Reportagens

De olho no que está por vir – com Sérgio Besserman

Sérgio Besserman é economista do BNDES, ex-presidente do IBGE, mas o que o preocupa mesmo são as aves e o futuro de uma espécie a caminho da extinção: nós.

Nos corredores do BNDES não se fala apenas de finanças e projetos. Sérgio Besserman Vianna entrou no banco no fim da década de 80 preocupado em ver aplicados seus conceitos sobre ajuste e responsabilidade fiscal, mas acabou criando um departamento de Meio Ambiente e se tornando um dedicado observador de pássaros por influência dos colegas. Destino inesperado para quem teve uma criação urbana e positivista, em que humanismo era sinônimo de amor ao progresso.

Mas de determinista Sérgio Besserman não tem nada. Presidiu o IBGE de 1999 a 2003, trabalha com estatísticas e confia nelas, mas não descarta o papel do acaso na vida. Principalmente quando considera a escala de tempo do planeta. Seu fascínio por aves o levou a estudar a teoria da evolução e ele não tem dúvida de que hoje somos nós o “asteróide” capaz de provocar uma nova onda de extinção na Terra. O consolo é que, mesmo sem a nossa presença, o mundo seguirá adiante.

Não à toa, para falar do Rio de Janeiro — sua especialidade profissional desde que assumiu a diretoria de Informações Geográficas do Instituto Municipal Pereira Passos (IPP) — ele recorre a questões globais. E é bom ouvir o alerta deste experiente analista urbano: o principal risco para o futuro carioca é o mar.

Qual é a maior ameaça ao Rio de Janeiro?

Besserman – No horizonte do século XXI, o assunto mais importante é o aquecimento global. O Rio é uma cidade especialmente vulnerável aos impactos desse fenômeno porque é um balneário, e o mar vai subir. A previsão conservadora fala em cerca de 1 metro, na média. Numa maré cheia, com lua cheia e uma boa chuva, estamos falando em um cenário propício à várias catástrofes.

O que o faz pensar assim?

Besserman – Um dos mais importantes artigos publicados recentemente sobre o tema foi o do James Hansen, na Scientific American de março de 2004 Defusing the global warming time bomb” ou “Desativando a bomba-relógio do aquecimento global”. Ele é um grande cientista da Nasa e na opinião dele o nível do mar é uma questão crítica, porque os feedbacks positivos não estariam sendo devidamente considerados e, muito possivelmente, o mar vai subir mais do que está sendo previsto. De qualquer maneira, o Rio que a gente conheceu, infelizmente, não existirá no final do século. Algumas praias serão preservadas, mas será necessário gastar um bom dinheiro para isso. Boa parte da infra-estrutura da cidade está no nível do mar. Nós temos populações morando em encostas, especialmente sujeitas ao fato de que os eventos climáticos extremos, entre os quais as grandes chuvas, provavelmente se tornarão mais intensos. Esta é a previsão de cem anos, mas é a previsão aceita, mais conservadora. Tem gente que diz que será pior. Mas ninguém pode dizer que será melhor.

O que se pode fazer?

Besserman – É uma aposta econômica altamente sensata investir muitos recursos humanos em meio ambiente no Rio de Janeiro. O retorno demora, mas valeria a pena uma aposta radical em conhecimento, qualidade de serviços, excelência em meio ambiente. Contamos com algumas vantagens. Primeiro, a estabilidade demográfica. A população do Rio de Janeiro cresceu, mas agora caminha para se estabilizar em pouco mais de 6 milhões. A migração é negativa. O crescimento das favelas,embora ainda significativo, já não ameaça. Temos que continuar alertas com a Floresta da Tijuca, mas vencemos: ela está lá. Não vou dizer que não tem nenhuma favela ali perto exercendo pressão ambiental, mas a população ao redor do Maciço da Tijuca caminha para a estabilização.

E na Zona Oeste?

Besserman – Na Barra da Tijuca e na Zona Oeste o problema é maior, mas podemos vencer.O maciço da Pedra Branca sofre muita pressão, assim como as restingas, e é preciso agir rapidamente. Nós tínhamos as duas maiores florestas urbanas do mundo, Pedra Branca e Tijuca. A terceira era na Cidade do Cabo, na África do Sul, que juntou dois parques e agora detém o primeiro lugar. Não seria o caso de fazer uns corredores ecológicos entre o Maciço da Tijuca e a Pedra Branca? Bota uma rede,cordas, eu quero é que os macaquinhos possam passar. Já está provado que a existência de corredores aumenta a diversidade genética, mesmo quando precários. Dá para fazer. Talvez seja necessário efetuar desapropriações, o que pode ser caro, difícil, mas voltaríamos a ter a maior floresta urbana do mundo e conectaríamos dois reservatórios genéticos da maior importância.

Estamos perdendo ou ganhando área verde no Rio?

Besserman – A Secretaria de Meio Ambiente e o IPP lançaram os indicadores ambientais do Rio de Janeiro.Temos notícias boas e ruins. Acabei de comentar uma boa, a Floresta da Tijuca estabilizada. Entretanto, o bioma da minha infância, que é a restinga, está fortemente ameaçado. Perdeu cerca de um terço da sua área original no espaço de uma década. Há pressões muito violentas no Maciço da Pedra Branca e nos manguezais.

Existem outros ecossistemas ou áreas em risco?

Besserman – A pressão urbana não chegou ainda ao Maciço da Medanha, que separa o Rio de Nova Iguaçu. Mas está chegando. O Maciço do Medanha é muito maior que a Reserva do Tinguá, que é mais conhecida e tem um pedacinho de parque, mas é pouca coisa. Também é fundamental conter a pressão da população informal na Pedra Branca. São muitos loteamentos irregulares, a população está se movendo para lá e a Pedra Branca não tem ainda uma institucionalidade e um engajamento da sociedade, que foi o que salvou a Floresta da Tijuca.

          “As favelas estão em expansão desacelerada”                              

Afinal, as favelas do Rio estão crescendo?

Besserman – Quando a gente fala de favela, estamos falando de algo que não tem uma forma de medição precisa. O conceito foi criado pelo IBGE para fazer suas pesquisas e leva em conta a densidade populacional de uma área, carência de serviços públicos e existência de título de propriedade, seja pública ou privada. As favelas estão em expansão desacelerada. A estatística diz que a população moradora de favelas cresce numa taxa que ainda é expressivamente maior do que a população da cidade formal, mas que não é mais capaz de alterar significativamente a proporção entre moradores de favela e os demais. Se de 2000 a 2010 o crescimento das favelas repetir a mesma taxa de 1991 a 2000, que é o pior cenário imaginável, a população nas favelas passará de 18,6% para 20%. Uma cidade que tem 19% ou 20,5% de sua população morando em favela é a mesma cidade. As exceções são Barra da Tijuca e Zona Oeste, onde se encontram taxas de crescimentos muito altas, que podem chegar a até 5% a 12% ao ano. 

Por que temos a sensação de crescimento das favelas?

Besserman – O principal ingrediente que as pessoas têm para definir favela não é medido pelo Censo. Chama-se controle do território por bandos que fazem com que o estado não tenha mais o monopólio da força. Não é que o estado não entre, evidentemente ele entra, mas o monopólio da força não pertence ao estado. Se não pertence, ali não vale o estado de direito democrático, não vale a Constituição. Por exemplo, a estatística e a cartografia mostram que o Morro dos Macacos, em Vila Isabel, não se expandiu, ao contrário. Mas o bandido do Morro dos Macacos ampliou o raio de ação dele. Por isso a percepção de que a favela aumentou e, nesse sentido, ela é correta.

E no resto do país?

Besserman – O Rio antecipa as tendências do país. Não sei explicar por quê, mas o Rio é vanguarda para o bem e para o mal. Estamos falando de um problema nacional. Existem territórios em que as pessoas são obrigadas a viver sob outras leis e normas. Isso é um problema político para a democracia brasileira, porque afeta o Judiciário, elege deputado, está na cooperativa de vans, nos táxis, ganha votos, influencia o funcionamento da imprensa e a relação com as forças policiais. Do mesmo jeito que o Rio, demograficamente, é o Brasil amanhã, essa realidade não tem só a ver com o Rio de Janeiro. O toque de recolher da periferia da capital da República é muito mais severo do que o que os traficantes cariocas impõem, assim como a taxa de homicídios é muito maior do que a do Rio.

O poder público está alerta para isso?

Besserman – Não, a ficha está demorando para cair. Este tema específico elegerá um Presidente da República, mas ainda não será em 2006. Agora, a culpa não é dos políticos, como está na moda afirmar. Há uma certa verdade na frase de Hegel, que cada povo tem o governo que merece. Os governos vão melhorando à medida que a sociedade amadurece também.

Como você começou a se ligar em meio ambiente?

Besserman – Ligado à natureza, eu sempre fui. Por razões do meu inconsciente. Não me atrevo, e acima de tudo não quero, entender. É de infância. Sou observador de pássaros e quando era garoto matei muito passarinho. Não era por ódio. Era por amor. O que eu aprendi foi que o meio ambiente era inesgotável e cabia a nós conquistá-lo. Adorava passarinhos e a melhor maneira que eu tinha de ver era abatê-los. Matava, cortava a asa e o pé e tinha isopores – para horror da minha mãe – com asas e a catalogação científica embaixo. Entrei no meio ambiente por essa coisa que vinha da infância, que não tem muita explicação. Meu pai era um cirurgião de formação positivista, marxista. Urbano ao extremo. Iria para Paris quantas vezes precisasse, mas jamais iria visitar o Cerrado. E minha mãe era uma judia alemã para quem borboleta era um silvestre inaceitável. Mas por alguma razão eu já tinha isso. Também teve aquela coisa do banco, do Paulo Sérgio e a descoberta do acaso.

Como assim?

Besserman – Por causa da minha formação, meu caminho natural teria sido o do desenvolvimento, onde o que interessa é a humanidade. Uma visão que agora tem que ser colocada de cabeça para baixo. Entrei no BNDES em 1986/87 como gerente de Macro-Economia. Depois virei chefe de gabinete do Eduardo Modiano e conheci o Paulo Sérgio Moreira da Fonseca, um grande observador de pássaros que até descobriu um gênero novo, e batizou a espécie de Acrobatornis fonsecai. Foi ele quem me introduziu à observação de pássaros. O Paulo deu conteúdo ao meu amor às aves. Já em 1988, ele me convenceu a criar um departamento do Meio Ambiente no BNDES, o que, como negócio, ajudou o banco a escapar de algumas roubadas pesadas.

Você é um bird-watcher. Você faz isso com que freqüência?

Besserman – Menor do que eu gostaria. Mas moro numa cidade privilegiada. Uma vez, mal tinha começado no meu novo hobby, comentei com o Paulo sobre um passarinho que eu tinha visto na Barra da Tijuca. Era um pica-pauzinho, parecia uma choquinha. Descrevi e ele identificou como um Pica-pau anão barrado. Estavamos andando em pleno Largo da Carioca e ele me disse: vem cá comigo. E me mostrou um igual.  

Se eu entrar na Floresta da Tijuca e for muito sortudo, o que vejo?

Besserman – Eu assisti com o Paulo a uma dança de tangarás. Machos dançando por uma fêmea, coisa que você só vê em National Geographic. O bicho é azul com topete vermelho. Lindo.

Se fosse feito um livro “Pássaros da cidade do Rio de Janeiro”, para competir com o “Pássaros da cidade de São Paulo”, quem ganhava?

Besserman – Me aventurando como observador, acho que da cidade a gente ganhava. O que eles têm é mais gente olhando. Faz três anos que eu quero fazer esse livro lá no IPP. Mas agora não faria, porque um dos maiores observadores de pássaros, ornitólogos e cientistas do mundo na área, o Bret Whitney, com apoio do Fernando Pacheco e do Paulo, está se preparando para lançar “Pássaros do Sudeste” em um padrão de a melhor coisa do mundo. Em vez de ser um livro de 80 reais, como os que existem por aí, ele quer que tenha qualidade mas custe 20 reais.

O que você gosta de ler sobre o tema?

Besserman – As aves lhe fazem querer entender melhor os ecossistemas e, há 18 anos, eu comecei a ler vorazmente sobre darwinismo, isto é, a teoria da evolução com base na seleção natural. Houve uma interseção nas minhas áreas de pensamento. O papel do acaso, por exemplo, cresceu na minha compreensão do mundo social.

Como assim?

Besserman – Me refiro ao papel do acaso numa larga escala, sobre o qual  o paleontólogo Stephen J. Gould tanto escreveu. Se não tivesse caído um asteróide, há 65 milhões de anos, na Península de Yucatán, nós, os Homo Sapiens, não estaríamos aqui. Ele tem um livro chamado A vida maravilhosa, que explora o papel do acaso já antes da explosão cambriana, quando surge a vida pluricelular. Somos todos personagens da História e ela é muito maior e mais complexa do que essa ânsia pelo crsecimento econômico, pela acumulação, que a gente vive desde a Revolução Industrial, e que acabou formando as mentalidades das gerações anteriores à minha. Trata-se do maior adversário intelectual que nós ambientalistas temos pela frente. O roteirista Jean-Claude Carrier, no livro Entrevista sobre o fim dos tempos, chama de “utopia da técnica” essa idéia de que, de algum modo, a técnica resolverá todos os problemas. Isso não é verdade.

“O que o chinês quer é impactar o meio ambiente do mesmo jeito que o cara de Ohio”                                                                                                             

A técnica é ruim?

Besserman – A técnica será necessária. Sem muita ciência e tecnologia o desastre ambiental é iminente. Mas não é verdade que a técnica vai sempre encontrar uma solução. Nós já somos 6 bilhões, seremos 9 bilhões. Desses 6 bilhões de hoje, 5,4 bilhões ambicionam, como grande objetivo de vida, ter um impacto ambiental calamitoso igual aos outros 600 milhões. O que o chinês quer é impactar o meio ambiente do mesmo jeito que o cara de Ohio. Não há uma Índia que vire Bélgica. De algum modo será necessário uma contenção no consumo.

O que a economia diz disso?

Besserman – Desenvolvimento sustentável é um conceito em construção. Dado ao fato de que o petróleo vai acabar e a população crescer, dificilmente o desenvolvimento sustentável deixará de incluir alguma restrição voluntária de consumo. Há farta literatura econômica mostrando que, a partir de um certo patamar, os níveis de renda pouco agregam em felicidade ou bem-estar. Um economista tem obrigação de ser sensível ao argumento de que, se eu estou utilizando recursos que são limitados e não estou introduzindo isto na minha contabilidade, estou com uma idéia falsa do processo econômico em uma escala de tempo maior.

Ou seja, temos que ter limites.

Besserman – É incrível como ao mesmo tempo em que tantas coisas mudaram nos últimos anos, outras não mudam nada há décadas. Há correntes profundas na sociedade que mudaram muito pouco. A da acumulação é uma delas. Sou funcionário do BNDES e minha família tem três carros. A quantidade de toneladas de aço e petróleo que  a família de um funcionário em um banco estatal, na cidade do Rio de Janeiro, tem como propriedade dela, para se locomover, é inimaginável. Em um mundo em que a gente não precisa mais se mexer, isso fatalmente terá que mudar.  

Como?

Besserman – É uma questão de escolha casada com pressão social. O dilema está colocado, mas ainda não foi oferecida ao consumidor a escolha entre comprar tanto ou ajudar a resolver o problema da fome no Sudão. Por exemplo, o aquecimento global tem potencial para ser catalisador na formação de uma opinião pública. Quando você entra no elevador com uma pessoa, se for no vigésimo andar, tem que falar algo. “Pô, está quente”. O clima nos une, nós estamos ligados a ele pela pele. As mudanças globais no clima vão afetar a economia e vão prejudicar os mais pobres. Nova Orleans é apenas um maravilhoso exemplo que nos deram. Nas próximas décadas vamos assitir a muitos fenômenos semelhantes e eles vão impactar as consciências e o processo social de forma mais profunda do que o Katrina fez nos Estados Unidos.

“A humanidade não tem nenhuma capacidade de fazer mal à natureza. É uma onipotência infantil se levada em conta a escala de tempo do planeta”                                                                                                              

Estamos destruindo o planeta?

Besserman – A humanidade não tem nenhuma capacidade de fazer mal à natureza. É uma onipotência infantil se levada em conta a escala de tempo do planeta. Foram cinco grandes extinções. A extinção do Cretáceo extinguiu os dinossauros e 65% das espécies vivas. Se isso acontecer novamente, nós não sobreviveremos, mas a biodiversidade se recuperará. Cinco, dez milhões de anos depois teremos a era da vida recentíssima. A vida está aqui há 3,6 bilhões de anos. O que são cinco ou dez milhões de anos? São escalas de tempo diferentes. Eu gosto dos macaquinhos e amo os peixinhos dourados. Mas eles não precisam disso. A natureza está se lixando, em sua portentosa escala de tempo, para o que nós, humanos, fazemos.  

A questão, então, é a nossa sobrevivência?

Besserman – Hoje, o ambientalismo é, acima de tudo, humanismo. É proteger a espécie humana. Também inclui a compreensão de que somos parte de um ambiente, dependemos e vivemos dele. As pessoas que gostam muito de mercado e se encantam com o que o capitalismo consegue fazer em termos de progresso técnico, se esquecem que uma luta muito mais dura e competitiva é a luta pela sobrevivência, pelo processo de seleção natural.

A humanidade tem essa consciência?

Besserman – O que distingue a nossa consciência da de um chimpanzé é a noção de tempo, para trás e para frente. Para o psiquiatra Oliver Sachs, que aparece no filme “Janela da Alma”, um indivíduo saudável é aquele que se percebe em função de uma história, seja ela verdadeira ou não, e se projeta em função de um futuro. A humanidade está em um momento em que, pelo bem ou pelo mal, está condenada a alargar sua consciência, ou seja, o seu horizonte de tempo.

Para você, como isso vai acontecer?

Besserman – O século XXI será muito mais revolucionário do que o século XX. Algum tempo atrás, tive essa conversa com o meu filho André. Disse que a geração dele tinha tantas coisas que a minha não teve, mas faltava algo que foi muito importante para a minha: um sonho, uma utopia, mesmo que errada. Um ano atrás, me corrigi. A história no século XXI é um leque em aberto, como jamais existiu. A nova geração terá que decidir possibilidades, desde muito ruins até muito boas, no horizonte de vida das suas décadas. Eric Hobsbawm disse que o século XXI tinha nascido com o atentado de 11 de setembro. Nasceu no sentido de ser concebido. Mas o parto ainda vai acontecer, com eventos extraordinários.

Os impactos começam a ser não-territoriais?

Besserman – Hoje, há pelo menos meia dúzia de agressões aos ecossistemas que são totalmente globais. Esse é o ponto novo e crucial. A principal delas é a mudança global do clima. Não faz a menor diferença se é pobre catando lenha na Índia, MST derrubando mata no Brasil ou uma fábrica sofisticada na Suíça. Para a molécula de gás de efeito estufa não existe soberania nacional.  

Quais são as outras agressões globais?

Besserman – Crise de biodiversidade, que é especialmente preocupante. Não só pelo nosso amor às espécies vivas, mas pela nossa extrema ignorância.Não sabemos sequer a ordem de grandeza do número de espécies vivas. Alguns mencionam 3 milhões, outro 10, outros 30 e , muitos outros, 100 milhões. É um assunto gravíssimo, a humanidade não tem como sobreviver se a biodiversidade se reduzir muito. O físico Stephen Hawkings, titular da cadeira de Isaac Newton em Cambridge, recomendou à humanidade que conquiste outros planetas porque a sobrevivência na Terra não será possível. Ele estava falando não só dos muitos impactos, como dos vírus que estão ganhando da gente. As bactérias estão ganhando. Ou nós conviveremos com vírus e bactérias, ou essa é uma guerra que nós não temos a menor possibilidade de vencer, nunca. Qualquer que seja o grau de desenvolvimento. Mais importante até do que saber o número de espécies, seria conhecer a teia entre elas. Mas desconhecemos.A reação em cadeia dessa destruição a gente também não sabe. Outra agressão é a crise de recursos hídricos. Podemos transformar água salgada em água doce, mas continuará muito caro por décadas. E só a tecnologia não vai resolver.Haverá guerras e, novamente, as populações pobres vão sofrer muito. Além disso, são agressões globais a degradação dos oceanos, a desertificação e a redução da camada de ozônio.   

Então estamos a caminho da extinção?

Besserman – Há técnicas que permitem, comparando registros fósseis, afirmar que a velocidade com que as espécies estão se extinguindo hoje é maior do que na extinção dos dinossauros. Tem um belo livro sobre isso chamado “O Fim da Evolução”, de Peter Ward. Ele diz que, no Cretáceo, não foi só o asteróide. Havia uma extinção em marcha por 2 ou 3 milhões de anos, grave, e aí chegou o asteróide. Agora, há uma extinção em marcha por 2,5 milhões de anos, as flutuações climáticas têm sido muito extremas e isso provoca extinção, como tantas que já aconteceram. E chegou um baita asteróide, que somos nós.

“Se a gente conseguisse interromper o desmatamento da Amazônia, isso nos daria muito mais poder do que sentar no Conselho de Segurança da ONU”                                                                                                                  

O brasileiro tende a ignorar os problemas ambientais. Por quê?

Besserman – A luta aqui vai ser mais difícil do que em alguns outros lugares. Nós temos e viemos de uma cultura sebastianista. No século XX, o discurso da sociedade brasileira era que o Brasil não realizava a sua vocação de ser um país desenvolvido, uma grande potência, em função de forças externas. Entender que o desenvolvimento quantitativo puro e simples do capitalismo está em questão e ganhar a sociedade para a idéia de que o desenvolvimento incluirá a preservação do verde, das florestas, da biodiversidade, da água e alguma contenção do consumismo predatório, por fazermos parte de uma realidade global, vai ser uma pirueta.

Esse assunto não aflora em campanhas eleitorais majoritárias.

Besserman – Para o Brasil, em qualquer agenda de vinte anos, numa lista de quatro ou cinco assuntos, o meio ambiente tem que estar entre eles. Mas mesmos os políticos que eu mais admiro, nos quais eu votaria sem hesitação, não têm a menor compreensão desse problema. Quando o assunto aparece, debatem rapidamente e descartam. Os brasileiros querem ser potência e liderança política. É realmente obtuso não entender que se a gente conseguisse interromper o desmatamento da Amazônia, isso nos daria muito mais poder do que sentar no Conselho de Segurança da ONU. Aliás, se o Brasil interromper o desmatamento na Amazônia nós teremos uma cadeira na ONU.

  • Marcos Sá Corrêa

    Jornalista e fotógrafo. Formou-se em História e escreve na revista Piauí e no jornal O Estado de S. Paulo. Foi editor de Veja...

  • Sérgio Abranches

    Mestre em Sociologia pela UnB e PhD em Ciência Política pela Universidade de Cornell

  • Lorenzo Aldé

    Jornalista, escritor, editor e educador, atua especialmente no terceiro setor, nas áreas de educação, comunicação, arte e cultura.

  • Andreia Fanzeres

    Jornalista de ((o))eco de 2005 a 2011. Coordena o Programa de Direitos Indígenas, Política Indigenista e Informação à Sociedade da OPAN.

  • Juliana Tinoco

    Juliana Tinoco é jornalista multimídia especializada na cobertura de Meio Ambiente, Ciência e Direitos Humanos. Por quinze an...

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