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Publicação faz diagnóstico da insegurança alimentar em países do Cone Sul

Segundo o Atlas dos Sistemas Alimentares do Cone Sul, o modelo econômico do agronegócio prioriza monoculturas de exportação, causando fome e degradação ambiental

Gabriel Tussini ·
4 de abril de 2024

A insegurança alimentar não é causada por falta de comida ou de áreas agrícolas, mas de um modelo econômico que prioriza a exportação de commodities com baixo valor agregado às custas da preservação ambiental e do modo de vida e bem-estar de comunidades tradicionais. Essa é uma das conclusões do “Atlas dos Sistemas Alimentares do Cone Sul”, publicação sobre a crise alimentar em Brasil, Uruguai, Argentina, Paraguai e Chile lançada pela Fundação Rosa Luxemburgo e pela Editora Expressão Popular.

O Atlas faz um diagnóstico da contraditória situação dos países do Cone Sul, que possuem IDH considerado alto e respondem por 3,5% da população e 8,3% das áreas agrícolas do planeta. A produção de alimentos nesses países chega a exceder suas necessidades, mas ainda assim milhões de pessoas vivem em situação de insegurança alimentar na região. A publicação cita famoso exemplo ocorrido em Mato Grosso, estado que, mesmo tendo 9x mais gado (32 milhões de cabeças) do que pessoas (3,6 milhões de habitantes), viu filas de pessoas se formarem em frigoríficos em busca de doações de ossos de vacas.

O problema, avalia o Atlas, está no modelo de produção do agronegócio, baseado em monoculturas e na exportação. Mato Grosso “bateu duas vezes os recordes de exportação de carne bovina com o aumento da demanda dos países asiáticos. A imensa maioria de toda a produção foi enviada para mercados estrangeiros”, diz um trecho do relatório.

“A produção no campo continua a crescer na região, mas não é destinada a matar a fome de quem mais precisa: em vez disso, a prioridade é o mercado externo. Ou seja, falta comida na mesa do povo, mas cada vez mais os lucros do agronegócio batem recorde, amparados nas exportações. Nessa equação, a política desempenha um papel central, pois sustenta um modelo que gera riqueza para poucos e produz fome para milhões”, analisa Patricia Lizarraga, co-organizadora da publicação.

A força econômica e política do agronegócio gera, ainda, uma crescente dominação do setor na economia desses países. Segundo o Atlas, isso se reflete na perda de espaço dos produtos industrializados nas exportações: no Brasil, a participação deles caiu de 59% do total em 1993 para 27% atualmente, enquanto na Argentina a queda foi de 35% em 1989 para os atuais 15%.

Essa mudança resulta em impactos abrangentes, incluindo a degradação ambiental, o uso excessivo de agrotóxicos, a expulsão de comunidades tradicionais para liberar terras e o crescimento desordenado das áreas urbanas. Assim, a insegurança alimentar surge como mais uma manifestação das desigualdades sociais, onde os estados falham em garantir o acesso à alimentação como um direito fundamental, priorizando políticas que favorecem a exploração desenfreada dos recursos naturais, conhecida como neoextrativismo.

Enquanto mais de 80% dos danos e perdas na agricultura são causados pelas secas, segundo a Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO), no Brasil, o desmatamento para abertura de novas áreas para o agronegócio afetou os “rios voadores” amazônicos, que controlam o ciclo hidrológico em boa parte do continente. As mudanças no regime de chuvas, diz a publicação, causaram “a redução dos níveis dos rios, com graves consequências para a navegação fluvial e a redução do rendimento das colheitas e da produção de alimentos, o que agravou a insegurança alimentar em muitas áreas”.

Para romper com esse modelo, a publicação sugere uma ruptura com o atual modelo de agronegócio latifundiário, com caminhos como a reforma agrária, o fortalecimento da agroecologia “como caminho para a produção de alimentos saudáveis, e livres de agrotóxicos, garantindo a permanência no campo” e políticas públicas e subsídios voltados para as famílias do campo, entre outras.

“Relatamos diversas estratégias de abastecimento de alimentos desenvolvidas a partir de um modelo baseado na soberania alimentar e na agroecologia. Sistemas de produção que, da semana ao prato, do campo à cidade, buscam produzir alimentos saudáveis, sem destruir a natureza, a preços justos, inseridos em processos de cooperação transformadora, combatendo a fome e a desigualdade”, explicou Jorge Pereira Filho, um dos organizadores da publicação.

A íntegra do Atlas dos Sistemas Alimentares do Cone Sul pode ser acessada gratuitamente por aqui.

  • Gabriel Tussini

    Estudante de jornalismo na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), redator em ((o))eco e interessado em meio ambiente, política e no que não está nos holofotes ao redor do mundo.

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