O que antes era uma guerra comercial travada nos bastidores da indústria de pneus, transformou-se recentemente numa batalha pública com direito a campanhas publicitárias na TV, trocas de acusações e a abertura de um processo criminal. De um lado estão os fabricantes de pneus remoldados, do outro os fabricantes de pneus novos. No meio, o destino dos milhões de pneus descartados no país.
Desde 2002, produtores e importadores têm o dever de retirar os chamados pneus “inservíveis” da natureza e se livrar deles sem prejuízo ao meio ambiente. A boa nova veio de uma Resolução do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama), mas sua eficácia está sendo posta em dúvida a partir de duas notícias preocupantes. A primeira é o decreto presidencial de 2004, que liberou a importação de pneus remoldados do Uruguai. Ou seja, nem bem se livrou do seu próprio lixo, o Brasil passou a receber o lixo dos outros. A segunda má notícia é que nos últimos dois anos os fabricantes não cumpriram a exigência do Conama.
É o que diz a Associação Brasileira da Indústria de Pneus Remoldados (Abip), que na semana passada lançou uma campanha na TV denunciando as multinacionais Bridgestone/Firestone, Goodyear e Pirelli por não retirarem a quantidade estabelecida na resolução. Para cada 4 pneus novos fabricados, as empresas têm que tirar 5 velhos da natureza. Na representação criminal que apresentou à Procuradoria da República em Brasília, a Abip responsabiliza não apenas os fabricantes, mas também o presidente do Ibama, Marcus Barros, por não fiscalizar o cumprimento da resolução.
Mas a acusadora também tem seus problemas. Os produtores de remoldados utilizam como matéria-prima pneus usados importados da Europa, uma prática ilegal, mantida à base de liminares. Em fevereiro, os fabricantes de pneus novos também utilizaram o expediente de uma campanha publicitária para criticar seus concorrentes. Representados pela Associação Nacional da Indústria de Pneumáticos (Anip), colocaram no ar um agressivo comercial alertando para a qualidade duvidosa dos pneus remoldados. A Abip recorreu ao Conselho de Auto-regulamentação Publicitária (Conar) e conseguiu proibir o anúncio da Anip.
Enquanto Abip e Anip se engalfinham, permanece em aberto a destinação final dos pneus inservíveis. Os números são imprecisos. Fala-se em cerca de 100 milhões de unidades, mas há quem diga que o passivo ambiental pode chegar a 300 milhões de pneus espalhados pelo Brasil. E o número cresce 30 milhões a cada ano. Uma verdadeira calamidade, em se tratando de um produto que leva em média 150 anos para se decompor.
A solução mais promissora para o problema é fazer o pneu velho voltar para as estradas. Mas sob a forma de asfalto. A idéia nem é tão nova. Foi primeiro desenvolvida na década de 1960, por um cientista do Arizona, Estados Unidos, mas só recentemente chegou ao Brasil. Hoje a tecnologia está patenteada por duas empresas – a Petrobrás e a paranaense Greca Asfaltos – e começa a ser posta em prática, emborrachando algumas estradas no país.
Os pesquisadores descobriram que era possível adicionar à composição asfáltica um percentual de borracha de pneu triturada. A medida aumenta em mais do que o dobro a durabilidade do asfalto. Os fabricantes do asfalto-borracha prometem ainda outros benefícios, como uma maior aderência e a redução sensível dos ruídos de atrito. “Instalamos um trecho de asfalto-borracha em frente a um hospital na SP-340, no interior paulista. A redução do ruído foi tanta que era como se a distância entre a estrada e o hospital tivesse aumentado quatro vezes”, comemora o engenheiro Guilherme Edel, responsável pela produção de asfalto na Petrobrás.
Apesar de ter preço de mercado 30% acima do convencional, o asfalto-borracha, segundo seus fabricantes, vale o investimento, porque chega a durar até três vezes mais, dependendo das condições climáticas e da carga de tráfego nas rodovias. “Temos um estudo da Universidade Federal do Rio Grande do Sul que atesta esta durabilidade. Se um asfalto comum dura em média 10 anos, estamos falando de uma durabilidade de quase três décadas”, afirma Armando Morilha, da Greca Asfaltos. A empresa paranaense foi a primeira a aplicar o produto no Brasil, em uma rodovia do Rio Grande do Sul. Hoje, concessionárias do Paraná, Santa Catarina, Rio de Janeiro, Ceará e São Paulo também estão utilizando o asfalto-borracha nas estradas que administram.
Uma das primeiras a experimentar o novo asfalto foi a concessionária Intervias, que administra rodovias em São Paulo. Em 2001, a empresa aplicou o asfalto-borracha em um trecho de 1.200 metros. “Monitoramos o material durante um ano. O resultado foi tão bom que resolvemos ampliá-lo para outros 90 km de rodovia, inclusive na Anhangüera, que tem um forte fluxo de veículos”, diz o diretor-superintendente da Intervias, Roberto Calixto. “Vamos economizar em manutenção e na amortização do investimento”, afirma. O asfalto-borracha é hoje utilizado em países como o Canadá, Austrália, Espanha e Estados Unidos, onde no estado do Arizona 75% das rodovias utilizam o produto.
Em cada quilômetro de asfalto-borracha, considerando-se uma pista com 7 metros de largura e 4 cm de espessura, são utilizadas 4.200 carcaças de pneus, depois de retirados os fios de aço e a lona.
Ao que parece, as concessionárias estão convencidas de que o produto é confiável e rentável. Mas a adesão do setor privado não basta. Dos 165 mil quilômetros de estradas brasileiras pavimentadas, nada menos do que 160 mil estão sob a guarda do Estado. Só ele pode impulsionar pra valer a nova tecnologia. E por hora o Departamento Nacional de Infra-estrutura e Transporte – DNIT (antigo DNER) não deu sinais de que o asfalto ecológico será utilizado no programa de recuperação das rodovias federais.
Na torcida para que isso aconteça, estão lado a lado os produtores de pneus novos e os que remoldam usados. Abip e Anip fornecem matéria-prima para os fabricantes de asfalto-borracha e apóiam sua disseminação. Não poderia ser diferente. Atualmente, eles não têm muita opção para destinar os pneus inservíveis.Parte deles é utilizada pelas fábricas de cimento, que os queimam como combustível em seus fornos, adicionando depois as cinzas à composição do produto. Os pneus também são queimados como substituto do petróleo em algumas indústrias petroquímicas. A medida, como se pode imaginar, está longe de ser ecologicamente correta. O maior problema deste processo é a exalação de poluentes na atmosfera, que geram a chuva ácida e contribuem para o efeito estufa. Apesar disso, a prática é considerada legal pelo Ibama, uma vez que estas indústrias detêm licenças ambientais estaduais. Em menor quantidade, utiliza-se pneus na contenção de solos, na proteção de marinas e portos, na indústria de calçados e tapetes, entre outros produtos e aplicações.
A Anip (dos pneus novos), diz que conseguiu recolher 70 milhões de unidades, nos últimos 6 anos. “Temos hoje 84 pontos de coleta em todo o Brasil em convênios com prefeituras, borracharias e outros”, diz Vilien Soares, diretor da associação. Para ele, a resolução do Conama precisa ser revista, já que em algumas regiões ainda existe a cultura de guardar os pneus para outra utilização. “No nordeste a coleta ainda é pequena. Temos todo o interesse em contribuir positivamente com o meio ambiente, mas o pneu é de propriedade de quem o comprou e se ele quiser colocar na garagem ou no parquinho, nada podemos fazer”, explica Soares.
Para o presidente da Abip (dos remoldados), Francisco Simeão, o argumento de que não há pneus suficientes para recolher é mentira. Simeão é dono da maior fábrica de remoldados do país, a BSColway, com sede no Paraná. Defende-se da fama de “importador de lixo” fazendo propaganda de seus produtos, que segundo ele duram mais do que os pneus novos. Também menciona com orgulho a premiação recebida da ONU na Conferência Rio+10, em Johannesburgo, pelo programa Paraná Rodando Limpo, que recolheu 8 milhões de pneus velhos no Paraná. Além do benefício ambiental, o feito contribuiu para erradicar a dengue do estado em dois anos. Os mosquitos perderam suas casas e o número de casos da doença caiu de 10 mil em 2003 para 55 em 2004. O presidente da Abip reconhece, no entanto, que nem todos os associados seguem os mesmos padrões de qualidade de sua empresa.
A representação criminal movida pela Abip foi considerada pelo Ibama uma estratégica pirotécnica. “Nós simplesmente executamos as políticas ambientais. O controle ainda é difícil já que a metodologia de fiscalização para este segmento vem sendo desenvolvida a partir de 2002. É natural que precisemos de ajustes e tempo para a adaptação. Creio que o objetivo da Abip seja chamar a atenção”, diz Márcio Freitas, coordenador de controle ambiental do Ibama. O órgão, juntamente com o Departamento de Comércio Exterior do Ministério da Indústria e Comércio (DeCex), vem recorrendo sistematicamente das liminares pedidas pelas importadoras. “Ganhamos algumas e perdemos outras.O problema é que uma parte dos pneus que entra por medida judicial acaba ficando fora do nosso controle, não temos como garantir essa contrapartida”, afirma Freitas.
* Carlos André Ferreira é jornalista e fotógrafo profissional. Autor de “Avenida das Américas – uma viagem de bicicleta pela América Latina” (2004).
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