O Dia Mundial da Água, comemorado hoje (22), é um momento de conscientização sobre a preservação da qualidade e do acesso da água, um bem tão vital quanto finito – e cada vez mais escasso. Enquanto a demanda só cresce, seja pelo aumento da população ou pelas generosas outorgas de água concedidas a empresas, principalmente do agronegócio – apenas 50 companhias consomem quase metade da água do Brasil todo ano –, as mudanças climáticas causam secas em maior quantidade e gravidade.
A escassez hídrica gerou cenários marcantes no Brasil ao longo da última década. Entre 2014 e 2016, São Paulo viu a queda do nível de seus reservatórios gerar desabastecimento, com necessidade de uso de seus volumes mortos, de menor qualidade. No Ceará, a seca extrema do período entre 2012 e 2016 foi a pior desde 1910, também reduzindo dramaticamente o volume dos reservatórios. Mais recentemente, no ano passado, a seca na Amazônia aumentou o número de queimadas e fez rios secarem completamente, gerando falta d’água, inibindo a pesca e interrompendo a navegação. A fumaça das queimadas chegou a fazer Manaus registrar a terceira pior qualidade de ar no mundo.
Esses cenários não são acontecimentos isolados. Com as mudanças climáticas e o aumento da temperatura média da Terra, esses eventos extremos estão previstos para acontecer com ainda mais frequência. “Segundo a Nasa divulgou há menos de uma semana, o Brasil deverá enfrentar aumento de temperaturas e secas severas nos próximos anos”, alerta o ambientalista Carlos Bocuhy, presidente do Instituto Brasileiro de Proteção Ambiental (Proam).
“O aumento das temperaturas e falta de regularidade no regime de chuvas agravam o quadro de secas e alteram o regime hídrico”, diz Bocuhy. “[Esses fatores] alteram a capacidade de produção de água nos mananciais, e o ressecamento do solo não permite a devida recarga dos aquíferos. Tudo isso afeta a capacidade de volume médio de água em represas e corpos d’água”, explica. Isso significa risco para o futuro abastecimento de água para consumo em residências, indústrias, propriedades rurais e para o sistema elétrico.
Para Bocuhy, as secas e crises hídricas ameaçam boa parte do país, mas o Pantanal e a Amazônia têm sido especialmente afetados. “As regiões metropolitanas são sempre vulneráveis, devido ao grande contingente populacional, mas o que está ocorrendo é a associação de secas, incêndios e ventos fortes, levando a estado crítico regiões como Amazônia e Pantanal. Esses fatores são uma composição explosiva”, avaliou. O grande número de queimadas nessas regiões, além dos fatores climáticos, também tem raízes na ação humana direta – culpa de uma “cultura do fogo” para formação e limpeza de pastagens e áreas de plantio, diz Bocuhy. O problema é que, devido às secas cada vez mais extremas, esses incêndios têm alto risco de fugir do controle.
“Ressalte-se ainda o crescimento dos processos de desertificação da Caatinga, onde as políticas multissetoriais de combate à desertificação do semiárido não estão ocorrendo. Da mesma forma, o MATOPIBA [região composta por partes dos estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia] sofre com extração hídrica de seus aquíferos subterrâneos acima do que pode naturalmente fornecer, para abastecer a agricultura extensiva de exportação, o que está colocando em risco o abastecimento público de 300 cidades na região”, apontou o ambientalista.
Para Bocuhy, o poder público precisa implementar ações que permitam uma melhor capacidade de resposta a eventos climáticos extremos. “É preciso implementar alertas precoces, com possibilidade de respostas que possam salvaguardar as populações e a biodiversidade. No caso das secas, aumentar a capacidade de combate aos incêndios e os aplicar métodos preventivos, como a detecção precoce por inteligência artificial (câmeras com sensores infravermelhos), especialmente em unidades de conservação. Reforçar as brigadas e equipar corpos de bombeiros é essencial”, listou.
Apesar disso, as discussões sobre como evitar a escassez e a vulnerabilidade hídricas estão prejudicadas a nível federal. O relatório aprovado da Medida Provisória da Reestruturação dos Ministérios do governo Lula, de autoria do deputado Isnaldo Bulhões Jr. (MDB-AL), levou o Conselho Nacional de Recursos Hídricos (CNRH) e a Agência Nacional de Águas (ANA), órgãos então vinculados ao Ministério do Meio Ambiente, ao Ministério da Integração Regional. Nesse cenário, até hoje o CNRH não foi reinstalado.
“Em primeiro lugar o CNRH deve sair do limbo e começar a funcionar. Em segundo lugar, não pode ficar atrelado a uma pasta que não é vocacionada para a gestão hídrica, que é o Ministério da Integração Regional, mas sim ao Ministério do Meio Ambiente. O mesmo se dá com a Agência Nacional de Águas, espaço estratégico de planejamento e gestão hídrica, inclusive responsável pela outorga de água”, criticou Bocuhy.
O ambientalista frisou a importância da volta das atividades do conselho. “O CNRH é um importante espaço político de discussão de políticas públicas para os recursos hídricos. É um espaço político privilegiado, caixa de ressonância que permite diálogo formal entre governo e sociedade civil. Além disso, o CNRH pode solicitar informações e pedir esclarecimentos diretamente aos governos. Dá transparência ao processo de gestão da água e exerce controle social para a formulação de políticas públicas voltadas aos recursos hídricos. Além disso, pode funcionar como meio de transparência e de implementação da Política Nacional de Segurança Hídrica, que tem apresentado pouca eficácia sem elementos mais efetivos de controle social”, enumerou.
Mas ainda há outros obstáculos. Na composição mais recente – e ainda válida – do colegiado, de 2022, a participação da sociedade civil era reduzida. Entre os membros titulares, eram 19 conselheiros ligados a ministérios do governo federal, 9 ligados a estados e 7 ligados a setores como de abastecimento de água, concessionárias de energia e indústrias. Um total de 35 conselheiros. De resto, apenas 3 cadeiras estavam ligadas a organizações civis – uma para comitês de bacias hidrográficas, uma para organizações técnicas de ensino e pesquisa e outra para ONGs.
Para Bocuhy, além de voltar a funcionar, o órgão precisa garantir maior participação social. “Hoje a participação da sociedade civil, que defende de forma mais independente o meio ambiente e o interesse público, é minoritária no CNRH. Isso não significa igualdade, que é o sentido da real democracia”, criticou. “É preciso ampliar a participação social, dotando estes espaços políticos de maior número de representantes da sociedade civil e da ciência, proporcionando equilíbrio entre representações de governo e da sociedade, buscando decisões isonômicas e bem-informadas”, frisou o ambientalista.
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