Reportagens

Malandragem Transgênica

O projeto de Lei de Biossegurança foi aprovado na Câmara com um texto que desagrada o Ministério do Meio Ambiente e enfraquece o Ibama. Vitória dos ruralistas.

Carolina Mourão ·
3 de março de 2005 · 20 anos atrás

O Plenário aprovou nesta quarta-feira, 2 de março, por 352 votos a 60, o Projeto de Lei da Biossegurança (PL 2401/03), que estabelece normas de segurança e mecanismos de fiscalização em todas as atividades relacionadas aos Organismos Geneticamente Modificados (OGM) e também permite pesquisas com células-tronco humanas. O texto foi aprovado na forma do substitutivo, ou seja, passou com a redação que foi dada pelo Senado. Para virar lei, ainda é preciso esperar a sanção do presidente Lula e a publicação no Diário Oficial.

Depois de mais de quatro horas de discussão, o voto dos parlamentares confirmou com folga a previsão feita pelo O Eco nesta terça-feira, em Uma Canetada Para o Futuro. Praticamente todos os partidos encaminharam favoravelmente a proposta que pedia votação nominal do substitutivo. O governo e a maior parte das bancadas somaram 352 votos a favor contra 60, e aprovou o texto do Senado. O projeto da Biossegurança trazia dois assuntos distintos, numa esperta operação para amealhar votos de todas as direções em questões distantes e polêmicas. O governo acabou aderindo à proposta na última semana, sob condição de apresentar três destaques para votação nominal na esperança de modificar partes do texto que o desagradava. Um deles, sobre células-tronco, que pedia a exclusão da permissão do uso para fins de pesquisa, não passou e a pesquisa foi autorizada. E outros dois destaques, sobre transgênicos.

Nos dois destaques sobre transgênicos, os deputados votaram contra a liberação no meio ambiente dos organismos geneticamente modificados sem a decisão ou parecer técnico favorável da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio), que também definirá quando será necessário o licenciamento ambiental. O Ibama só poderá exigir o licenciamento ambiental do plantio de OGM nos casos em que a CTNBio o avaliar “potencialmente causador de significativa degradação” ao meio ambiente. Para piorar, os deputados rejeitaram a retirada do texto que submete os órgãos e entidades da administração, como Anvisa e Ibama, à decisão técnica da CTNBio quanto aos aspectos de biossegurança e transgênicos. Assim, a versão final do Projeto de Lei de Biossegurança submete as decisões do Instituto Brasileiro de Meio Ambiente (Ibama) e da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) aos despachos da CTNBio. A crítica é que este procedimento esvazia as competências dos ministérios, fazendo com que a CNTBio atue sem restrições, sempre comandando a decisão final. Além disso, a CTNBio teria adotado uma postura não isenta, favorável à liberação de transgênicos sem maior preocupação com a avaliação de riscos ambientais e de saúde desses produtos. O destaque que pretendia enfraquecer a CTNBio foi defendido pela ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, que saiu derrotada da votação.

A versão final aumenta, e muito, os poderes da CTNBio. Ela estará ligada ao Conselho Nacional de Biossegurança, composto por técnicos e mais onze ministros de Estado, estará vinculada à Presidência da República. Mas caberá a seu grupo técnico fixar as diretrizes da ação administrativa dos órgãos com competência sobre a matéria, além de tomar a decisão final sobre os processos relativos a atividades que envolvam o uso comercial dos OGM. Caberá a CTNBio estabelecer normas, critérios de avaliação e de monitoramento para pesquisas e projetos relacionados a OGM; autorizar a importação desses organismos para pesquisa; emitir Certificado de Qualidade em Biossegurança (CQB) para o desenvolvimento de atividades com OGM e seus derivados em laboratório, instituição ou empresa; definir o nível de biossegurança a ser aplicado ao OGM; e identificar atividades e produtos decorrentes do uso de OGM e seus derivados potencialmente causadores de degradação do meio ambiente ou que possam causar riscos à saúde humana. E as decisões da CTNBio deverão ser observadas na atuação dos órgãos de fiscalização de outros ministérios.

A proposta aprovada libera em definitivo a produção e a comercialização de soja transgênica, inclusive para as sementes mais tolerantes ao pesticida glifosato. Isso significa que a safra transgênica precisa de mais pesticida do que a safra comum. Por isso, os alimentos que contenham ou sejam produzidos a partir de OGM ou derivados deverão conter essa informação nos rótulos. Toda instituição que utilizar técnicas e métodos de engenharia genética ou realizar pesquisas com OGM deverá criar uma Comissão Interna de Biossegurança (CIBio) para, entre outras funções, manter registro do acompanhamento individual de cada atividade em desenvolvimento e investigar a ocorrência de acidentes e enfermidades possivelmente relacionados a esses organismos, notificando suas conclusões e providências à CTNBio.

O projeto de lei da Biossegurança, que nasceu na Câmara, sofreu alterações no Senado e por isso retornou à Casa de origem para ser votado, misturou transgênicos com células-tronco em mais uma demonstração da malícia dos deputados que fazem todo tipo de gambiarra para driblar o regimento interno. O chamado “projeto-frankeinstein” sofreu críticas e gerou protestos contra e a favor desde a origem até o momento da votação. Por volta das 20 horas, até um requerimento foi apresentado pelo deputado Salvador Zimbaldi (PTB-SP) solicitando o desmembramento do artigo sobre a pesquisa com células-tronco para que fosse apresentado como projeto autônomo, já que os deputados não teriam obrigação de dar o mesmo voto sobre assuntos tão distintos. A proposta foi ignorada porque desta forma ficaria mais difícil aprovar a lei dos transgênicos. Afinal, o projeto que juntou a fome com a vontade de comer acabou dando certo e este tipo de malandragem pode se tornar mais uma prática pouco ortodoxa daquela Casa.

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