Uma pesquisa inédita no Brasil mapeou os valiosos serviços ecossistêmicos prestados pelos mamíferos brasileiros. O estudo revela que 82% dos mamíferos brasileiros provêm pelo menos uma contribuição para a sociedade – que vai desde a polinização, ao controle de pragas e até ao ecoturismo – e trazem benefícios para economia, saúde e qualidade de vida. “A identificação das contribuições das espécies para as pessoas é um primeiro passo para o reconhecimento de sua importância socioeconômica”, destacam os pesquisadores.
O estudo mapeou 701 espécies de mamíferos brasileiros – 169 delas exclusivas do Brasil – e listou onze tipos de serviços ecossistêmicos: dispersão de sementes, polinização, controle de pestes e doenças, espécies sentinelas, engenharia de ecossistemas, controle de carniça, transporte de nutrientes, controle de roedores, regulação da cadeia alimentar, e até mesmo ecoturismo e serviço relacional – que é a capacidade de certas espécies, consideradas carismáticas, de conectar as pessoas com a natureza, do ponto de vista social e cultural.
Os resultados da pesquisa foram publicados com acesso aberto na revista científica Perspectives in Ecology and Conservation. O artigo é assinado por onze cientistas, de diferentes instituições.
De acordo com o levantamento, o serviço mais comum prestado pelos mamíferos é a dispersão de sementes, realizada por 308 espécies. Em seguida está a contribuição cultural, com 274 espécies com uma relação mais próxima da sociedade. Apesar disso, a pesquisa identificou apenas 22 espécies (15 terrestres e 7 aquáticas) que estão ativamente atreladas ao ecoturismo no país. Os destaques são a onça-pintada (Panthera onca) e o boto-cor-de-rosa (Inia geoffrensis). A maioria, entretanto, é considerada uma atração secundária, como observar os quatis (Nasua nasua) no Parque Nacional do Iguaçu.
“O baixo número de espécies que prestam serviços de ecoturismo pode ser devido ao fato de que a maioria dos mamíferos carismáticos são difíceis de ver na natureza no Brasil. Ainda assim, parece haver um grande potencial inexplorado para o ecoturismo baseado em mamíferos no Brasil, o que poderia ancorar políticas e iniciativas de conservação no país”, apontam os pesquisadores.
Para fazer o mapeamento dos serviços ecossistêmicos prestados por cada espécie, os pesquisadores compilaram as características das espécies, associadas às suas funções ecológicas. A primeira fase do levantamento foi feita a partir de bancos de dados online e da literatura científica disponível. Na etapa seguinte, as informações foram examinadas por especialistas em diferentes ordens taxonômicas que assinam o artigo. Os dados coletados incluíram dieta, massa corporal, onde buscam alimentos, capacidade de dispersão, tamanho da área de vida e status de conservação (espécies abundantes tendem a contribuir mais do que as raras, com exceção dos serviços culturais).
Uma das surpresas do estudo foram os tatus, que revelaram-se os mais “prestativos” entre os mamíferos, com espécies associadas com cinco até sete serviços ecossistêmicos. Ao mover e misturar grandes quantidades de solo e sedimento da superfície, os tatus funcionam como engenheiros de ecossistemas e ajudam no transporte de nutrientes no solo. Além disso, suas tocas servem de abrigos para outras espécies e têm uma contribuição para o aumento e riqueza de animais. Além disso, são potenciais sentinelas por serem reservatórios de patógenos responsáveis, por exemplo, pela doença de Chagas. “Infelizmente o Brasil não tem um programa de biomonitoramento bem estabelecido para rastrear a prevalência de patógenos em tatus”, apontam os pesquisadores em trecho do artigo.
O estudo ressalta ainda que há serviços ecossistêmicos mais vulneráveis, que são realizados por menos de 20 espécies de mamíferos no país, como eliminação de carcaças, controle de roedores e engenharia de ecossistemas. Este último é particularmente crítico já que é quase exclusivamente associado aos mamíferos.
A polinização, essencial para reprodução das plantas e formação de frutos, é realizada por apenas 51 espécies de mamíferos – 7% do total analisado. Apesar das maioria das plantações com importância econômica serem polinizadas por invertebrados, há plantas como os pequizeiros (Caryocar brasiliensis e Caryocar villosum), que dependem da polinização realizada pelos morcegos.
A pesquisa também revela os tipos de serviços associados aos mamíferos em cada um dos biomas. A Amazônia, que abriga uma biodiversidade associada à maior parte dos serviços ecossistêmicos, destaca-se pela grande concentração de mamíferos dispersores de sementes e que se alimentam de animais que transmitem doenças ou que são pragas agrícolas. No Pantanal há um protagonismo do ecoturismo, da engenharia de ecossistemas e das espécies sentinelas, ou seja, aquelas que indicam a proliferação de doenças transmissíveis para as pessoas. E o Cerrado revelou-se um importante hotspot para mamíferos que atuam no controle de roedores e doenças, assim como sentinelas e engenheiros de ecossistemas.
Já nos ambientes marinhos, a predominância é dos mamíferos carismáticos – como as baleias e golfinhos – e do transporte de nutrientes, serviço importante para a atividade pesqueira.
“É importante considerar que os serviços ecossistêmicos entregues por estas espécies à escala local e regional devem ser considerados nas políticas de conservação. Por exemplo, o nosso estudo ajuda a identificar os beneficiários dos serviços oferecidos por estas espécies e a alertar para a necessidade de conservação destas espécies. Algumas das espécies aqui destacadas fornecem serviços únicos e estratégicos e devem ser o foco dos planos locais e regionais de conservação de espécies”, apontam os autores do artigo.
Perda de biodiversidade: um desserviço
O estudo alerta que 138 espécies – cerca de um quinto do total – que seriam potenciais prestadoras de serviços ecossistêmicos, perderam seu papel por estarem ameaçadas de extinção ou carentes de informações sobre seu estado de conservação.
“Infelizmente a capacidade dos mamíferos brasileiros de prover serviços ecossistêmicos está comprometida, pois muitas espécies estão hoje ameaçadas de extinção”, alerta a bióloga Mariana Vale, professora do Departamento de Ecologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), que liderou o estudo. “As populações dessas espécies foram muito reduzidas pela caça e perda de habitat, diminuindo sua eficiência na provisão de serviços ecossistêmicos”, completa.
Mariana coordena o projeto “Serviços Ecossistêmicos da Fauna Brasileira”, cujo objetivo é quantificar os serviços prestados por diferentes grupos de espécies e o possível impacto das mudanças climáticas nesse processo. Após os mamíferos, a pesquisa agora concentra-se nas cerca de 1.800 aves que ocorrem no país.
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