoberta no Vale do Canaan, arredores de Santa Teresa, no Espírito Santo. Durante vários anos (1935-1949), patrocinado pelo Serviço Internacional de Saúde da Fundação Rockefeller, o governo brasileiro desenvolveu estudos envolvendo vertebrados silvestres em diversos estados brasileiros na tentativa de levantar possíveis hospedeiros. Inúmeros artigos foram publicados atestando a ocorrência do vírus circulando em primatas. Grandes mestres nesse assunto como Hugo W. Laemmert, H.W. Kumn, David E. Davis e vários outros brasileiros e estrangeiros, infelizmente, foram esquecidos. No meu laboratório (Seção de Mamíferos) no Museu Nacional/UFRJ, existem milhares (!) de espécimes, inclusive primatas que foram depositados após o encerramento das pesquisas. Na FIOCRUZ caixas e caixas de registros contando a história desse trabalho, bem como vísceras de animais e humanos, estão lá preservados. A questão não é falta de pesquisas, mas discernimento e humildade de aproveitar o duro trabalho de uma legião de cientistas que a duras penas enfrentaram o sertão na procura das espécies e no tratamento dos enfermos. Essa demagogia agora de querer responsabilizar o rompimento da barragem de Mariana como sendo o responsável pelo problema, nada mais é do que tentar empurrar um assunto que continua sendo arrastado sem solução pelos governos. Não me surpreenderia se a febre amarela silvestre aparecesse novamente em Mangaratiba, Teresópolis e alguns outros municípios do estado do Rio de Janeiro, pois tanto o vetor como o macaco continuam existindo nas mesmas áreas onde foi detectada a doença, nas décadas de 1930-1940. A meu ver o problema é questão de saúde pública que deveria ser conduzida de maneira responsável e objetiva.
Espero que não esperem que não esperem que os muriquis comecem a morrer antes de fazerem uma campanha de vacinação. O Brasil tem uma tradição de manejo contemplativo, olhando os bichos se extinguirem enquanto a academia e o ICMBio fazem workshops