Desde que foi descrita para a ciência pela primeira vez, em 1925, a espécie Phrynomedusa appendiculata já era considerada rara. Em 1970, foi feito um último avistamento da espécie, que ocorre apenas na Mata Atlântica. E por 51 anos, o anfíbio desapareceu aos olhos da ciência, o que disparou o alerta de que a espécie poderia ter sido extinta. Ao acaso, entretanto, uma equipe de pesquisadores conseguiu o tão esperado reencontro com o P. appendiculata em uma localidade inesperada, no município paulista de Capão Bonito, onde não havia registro anterior do anfíbio. A redescoberta permitiu o levantamento de novas informações sobre o animal, como dados ecológicos e morfológicos, além do registro da vocalização da espécie.
A P. appendiculata é uma pequena perereca que mede de 3 a 4 centímetros. Até pela sua raridade e escassos registros, a espécie não possui um nome popular para alternar com a nomenclatura científica. Na fase adulta, exibe uma coloração verde claro brilhante em suas costas – o que usa para facilitar sua camuflagem na vegetação da floresta –, uma barriga esbranquiçada e faixas alaranjadas que se estendem na lateral das patas.
A redescoberta e as últimas informações levantadas sobre a espécie foram descritas em artigo publicado na revista científica Zootaxa, no dia 10 de janeiro de 2022. O estudo é assinado por cinco pesquisadores.
O reencontro foi ao acaso, em dezembro de 2011, durante uma expedição de levantamento de anfíbios no município de Capão Bonito, em São Paulo, para embasar a criação de uma unidade de conservação – o Parque Estadual Nascentes do Paranapanema, criado em 2012. “A redescoberta foi bastante inesperada, pois apesar de existirem pouquíssimos registros e informações históricas sobre esta espécie, não havia qualquer indicação da ocorrência dela para esta região”, conta o biólogo Leandro Moraes, doutorando em Zoologia pela Universidade de São Paulo e um dos pesquisadores por trás da redescoberta.
“Ao longo deste levantamento, registramos uma população da espécie em atividade reprodutiva, no mesmo local em três dias. Apesar de também termos feito buscas em diversos outros ambientes e localidades durante esse projeto, só registramos esta espécie nesse único ponto”, continua o biólogo.
Foram encontrados apenas cerca de 10 a 15 indivíduos em reprodução dentro de grandes poças. Durante os encontros, os pesquisadores fizeram fotografias, observações e gravações da vocalização da espécie. Devido à raridade do animal, apenas um exemplar, um macho adulto, foi coletado para estudo em laboratório – o que permitiu uma análise molecular inédita do anfíbio. Com isso, foi possível encaixar a espécie na “árvore da vida”, explica o pesquisador, e confirmar que ela faz parte dessa linhagem bem antiga de anfíbios.
Apesar da conclusão de que se tratava da P. appendiculata ter sido relativamente rápida, como havia poucas informações disponíveis sobre esta espécie e todo este gênero de anfíbios, foi necessário uma investigação mais profunda e demorada. “Após o campo, começamos o trabalho em laboratórios. Realizamos análises detalhadas da forma, cor e cantos dos indivíduos registrados, e extraímos e sequenciamos o DNA do indivíduo coletado”, lembra Leandro.
A P. appendiculata foi descrita para ciência pela primeira vez em 1925, a partir de um único indivíduo, coletado em São Bento do Sul, em Santa Catarina. Posteriormente, a espécie foi registrada em outras duas localidades, no município catarinense de Lauro Muller e, do lado paulista, em Santo André. A atual redescoberta, em Capão Bonito, ampliou a distribuição geográfica da espécie para quatro localidades, todas ambientes de floresta montanhosa na porção sul da Mata Atlântica. “Vale ressaltar que a espécie não é registrada desde 1924-1970 nas outras três localidades, apesar de extensamente inventariada”, destacam os pesquisadores no artigo.
No artigo, os cientistas destacam que as três localidades conhecidas anteriormente para esta espécie têm sido historicamente submetidas a impactos antrópicos, o que reforça a importância da população agora encontrada estar dentro de uma unidade de conservação de proteção integral. “Considerando que P. appendiculata é uma espécie carismática e rara, destacamos seu potencial como carro-chefe para a conservação da biodiversidade na região do Parque Estadual Nascentes do Paranapanema”, apontam.
Os pesquisadores reforçam que ainda há lacunas de conhecimento sobre a espécie, que dificultam a compreensão do seu alcance de distribuição e o seu status de ameaça. O longo intervalo entre os avistamentos pode não indicar necessariamente seu declínio e desaparecimento, comentam no artigo, “no entanto, esperamos que a redescoberta possa fornecer diretrizes importantes para avaliações adicionais do status de ameaça da espécie”.
Para solucionar algumas destas lacunas e garantir a conservação desta pequena e rara perereca, os cientistas sugerem que sejam feitas novas coletas para verificar a área de ocorrência da espécie, assim como novas pesquisas sobre a história natural do anfíbio; a expansão de áreas protegidas de Mata Atlântica ou criação de novas que protejam os ecossistemas específicos usados pelo P. appendiculata; estabelecer um programa de monitoramento para investigar a viabilidade a longo prazo da população registrada; e maior envolvimento dos moradores locais nas estratégias de conservação, por meio de projetos de educação ambiental e ciência cidadã.
Leandro explica que os pesquisadores não retornaram à localidade nos anos seguintes ao reencontro, mas que outros estudiosos de anfíbios fizeram expedições em áreas próximas, sem registros da espécie. “Não temos conhecimento sobre como a população está atualmente”, admite. Apesar disso, devido a criação do parque no ano seguinte ao encontro com a população de P. appendiculata e à própria geografia montanhosa e de difícil acesso, ele acredita que a população está relativamente bem protegida.
Para conseguir mais informações, os pesquisadores instalaram gravadores autônomos nos ambientes reprodutivos em que encontraram a espécie e a expectativa é detectá-la novamente. “Queremos através dessa abordagem monitorar a dinâmica de sua população em longo prazo e gerar novos dados envolvendo a sua biologia. Posteriormente, pretendemos expandir essas investigações para outras localidades nas redondezas”, detalha Leandro.
Um gênero raro e ameaçado
O gênero Phrynomedusa compreende espécies raras e pouco conhecidas de anfíbios da família Phyllomedusidae, ou filomedusídeos, que só ocorrem na região Neotropical e que são, em sua ampla maioria, arborícolas e possuem cores contrastantes de verde e laranja ao longo do corpo – um alerta aos possíveis predadores sobre as substâncias tóxicas da sua pele.
Dentro do gênero Phrynomedusa, em si, são conhecidas apenas seis espécies, todas elas endêmicas da Mata Atlântica, ou seja, que só ocorrem no bioma, e com distribuições bem restritas – são apenas 12 localidades identificadas como habitat das seis espécies do gênero.
Devido a esta raridade, os cientistas sugerem que todas as espécies de Phrynomedusa estão sofrendo declínios populacionais e próximas do risco de extinção, “dado que os últimos avistamentos da maioria das espécies se estendem por décadas ou até mais de um século”, explicam os pesquisadores em trecho do artigo. Uma das espécies, o P. fimbriata, por exemplo, já é considerado extinto, com seu último – e único – registro datado de 1898.
Apesar disso, atualmente a redescoberta P. appendiculata é classificada apenas como Quase Ameaçado de extinção, de acordo com a Lista Vermelha da IUCN. Na avaliação brasileira, publicada pelo ICMBio em 2018, o animal é marcado como “dados deficientes”, ou seja, sem informações necessárias para classificar o grau de ameaça. Na lista da fauna ameaçada do estado de Santa Catarina a espécie é avaliada como Em Perigo.
“Existem muitos fatores que podem ser atribuídos direta ou indiretamente à escassez de informações relacionadas a P. appendiculata, bem como a seus congêneres. Um desses supostos fatores é o avanço alarmante da doença infecciosa quitridiomicose, que tem sido associada para várias populações de anfíbios a diminuir em todo o mundo, e é considerado especialmente ameaçador para a anfíbios de montanha em regiões tropicais”, alertam os pesquisadores em trecho do artigo. O patógeno já foi registrado nos locais onde os Phrynomedusa sumiram do radar e pode ter provocado o declínio populacional dos anfíbios ou mesmo extinções locais.
Além disso, os pesquisadores destacam a própria destruição da Mata Atlântica – bioma do qual estes anfíbios dependem para sobreviver – como outra causa para o possível desaparecimento destes animais.
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