Uma reunião rara na política brasileira vai acontecer na próxima segunda-feira, dia 25 de abril, no município capixaba de Pedra Azul. Nela estarão os governadores de Minas Gerais, Aécio Neves, e do Espírito Santo, Paulo Hartung, mais prefeitos, parlamentares e secretários das áreas econômicas e ambientais dos dois estados. Vão discutir uma estratégia comum para salvar o Rio Doce e firmarão um protocolo de entendimento para dar início ao seu programa de recuperação. Será uma cúpula para encontrar soluções, sem acusações recíprocas ou admoestações ao Governo Federal. O vale do Rio Doce está na espinha dorsal do processo de crescimento do Espírito Santo e é tão importante para Minas quanto o São Francisco. E está ferido de morte. Já não há mais matas ciliares, a pecuária extensiva e a atividade madeireira exterminaram a Mata Atlântica, a atividade industrial contaminou as águas dos rios da bacia e as cidades ribeirinhas jogaram neles seus esgotos e lixo. O Rio Doce perdeu profundidade em praticamente toda a sua extensão. Em algumas áreas já é um filete de água.
Os problemas da bacia do Rio Doce teriam tudo para criar muito conflito entre os dois estados, coisa comum em nossa cultura política: como ele corre das terras mineiras para as capixabas, a erosão e o assoreamento formam ilhas de terra e sedimentos à jusante. O Rio Doce tem 900 quilômetros de extensão, nasce na junção da Serra do Espinhaço com a Mantiqueira, em Ressaquinha, próximo a Barbacena. Banha grande quantidade de municípios mineiros, ao longo de 720 quilômetros, antes de iniciar seu curso capixaba, de 180 quilômetros. Seria fácil ao Espírito Santo exigir de Minas correções e reparações e caminhar para aquele tipo de impasse que vai matando os rios Brasil a fora. Como é um rio interestadual, os dois estados poderiam alegar responsabilidade federal e exigir soluções da ANA, a Agência Nacional de Águas. Mas os governadores decidiram não praticar o esporte nacional de por a culpa no outro ou deixar tudo com o Governo Federal e assumir o compromisso político com a recuperação do rio. “A iniciativa foi mais do Paulo que minha”, me disse o governador Aécio Neves. “Sem o empenho do Aécio, isso não seria possível”, me assegurou o governador Paulo Hartung. Como se vê, não é só rios, montanhas e praias que Minas e o Espírito Santo têm em comum.
O secretário de Meio Ambiente de Minas Gerais, José Carlos Carvalho, resume: “a reunião marca a possibilidade de cooperação bilateral e multilateral, abandonando a idéia de que o que é interestadual passa automaticamente a ser federal”. Guilherme Dias, secretário de Planejamento do Espírito Santo, agrega: “o vale é o eixo de integração econômica e logística entre os dois estados e essa ação cooperativa permitirá reverter o quadro ambiental, abrindo, ao mesmo tempo, novas oportunidades econômicas para todo o vale”. Para a secretária de Meio Ambiente capixaba, Maria da Glória Brito Abaurre, tudo será feito usando a base institucional já existente e fortalecendo essa estrutura, que permitirá a gestão, o acompanhamento e a permanência do programa que é de longo prazo. Ela está falando do Comitê do Rio Doce, “um dos poucos comitês de grandes bacias que vai indo bem, tem avançado muito, é maduro e tem apresentado resultados. Nele estão os prefeitos, as grandes empresas, o terceiro setor, todos os atores que terão papel fundamental nesse processo”. Outra peça institucional importante para a secretária é a Comissão Interparlamentar MG/ES do Rio Doce, que já promoveu, inclusive, o levantamento das necessidades de tratamento de esgoto sanitário e vem discutindo critérios objetivos e justos – levando, em consideração o índice de desenvolvimento humano – para alocação de recursos aos municípios. “O Comitê e a CIP já fizeram trabalho preliminar sobre o programa conjunto, sobre o qual dá para avançar”, diz.
Se há dois estados com plenas condições técnicas e materiais para enfrentar o desafio de despoluir e revitalizar um rio da importância do Rio Doce, eles são Minas e Espírito Santo. O setor público de ambos tem técnicos qualificados. O Vale do Rio Doce está no coração do complexo mineral-siderúrgico dos dois estados. Portanto há grandes empresas com elevado passivo ambiental, que podem ser convocadas a cooperar para a salvação do rio. Em ambos os estados, a indústria de celulose e papel é de grande importância e grande consumidora e plantadora de árvores. Os dois governadores já estiveram no mesmo ninho – Paulo Hartung já pertenceu aos quadros do PSDB – e estabeleceram um relacionamento de cooperação e entendimento que pode lançar as bases de um acordo durável entre os estados, que sobreviva ao mandato dos dois. Afinal, recuperar uma bacia hidrográfica do porte da do Rio Doce e com o grau de degradação que ela apresenta, é projeto para mais de uma década de trabalho continuado.
A idéia original de uma ação estratégica para salvar o Rio Doce foi de Eliezer Batista, segundo me contou o governador Paulo Hartung. Eliezer tem sua história toda ligada ao Vale do Rio Doce. Jovem engenheiro ferroviário, já então cheio de idéias – continua sendo uma fábrica ininterrupta delas já passados os 80 anos de vida – foi trazido do interior para a sede e tornou-se uma das figuras mais importantes no desenvolvimento da companhia, ocupando sua presidência por duas vezes. Escapando da cassação por um triz, por ter sido ministro das Minas e Energia no governo de João Goulart, e tendo que ficar fora do país até 1979, continuou sendo peça fundamental no crescimento da CVRD. Montou sua operação européia e reconquistou os mercados perdidos naquela região. Foi ele que abriu a fronteira do Japão para a Vale, iniciando uma parceria, que mudaria radicalmente as perspectivas da empresa, hoje privatizada. A estrutura logística que hoje beneficia o Espírito Santo, o porto de Tubarão e a adoção dos navios graneleiros-petroleiros (ore-oil), também saíram, em grande medida de sua usina de idéias e iniciativas. Eliezer viu o progresso econômico do vale do Rio Doce e a sua degradação ambiental, desde o começo. Deve ter boas idéias para consertar tudo, sem perder de vista o desenvolvimento econômico.
O secretário de Planejamento do Espírito Santo, Guilherme Dias, está entusiasmado com as possibilidades do projeto de recuperação do Rio Doce, que nascerá desse acordo de cooperação entre os dois estados. O vale do Rio Doce tem sido a espinha dorsal do desenvolvimento capixaba, segundo ele, e o principal eixo de integração de atividades econômicas que são centrais à economia do estado. É também uma das principais vias de integração entre as economias mineira e capixaba. O governador Paulo Hartung vê nesse protocolo de compromissos dos dois governos uma oportunidade para revitalizar a bacia do Rio Doce, com uma ação que vá além da quantidade de projetos, que cuide da qualidade. Ele aposta no trabalho cooperativo entre os dois governos, com participação do legislativo e dos prefeitos. O objetivo central, segundo Paulo Hartung, seria recuperar a cobertura vegetal, despoluir o rio e investir no esgotamento sanitário dos municípios ribeirinhos. A secretária Maria da Glória lembra que, é importante também o trabalho de recarga dos aqüíferos, portanto atuando nas serras. O Banco Mundial já deu sinais de interesse em participar da ação. Há, também, bom entendimento com a Agência Nacional de Águas (ANA).
O governador Aécio Neves resume o significado político da reunião: “as fronteiras físicas e políticas não podem impedir a construção de soluções comuns para problemas comuns”. Para o secretário de Meio Ambiente de Minas Gerais, José Carlos de Carvalho, essa “pouco explorada possibilidade de planejamento regional, tendo como referência as bacias hidrográficas, abre a oportunidade para iniciar um processo de integração institucional, rompendo a excessiva verticalidade do federalismo brasileiro”.
Do lado capixaba, aposta-se no uso das próprias vocações e recursos mais efetivos do estado para redesenhar a fisionomia sócio-econômica do vale. O secretário de Planejamento, Guilherme Dias, acredita que uma das respostas estaria em enfrentar o problema criado pela pecuária extensiva e de baixa produtividade e da agonizante atividade madeireira – as duas atividades que mais contribuíram para o desmatamento e a degradação do rio – incentivando as pessoas a trocar de atividade e passar a plantar floresta homogênea, para abastecer as indústrias de celulose, papel e móveis. Um plano de reflorestamento que incluísse a recomposição e preservação das matas ciliares nas margens do Rio Doce e seus afluentes e uma combinação apropriada de floresta homogênea e restauração de mata atlântica permitiria, segundo essa visão, reconciliar o desenvolvimento econômico ao objetivo ambiental e reciclar economicamente a região, levando-a para um modelo sustentável. Todos acreditam que parte desse programa possa se enquadrar nos critérios do Protocolo de Quioto, um incentivo a mais para a participação da iniciativa privada nesse esforço.
De ambos os lados, há forte preocupação com o saneamento básico e o tratamento de esgotos dos municípios ribeirinhos. Os dois governadores e os três secretários com quem conversei, ressaltaram este como um dos pontos centrais. Outro ponto de consenso é a necessidade de recuperar a cobertura florestal e combater o assoreamento.
O projeto terá três eixos estruturadores, informa José Carlos Carvalho: a recuperação hidro-ambiental de uma das bacias mais degradadas do país, o saneamento e a complementaridade entre as economias dos dois estados, especialmente do ponto de vista logístico.
Embora nem os governadores, nem os secretários, tenham feito da comparação um ponto de ênfase, está claro que a proposta do Governo Federal para o São Francisco é o contraponto do protocolo do Rio Doce. O esvaziamento do Comitê da Bacia do São Francisco contrasta com o fortalecimento do Comitê do Rio Doce. O amplo programa de revitalização que terá início com o compromisso de Pedra Azul, nem de longe lembra a tímida proposta de revitalização que vem servindo de álibi para a transposição de águas. Enquanto o projeto do São Francisco vem sendo imposto, a despeito da oposição dos governos e da sociedade dos estados afetados por essa ameaça ao fragilizado Velho Chico, o programa para o Rio Doce nasce da cooperação entre todos os níveis de governo, tem a participação do Legislativo e de empresas privadas, não só de empreiteiras.
O programa federal para o São Francisco é um exemplo perfeito do quê e de como não fazer. Se a reunião de cúpula de Pedra Azul der certo, o programa de revitalização do Rio Doce tem tudo para virar um exemplo de como fazer para salvar uma bacia hidrográfica ameaçada.
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